26.2.19
19.2.19
Kraftwerk - A máquina desvendada
Para os Kraftwerk, a realidade é um filme de ficção
científica, em que as máquinas desempenham o papel principal. Ou pelo menos
metade do papel. O conceito de “homem-máquina” permite compreender a filosofia
de Ralf Hutter e Florian Schneider, dois revolucionários que preferiam ter
metal em vez de pele e um compuador de bolso no lugar do coração.
Como Ray Bradbury, os Kraftwerk “cantam o corpo
eléctrico” e, de acordo com as regras inerentes a um mecanismo perfeito,
desprezam a emoção humana. Ou como gostam de dizer: “O frio também é uma
emoção.” Em veza das reacções primárias desencadeadas pelo rock ‘n’ rol,
preferem a “emoção mental” provocada pelos sintetizadores. Ao suor e às
descargas de adrenalina desencadeadas por uma guitarra eléctrica, instrumento
que consideram “medieval”, contrapõem a linguagem implacável dos dígitos e a
perfeição do computador.
Brian Eno, David Bowie (que inclusive dedicou um dos
temas de “Heroes”, “V 2 Schneider”, a Florian Schneider), Arthur Baker e os
Afrika Bambaata de “Planet Rock”, a “Houde” de Chicago, ou os jovens ingleses
electropops de cabelo rapado, são devedores das inovações “techno” destes dois
alemães, para quem a música, mais do que uma arte segundo os preceitos
tradicionais, é uma técnica que não admite o erro humano.
Paradoxalmente, os americanos renderam-se ao ritmo de
“Autobahn”, “The Model” e “Showroom Dummies”, dançados sem preconceitos nas
discotecas. O paradoxo de uma música “fria” e “mental” que afinal consegue
seduzir os sentidos. Talvez por os Kraftwerk, como Ralf e Florian farantem,
terem conseguido introduzir o ritmo do corpo na música electrónica.
Folk Industrial
Numa Alemanha devastada pela guerra, onde tudo se
reconstruía, os Kraftwerk renegaram o passado histórico do rock para partirem à
descoberta de algo inteiramente novo, expresso, a partir de “Autobahn”, no
conceito de união entre o homem e a máquina. Fechados no estúdio Kling Klang
(um laboratório onde “fazem coisas científicas”) em Dusseldorf, Ralf Hutter e
Florian Schneider buscam sem descanso a resolução definitiva do conflito entre
o humano e o maquinal.
Seja na descoberta de novos meiso electrónicos de
produção musical (aos Kraftwerk se deve a invenção de um modelo original de
sequenciador ou de uma célula fotoeléctrica capaz de traduzir em impulsos sonoros
os movimentos do corpo) ou em teorizações mais ou menos fascizantes, o
objectivo permanece o mesmo: criar uma “música folk industrial em que as
máquinas sejam tratadas de igual para igual com o homem no processo criativo”,
uma “música que destrua a oposição entre o homem e a tecnologia”.
Importante, no processo de criação artística, é – segundo
afirmam – a “troca de energia entre o humano e a fonte de energia”, numa
relação dialéctica escravo-senhor (exemplarmente caracterizada em “Voice of
energy”, do álbum “Radio Activity”), em que o homem ora é mestre da máquina
(por exemplo na programação de um computador) ora se torna seu escravo (na
medida em que essa programação acabe por ser condicionada pela estrutura e pela
lógica intrínseca da máquina).
Segundo os Kraftwerk, é necessário que o homem se torne
“amigo” das máquinas, se quiser impedir a sua revolta (a poluição seria assim
um grito de protesto das máquinas, fartas de ficar sempre com os trabalhos
“mais sujos”). No fundo, trata-se de um jogo de poder que só terminará quando
acabar a exploração da máquina pelo homem. Não são as máquinas que são
demoníacas mas os homens, que não sabem lidar com eleas – “um carro”, por
exemplo, funciona melhor se for “bem tratado” – ironizam.
O Culto Da Despersonalização
Trilogia do “admirável mundo novo”, “The man machine”,
“Computer World” e “Electric Café” traduzem na perfeição toda essa estética que
Hutter e Schneider assumem como filosofia de vida: celibatários convictos, a
maior parte do tempo é dedicada à pesquisa de estúdio e à procura de novas
sonoridades electrónicas. Compreende-se agora melhor por que razão ninguém,
neste campo, os consegue igualar.
Não descuidam a imagem, no seu caso uma anti-imagem,
composta pelo ar distante e pelo envergar sistemático de fato e gravata (como
resposta ao facto de “hoje em dia toda a gente usar “jeans”) ou na escolha de
poses que alguns identificam como inspiradas na ideologia nazi. Os
homens-máquinas afirmam que apenas gostam da “uniformidade” e que nunca usaram
suásticas. O culto da despersonalização é levado ao extremo com o recurso em
palco, nas capas de discos ou nas (raras) entrevistas, a manequins-réplicas que
procuram simbolizar a natureza androide dos originais.
Para Ralf Hutter e Florian Schneider é tão simples como
isto: “Nós tocamos as máquinas e as máquinas tocam-nos a nós.” Neste processo
de simbiose gradual entre o organismo biológico e o organismo cibernético, a
etapa final está em “converter directamente os impulsos cerebrais em sons
audíveis” e a técnica, capaz de materializa-la, terá que passar pela
“derradeira forma musical – a telepatia”.
O Corpo Novo Remisturado
“The mix”, novo disco de remisturas e novas gravações de
temas antigos, funciona assim como uma recapitulação ou um compêndio documental
onde se demonstra a eterna mutabilidade dos “cânticos androides”
kraftwerkianos, chamemos-lhes assim, susceptíveis de infinitas variações e
múltiplas reinterpretações.
Se em “Autobahn” é a compressão do tempo e em “Radio
activity” a sua actualização (através da referência explícita a Chernobyl) ou
em “Trans Europe Express”, pelo contrário, a sua dilatação levada ao
barroquismo, em qualquer dos casos, trata-se sempre de expor, nas suas
múltiplas formas, a natureza e a “carne” infinitamente plástica de um “corpo novo”
surgido das cinzas do velho mundo. Como se os Kraftwerk tivessem conseguido
finalmente concretizar o sonho de Frankenstein e ultrapassado as
monstruosidades de Cronenberg.
Fernando Magalhães / 1991
Fernando Magalhães / 1991
Ao Longo de quase duas décadas, com intervalos de
produção mais ou menos alargados, a discografia dos Kraftwerk representa a
expressão máxima da modernidade e a apologia irónica do “homem.máquina”. Agora,
na sequência do êxito de “The Mix”, os álbuns originais “Radio Activity”,
“Trans Europe Express” e “The Man Machine” vão ser repostos em breve no nosso
mercado, mas o que se impõe é a retrospectiva integral.
KRAFTWERK / ORGANIZATION, 1972
Duplo álbum raridade editado na Vertigo, no qual os
Kraftwerk antecipam a apoteose metálica que, anos mais tarde, os seus
compatriotas Einstuerzende Neubauten ou os ingleses Test Dept. se encarregaram
de celebrar. Numa Berlim sentão seduzida pelo misticismo planante dos Tangerine
Dream e de Klaus Schulze, os Kraftwerk moldavam com a argamassa de Cage,
Stockhausen e os resíduos estruturais do concretismo, esculturas de água e de
metal, em reverberações corrosivas que depois se haveriam de chamar “música
industrial”. Outros agrupamentos germânicos da época, Harmonia, La Dusseldorf,
Cluster (cujo álbum “Cluster II” consitui o primeiro grande manifesto do “som
industrial” ou os Neu! Viriam, cada um a seu modo, explorar as vias abertas
pelos Kraftwerk, formando um núcleo vanguardista surgido precocemente nos anos
em que quase todos se preocupavam mais com as imensidões cósmicas do que com
abeleza claustrofóbica das grandes fábricas do Ruhr.
RALF AND FLORIAN, 1973
As grandes avalanchas sónicas do primeiro álbum são
recicladas num carrossel minimalista que pela primeira vez provoca nos
neurónios ãnsias de dançar. “Elektrisches roulette” ou a rumba
ciberpaquidérmica “Tanzmusik” (“música de baile”) demosntram até que ponto
Terry Riley tinha razão quando defendia que o infinito era circular.
“Kristallo” e sobretudo a frescura de frutos e paisagens tropicais de “Ananas
symphonie” acariciam o corpo eléctrico de Bradbury e abrem caminho para as
sedimentação ambientalistas que Brian Eno transformaria em género autónomo.
AUTOBAHN, 1974
A auto-estrada e o fascínio do universo linear, ideal
para se chegar ao novo mundo, dirigido por controlo remoto. “O automóvel é um
instrumento de música”, diziam então Ralf Hütter e Florian Schneider, pela
primeira vez auxiliados nas percussões robóticas por Wolfgang Flür e Klaus
Roeder. Conny Plank fornecia a garagem, mas, para os Kraftwerk, o estúdio
convencional começava a ser pequeno para a desmesura do projecto. A consola
auto-suficiente da “fábrica” portátil Kling Klang seria a solução e o veículo
privilegiado na construção do império electrónico. “Wahn wahn wahn, das ist autobahn”
– transmite o auto-rádio à saída de uma curva, consumando a ultrapassagem
definitiva da “Fun fun fun” demasiado humana dos Beach Boys. A “Folk”
industrial nascia em 22m30 de viagem através dos arquétipos do homem como
eterno transeunte que foram “top” nos Estados Unidos e deveriam servir de
exemplo à nossa Junta Autónoma de Estradas. O segundo lado despede-se do céu e
das delícias da sonoridade analógica.
RADIO ACTIVITY, 1975
Considerado à época uma desilusão, “Radio Activity”
permite aos Kraftwerk a descoberta das melopeias infantis e o abuso da melodia
simplista. A rádio deixa de passar música e torna-se ameaçadora. “Eadio
activity, discovered by madame Curie, is here to stay, for you and me” – a
mensagem, dita desta maneira, era difícil de levar a sério, mas Chernobyl viria
a endurecer o conceito, juntando-lhe a dimensão da tragédia (os Kraftwerk
acrescentariam mesmo, por causa da catástrofe, novos versos ao tema, em “The
mix”). “Airwaves” flutua no ar com a insustentável leveza do vazio pós-nuclear.
Mas como numa novela de Philip K. Dick, a realidade é sempre outra coisa e a
consciência perde-se sem querer no labirinto das suas próprias mutações. A
Europa dançava a valsa dos electrões.
TRANS EUROPE EXPRESS, 1977
Interrompida pelo álbum anterior, a viagem prossegue
agora de comboio, que substitui o automóvel, como meio de transporte para o
futuro. Síntese magistral de uma tradição europeia reinventada (Franz Schubert
de martelo-pilão, a destruir os alicerces românticos), na miragem de uma
prosperidade pós-industrial ou na nostalgia totalitária de um continente sem
fronteiras. Os Kraftwerk atingem o domínio pleno das técnicas manipulatórias do
imaginário contemporâneo. O horror de uma viagem sem fim com destino ao inferno
(McLuhan chama-lhe a “aldeia global”) é camuflado pelo polimento extremo do som
e pela depuração da palavra, reduzida ao essencial e por isso com um máximo de
eficácia. Numa Europa “Endless”, até ao infinito, esmagada no clamor de “metal
on metal”, “Trans Europe Express” deu uma alma à máquina e ensinou David Bowie
(de “Station to Station”) a ser moderno.
THE MAN MACHINE, 1978
Título óbvio para a continuação de um projecto único na
música ocidental do nosso século – a simbiose harmoniosa entre o homem e a
máquina, simbolizada na colagem dos músicos e enfatizada pelas referências
estéticas a Lissitsky e ao construtivismo russo. “As máquinas respondem-nos
directamente e nós às máquinas” – declarava Ralf Hütter a propósito de “We are
the robots”, levando ao absurdo o termo comunista “robotnik” – o trabalhador
perfeito, como peça da máquina omnipotente que é a sociedade materialista.
Emoção geométrica. Paraíso matemático. Futuro a escurecer
em metrópoles banhadas na cor gelada de “néon lights”, tornadas substitutas das
estrelas na arquitectura do cosmos.
O mundo deixa-se ofuscar pelo novo brilho – “Looking for
a perfect beat” dos Afrika Bambaata deve a inspiração aos homens-máquinas. “The
model” é êxito nas Filipinas, cantado por uma intérprete local. “Trans Europe
Express” assume a paternidade da “Cold Wave” ou da pop electrónica dos Human
League, Depeche Mode, Telex, Orchestral Manoeuvres in the Dark, John Foxx, New
Musik, Fad Gadget, entre muitos outros.
COMPUTER WORLD, 1981
Bem instalados no coração da máquina, os Kraftwerk
inventam novos “vídeo games” para consumo do homem automático. “Pocket Calculator”
é tocado em calculadoras de bolso Casio e Texas, que, nos concertos ao vivo,
são distribuídos à assistência, convidada a com eles improvisar. Data desta
época a remodulação dos estúdio Kling Klang, de maneira a permitir a sua utilização
em palco, concedendo ao conceito duplo de “hardware / software” a dimensão do
espectáculo. Anulada a tensão dialéctica entre racionalidade luciferina (“Numbers”)
e a emoção, resta a derradeira mutação interior a capitulação do humano,
demasiado humano, na pureza fria do amor computorizado.
ELECTRIC CAFÉ, 1982
“Boing boom tschak”, cadência onomatopaica com que os
Kraftwerk se servem para parodiar o Hadesteleológico, imitando com a voz o som
dos sintetizadores e introduzindo uma nota de humanidade e humor à
implacabilidade do projecto, “Electric Café” é o ponto de diversãopossível num
pesadelo já consumado. Muito minimal para cérebros normais – “Techno pop”, “Musique
non stop” -, a vida, considerada abstracção, só através da repetição “ad
infinitum” da melodia como hipnose terapêutica, consegue o sucedâneo artificial
capaz de manter a máquina em funcionamento. “Sex object” e “The telefone cal”
falam da solidão. Gerado por um computador o homem será ainda o animal que ri?
Fernando Magalhães / 1991
Fernando Magalhães / 1991
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