23.2.18

Memorabilia - Revistas - Mondo Bizarre - Nº 26 - Junho de 2006


Mondo Bizarre
Revista / Magazine
A4 - papel de jornal - a corres capa e contracapa
56 páginas
Publicação Trimestral
Distribuição Gratuita
Ano VII
Nº 26
Junho de 2006


Current 93
Opereta Apocalíptica



David Tibet levou quatro anaos a preparar “Black Dogs Ate The Sky”. Reuniu uma imensa panóplia de músicos para contar o seu sonho da chegada do dia do juízo final. Após alguns álbuns descarnados, muitas complicações e discos ao vivo, “Black Dogs Ate The Sky” reconduz o nome Current 93 aos trabalhos de grande envergadura tão bem conseguidos noutros tempos.

Diz David Tibet que este álbum começou a ser pensado depois de um sonho onde vislumbrou barcos negros devorando o céu enquanto preparavam a vinda do último César (o anticristo), assim antecipando, como está escrito, a segunda vinda de Cristo.
Curiosamente, a imaginação (sublimada pelos ácidos) já lhe tinha sugerido, em 88, um Noddy a ser crucificado no céu, o que o levou a explorar a ideia do miúdo do guizo enquanto ícone gnóstico em “Swastikas For Noddy”. “Black Ships Ate The Sky” não partilhará da mesma carga de humor sinistro e macabro, se assim lhe quisermos chamar, mas ao fim de mais de vinte anos de vida do projecto, continuam os artifícios sinistros e crípticos que Tibet regularmente utiliza para contar as suas histórias. Lautréamont (e os “Cantos de Maldoror”) ou o ocultismo de Aleister Crowley já não moram aqui (embora ainda façam algumas visitas, suspeita-se). É a Bíblia, e mais ainda os evangelhos  gnósticos, na versão cóptica, que orientam hoje a poesia declamada pelo novo cristão Tibet. Este lado esotérico e obscuro da escrita de Tibet, e de todo o tipo de ambientes que rodeia a apresentação dos trabalhos dos Current 93, nunca acolheu simpatia de forma fácil fora dos círculos fechados do rock gótico, mas a música propriamente dita acabou por vir desempenhar o caminho inverso, contribuindo muitas das vezes para o desmascarar de um preconceito óbvio. A influência da folk britânica, versão The Incredible String Band, Donovan ou Shirley Collins (já agora, ela participa neste disco), temm ajudado a produzir momentos de excelência no percurso do projecto de Tibet. E este, ao contrário do que os últimos álbuns e a compensação através das reedições e compilações vinham sugerindo, é mais um desses momentos altos. Musicalmente, a alma de “Black Ships Ate The Sky” deve muito às guitarras de Michael Cashmore e de Bem Chasny (o poço de talento também conhecido por Six Organs Of Admittance), ao violoncelo de John Contreras e ao toque habitual de Steven Stapleton, dos Nurse With Wound. Acaba por ser na interpretação repetida, ao longo do disco, de “Idumea”, um obscuro hino da autoria do metodista Charles Wesley (séc. XVIII), que é mais bem conseguida a ligação ao sonho alucinado de Tibet. À vez, entrega-se a essa tarefa gente tão diferente (e tão boa) como Marc Almond, Will Oldham (que também toca banjo no tema), Baby Dee, Clodagh Simonds (voz dos Mellow Candle, um projecto de folk psicadélica dos anos 70), Pantaleimon, a eternamente venerada Shirley Collins e o próprio Tibet. “Black Ships Ate The Sky” é a obra maior dos últimos tempos dos Current 93).
VJ
Vítor Junqueira.















12.2.18

Memorabilia - Revistas - Mondo Bizarre - Nº 11 - Maio de 2002


Mondo Bizarre
Revista / Magazine
A4 - papel de jornal - a corres capa e contracapa
88 páginas
Publicação Trimestral
Distribuição Gratuita
Nº 11
Maio de 2002



RAINDOGS
Lirismo Boémio
“Life After Vegas” é a catedral sonora erigida a partir dos retratos nocturnos de uma existência íngreme. A lírica remissiva que este disco sustenta e a planície melódica que o atravessa constituem as iluminuras do mais consistente registo dos Raindogs. Até à data e depois de Vegas. Ainda com Chris Eckman na produção.





No princípio, era a desordem, o caos. Depois, o violino criou a trama para a composição de sinfonias celestes e melodias fabricadas. Interessa esclarecer que este instrumento não é, na maior parte dos casos, senão um bom adoçante da música oca que se produz. Os Raindogs são um bom exemplo de como o violino pode continuar a ser a espinha dorsal de qualquer tecido sonoro sem retirar a relevância que a voz e demais instrumentos congregam. Data de 1999 o homónimo EP de estreia. Objecto de inusitada beleza para um primeiro trabalho, o disco forneceu as premissas para um futuro que ameaçava conjecturar notas dissonantes face ao estancado universo da pop nacional. Ainda nesse ano, “From Today” vem confirmar essa propensão para retalhos sónicos harmoniosos.
Precedido do álbum ao vivo “Memories of a Portable Dat”, “Life After Vegas” procede à perfuração do mais íntimo do ser em contorções dilaceradas de refinada melancolia. Nos meandros do primeiro disco com uma outra voz – mais limpa, suave e esteticamente mais densa -, celebra-se a comunhão de almas num limbo terreno e emocional (2Rattlesnakes”). E rastejar é o que resta a todos quantos temem a ascesão à liberdade e desejam permanecer agrilhoados ao obscurantismo da sua condição (“The fear of freedom rose up from your inner need of being slaved”). Em “Sierra Madre”, as palavras são ditas a um ritmo sincopado, palmilhado por uma textura sonora de orientação desgarrada e em consonância com o esvaziamento relacional presente em “she was gone / outsider, only a landscape of cactus and rocks”). Paisagens recobertas dos elementos primordiais, não humanizados – porque só as emoções se tornam pertença nossa. Quase tudo o resto resiste numa subsistência estóica, imperturbável. Apenas a neblina vem carregada de uma referencialidade cruzada, transportando os sinais do tempo numa amálgama disforme que reúne entidades sobrenaturais e figuras mitológicas. “Dreamwhir” é disso paradigma incontornável – “in the garden of Allah”, a rivalizar com o jardim do Éden da literatura bíblica a ocidente, e, mais adiante, “Icarus is flying above a forest convention”. Mas o disco pactua também com as forças do Mal numa assumida cumplicidade com o Diabo (“and his heart, nailed to the pentagram”) e mostra o fervilhar dos fluídos, num corpo que acalenta o irrevogável Fado – “Hand of Fate”. Por vezes, o estrado é ainda cadenciado e lento e já se percepciona a eclosão de sulcos bélicos e florescem na mente imagens dantescas quando, na verdade, a guerra é apenas dos sentidos. ‘Corazón’ é a deterioração de uma voz que, não chegando aos píncaros guturais, pontua na aridez que proporciona a um tema introspectivo. Em ‘Hotel Sickness’, há a utilização de referências espácio-temporais de uma América mítica (ou mitificada) – “and all the Seattle whizz kids / grunge their way to fit in” -, consumida por falácias auto-infligidas.
H.G.
Helder Gomes



POP DELL’ARTE
Eternamente Arty
A espera foi longa e as promessas muitas, mas os Pop Dell’Arte editaram finalmente “So Goodnight”, um disco em formato reduzido a apenas seis temas, para entreter aqueles que esperam pelo anunciado “After The Future”.





Que fique bem claro. Os Pop Dell’Arte serão sempre uma das melhores bandas portuguesas de todos os tempos, e provavelmente a única que soube realmente experimentar sem medo dos resultados. Dessas experiências resultaram discos tão emblemáticos como “Querelle”, “Sonhos Pop”, “Illogik Plastik” ou “Free Pop”, o álbum com que encerraram, da melhor maneira, a primeira encarnação. Pop Dell’Arte não era apenas música, era uma luta constante pela quebra de barreiras, pelos conceitos pré-estabelecidos. A música feita como arte e não como um amontoado de sons com o simples objectivo da melodia.
O projecto João Peste & o Acidoxibordel chegou a alimentar algumas esperanças, mas a sua morte precoce não deixou mais do que um EP, de onde se destaca o fantástico “Groovy Noise-Dada Rock”, um manifesto glam dos anos 90. Seguiu-se a volta dos Pop Dell’Arte e consequentemente o período menos criativo. Com a formação “mutilada” e problemas editoriais (pois na altura a Ama Romanta já não existia) “Ready-Made” é editado mas torna-se difícil encontrar o disco nos escaparates. A desgraça é salva por um “Green Lantern” que destoa igualmente do cariz mais electrónico do resto do álbum. “Sex Symbol” rompe novamente barreiras e é o ponto mais alto da carreira dos Pop Dell’Arte nos anos 90, já que a banda voltava ao limbo, apesar de rumores e anúncios de novas edições.
Sete anos depois “So Goodnight” quebra o silêncio. Antes da música, a primeira coisa que salta à vista é a concepção gráfica. Para quem já teve as capas graficamente mais apelativas feitas por estas paragens, fica-se com a impressão de que o mau gosto tomou de assalto o cérebro de João Peste e tem-se o pior quanto ao conteúdo do disco. Felizmente são apenas temores, já que sem ser surpreendente, “So Goodnight” acaba por convencer até o mais ferrenho dos admiradores da “velha guarda”. Dividido em duas partes distintas, uma no formato canção e outra de manipulação electrónica, “So Goodnight” vai beber mais aos Pop Dell’Arte dos anos 80 do que dos anos 90, mas com um sentido estético contemporâneo. Aliás, a manipulação electrónica relembra um pouco alguns temas de “Illogik Plastik”. Aos belos temas em formato canção de “Mrs. Tyler”, “So Goodnight” ou “Little Drama Boy” (a recriação de “Little Drummer Boy” celebrizada por Bing Crosby) junta-se-lhes a experimentação de “The Sweetest Pain”, “Pound By Pound” (escrito a meias com Jorge Ferraz) e “The Witch Queen Of The USA” (uma experiência sónica assinada por Zé Pedro Moura, que assim regressa aos Pop Dell’Arte depois de mais de uma década ausente). Vinte minutos sabem realmente a pouco.
H.M.
Hugo Moutinho








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