autor: António A. Duarte
título: A Arte Eléctrica De Ser Português - 25 Anos de Rock'n'Portugal
editora: Livraria Bertrand
país: Portugal
nº de páginas: 210
isbn: none
Depósito Legal Nº 4974/84
data: 1984
esta é a primeira edição.
A ARTE ELÉCTRICA DE SER PORTUGUÊS
25 ANOS DE ROCK’N’PORTUGAL
António A. Duarte
Livraria Bertrand
Rua Garrett 73-75
1984
210 páginas
Depósito Legal Nº 4974/84
Acabou de imprimir-se em Maio de 1984
A IDADE DA MÚSICA
Colecção dirigida por Manuel Cadafaz de Matos
À memória de Rui Pipas
De Gino Guerreiro
E de Luís Garrido Costa
Pelo rock
Pela escrita
E pelo voo
PREFÁCIO
A arte jornalística de ser português e escrever sobre
rock, considerada como um atentado à musicologia, e a remissão dos pecados
dessa malta de drogados, malucos, filhos do mesmo tipo de mãe, que gostam de
rock e até, oh!, têm habilidade para tocar rock.
1. O Jornalismo
Convém frisar que este livro foi, acima de tudo, escrito
por um jornalista e não por um musicólogo.
O logos a que obedece toda a escrita é unicamente
respeitante à recolha histórica de documentos vários e o que os jornais
publicaram, ou não, sobre o fenómeno da música pop e do rock português.
O próprio discurso literário se formaliza na prosa
jornalística e existe de per si sem mais ambições, sem pretensiosismos
extravagantes, sem autoconvencimentos, como se uma Verónica tipográfica pegasse
numa folha de papel, a colasse na cara do mártir Pipas e a mandasse policopiar,
querendo dizer-nos que também tivemos os nossos Hendrix ou os nossos Morrisons.
O António Duarte é assim mesmo: transparente na sua
simplicidade, anárquico na sua ideologia, afincado no seu trabalho.
Conquistou um lugar ao sol no jornalismo musical, é
procurado por toda a espécie de vedetas e pseudovedetas que, pela sua escrita,
pretendem promover-se e todos são recebidos com a mesma generosidade, o que não
significa que o António Duarte não saiba perfeitamente as regras da qualidade a
respeitar e dê o seu a seu dono.
Mesmo quando se recebe um elogio rasgado e desorbitado,
que pode provocar uma certa indignação dos mais doutos, o António Duarte está a
mostrar que esse exagero é directamente proporcional à consumilidade imediata
do texto jornalístico.
Como jornalista tem a pura consciência que a história
(como esta, que é uma história do rock), fundamentada heurística e
hermeneuticamente no jornalismo, só pode jogar com esses valores, e querer
criticar este livro pela ausência de critérios científicos ou paracientíficos,
pela sintomatológica incapacidade de criticar musicalmente o objecto em análise
é, numa só síntese, anular o próprio jornalismo.
Ora a verdade é que só o jornalismo pode abordar a
história do rock e da pop portugueses. Pela simples razão que não houve ainda
até hoje um único grupo ou um único solista capaz de confrontar-se com a qualidade
internacional ou intervir numa história geral da música pop ou da música de
rock.
E note-se: todos os músicos do rock e da pop portugueses
tiveram as suas glórias em páginas de jornais: jamais citados em livros daqui e
muito menos dignos de serem citados em livros no estrangeiro.
Por estas razões, só um jornalista poderia escrever um
livro sobre este tema e sabendo, à partida, da impossibilidade de querer ser um
musicólogo.
2. Metodologia
É extremamente repugnante para um musicólogo toda e
qualquer abordagem jornalística da Música (seja que tipo de música for) pela
aberrativa sofreguidão com que o jornalismo abraça e acompanha o quotidiano:
basta saber que a maioria esmagadora dos êxitos meteóricos dos músicos nos
jornais existe enquanto precisamente eles aparecem nos jornais, e quando a
Imprensa os abandona esses epifenómenos esfumam-se no olvido geral.
Ora, a arte não coincide com os valores do quotidiano,
não é senso comum: pelo contrário, é contra o senso comum: e aí temos o
anarquista Duarte a descarregar observações corrosivas do ponto de vista
sociopolítico no sistema que deu à luz tais abortos.
Como se um jornalista resolvesse fazer uma «história da
talidomida» e nos desse milhões de recortes e pontos de vista sobre o caso e
nos pretendesse conduzir à seguinte conclusão: os malefícios da talomida. Eu
mesmo fiquei atónito quando o Duarte me citou (e fê-lo privilegiadamente) e expôs
fundamentalmente declarações minhas na Imprensa feitas em determinado momento
que eu cumpria, mais ou menos, uma função jornalística e obrigou-me a uma
autocrítica severa: na verdade, nada do que eu escrevi para jornais escreveria
agora, o que não acontece quando sou realmente um musicólogo nos meus livros.
Afinal, o jornalismo é a mentira de todos os dias, como a política dos
políticos é a farsa da infra-estrutura económica.
O grande mérito do livro está então na recolha exaltante
e trabalhosa que o António Duarte fez de tudo o que (se) escreveu – e não só –
sobre rock.
Partilha comigo a ideia de que todas as revistas da
especialidade são todas más e foram tão pobres que nunca conseguiram passar os
limites do jornalismo, atingir sequer as fronteiras do ensaio, e que em
Portugal o rock e a pop são tão manipulados como o futebol e com o mesmo
sistema analítico.
Neste mundo, infinito como uma lista telefónica, de nomes
e acontecimentos sobrevém uma ideologia, consciente ou inconscientemente
conduzindo a escrita do António Duarte: é essa ideologia que vou abordar agora
neste prefácio.
3. Ideologia
É postulado banal da semiologia que a própria linguagem
veicula todo o sentido.
Este livro cabe naquele tipo de literatura dita juvenil,
não apenas porque os seus heróis são jovens (músicos), o público consumidor de
rock é a juventude e o António Duarte é jovem. Daí que o estilo da escrita seja
tão empolgante e fresco quanto ingénuo, mas é, numa súmula de coerência, a
verdade dum facto: o rock e a pop portugueses.
Todas as citações, todos os acontecimentos ou todas as
conclusões são acessíveis, por vezes tão irrisórias que se tornam numa feroz
acusação dum handicap cultural que nós, Portugueses, sofremos.
A obra situa-se deliberadamente na contracultura,
enfrenta o regime dominante, ousa mesmo aliciar o leitor, pedagogicamente, para
a subversão, e fá-lo tão descaradamente como todos estes anos os músicos de
rock e pop a levaram aos palcos, às salas, às ruas, aos pavilhões, aos estúdios
discográficos.
António Duarte é um entrevistador qualificado e recorreu
neste seu livro a uma colagem (pop) de declarações de músicos, procurando
trazer ao cimo a própria tomada de consciência dos músicos: se o José Cid disse
algo de cavalar, foi ele e não o autor, mas também se alguém observou as
qualidades dum Filipe Mendes isso deve-se ao pensamento do citado e nunca ao
citador.
As opiniões de António Duarte são políticas, sociais,
raro de cariz musicológico.
Como tudo no mundo da pop music corre como o vento, a uma
velocidade assustadora, típica desta era electrónica acelerada, o livro pode
parecer old fashioned, mas certo é que nenhum grupo de rock nacional tem
capacidade para resistir ao desgaste que a tecnologia, não apenas o tempo,
exerce sobre este estilo musical.
Em paralelo, o autor procura fundamentar a evolução da
nossa música pop com a internacional, esclarecendo as abissais diferenças.
E ao tomar esta iniciativa o jornalista está a
determinar-nos como colonizados pelo imperialismo internacional, pela língua
anglo-saxónica, pela técnica ocidental, pelos signos da moda internacional.
A exacerbação gongórica dos adjectivos, patente em
algumas passagens do livro, está a revelar-se um estigma ideológico típico de
todo o jornalismo. Mas Estaline e Mao não passaram, dum dia para o outro, de
deuses a traidores ou déspotas?
Realmente, só a musicologia, como só a ciência política,
podem esclarecer o que é um músico ou o que é um político, respectivamente.
Mas o livro é sobre música, logo inerentemente refere a
musicologia.
4. Musicologia
Está a obra prenhe de ilustrações e, como dissemos, de
paralelismos, uns oportunos outros errados.
Por exemplo, quando o autor mete a foice nas searas
alheias.
Fala-se de jazz de forma epidérmica, convocam-se músicos
inúteis, e parece ignorar-se, porque a Imprensa ignorou a importância dum
Carlos Zíngaro, mestre de tantos músicos de rock; dum Rão Kyao, com quem
inúmeros músicos pop trabalharam; dum Jean Sarbib, hoje o grande Saheb Sarbib,
que foi o melhor músico de rock português durante o início dessa estética ou,
ainda, modéstia à parte, que o Anar Band apresentou pela primeira vez em disco
um sintetizador e levou ao Cascais Jazz 74 banda magnética para massas pop, e
trabalhou com esquemas experimentais nada longínquos de certa new wave.
Cita-se a música electrónica baseando-se na figura
burlesca de Graça Moura (neste capítulo) e sonegam-se para o esquecimento os
Emmanuel Nunes, Jorge Peixinho e até mesmo Cândido Lima.
Por vezes perde-se tempo traçando rumos de grupos
provincianos de cuja existência histórica nada ficou senão a recordação
subjectiva de terem tocado pop e cujos antigos elementos serão hoje empregados
de banco, ou chulos, ou directores de firmas discográficas.
E isto acontece porque o nosso jornalismo, deficiente,
nunca teve o cuidado de acarinhar os seus melhores artistas e músicos.
E por isso mesmo se justifica este prefácio, no sentido
em que a minha missão, e a pedido do autor, de quem sou íntimo de longa data, é
criticar a obra, fazer a releitura da fantástica quantidade de informação jornalística
nela compilada.
E, a partir do próprio livro, posso fazer uma nova visão
histórica da pop e do rock portugueses.
Esclareço que não há confusão entre pop music
(correlativa à canção popular transposta para tecnologias eléctrica) e o rock
(derivado directamente do rock-and-roll e dos rhithm-and-blues): assim, Paulo
de Carvalho foi um músico pop e Zé Nabo é um músico de rock, Fernando Girão é
pop e os UHF são rock.
Também, como é óbvio, houve e há estéticas simbióticas de
pop e rock, não podendo estas fronteiras ser tão rígidas quanto qualquer
maníaco de rótulos gostaria.
5. História
Realmente, se não tivesse lido este livro não poderia
jamais congeminar uma evolução histórica do pop-rock português, porque não
teria a possibilidade nem a perseverança do autor em remover todas as pistas
documentais que nos ficaram: resumiria uma série nebulosa de argumentos e
memórias esparsas.
Falaria de rituais e de antroporacionalogia, invocaria
deuses estrangeiros, nadaria num miasma ideológico irrelevante.
Podemos ver dois ramos diversos nesta pequena história:
José Cid
(pop)
rock (made in Portugal)
25
de Abril
Rui Veloso
UHF
(o chamado, jornalisticamente, Heróis do Mar
Pai do rock português) GNR
A corrente Cid foi campeadora de festivais de música
ligeira e descambou num aproveitamento não menos ligeiro de múltiplas
influências do blue, do music-hall, tudo mal tocado, da chachada neo-realista
pós-25 de Abril, tangencial à música de massas de Zeca Afonso, de Godinho às
bandas kolkoses nacionais, ao controverso fenómeno do Chico Fininho, cuja
música se apoia nos rhythm-and-blues em técnicas musicais e instrumentos
deficientes, mas proclamando o surto da tal estética do «rock português», donde
iriam sair todo o tipo de diarreias para-pop, apoiadas por um jornalismo
capitalisticamente comprometido com as editoras, toda uma farsa sifilítica que vive
num círculo vicioso e viciado (os empresários, os produtores, os jornalistas,
os «críticos» e os homens dos media audiovisuais são, na grande parte das
vezes, as mesmas pessoas no papel dessas diferentes personagens), convocando a
aparente coerência estética do «rock português» como quem chama «flor rubra» a
um ânus com hemorróidas.
Todos foram filhos do Veloso, em trágico edipismo, desde
os UHF da Rua do Carmo aos Trabalhadores do Comércio a chamarem a polícia.
Uma segunda perspectivação, que vem dos Chichilas,
inesquecíveis, dos magníficos Kama-Sutra, dos tecnicistas Objectivo, dos
eloquentes Pentágono, reclamando-se do rock internacional, e prossegue nos bons
flashes psicadélicos dos Tantra, «bateu» nos Táxi-disco, consolidou-se no raro
profissionalismo das actuações positivas e impositivas dos UHF, nas
hard-patadas do Arte & Ofício, entrou em apoteose nacionalista com os
futurísticos Heróis do Mar e atingiu os píncaros da glória em Independança dos
GNR.
Uma história pequena mas cheia de significados duvidosos:
a conquista da pop e do rock portugueses por um lugar na História do Rock ou da
Música.
Fixem-se, entre outros mais, os bateristas Pedro Taveira,
Álvaro Azevedo, Zé da Cadela, Tó Li, os tecladistas Graça Moura, Kevin Hoidale,
António Pinho da Silva, os guitarristas como Pipas, Zé Nabo, Filipe Mendes, os
mentores ou líderes como Jean Sarbib (baixista), Serjão, Pedro Aires Magalhães,
até ao cantor António Manuel Ribeiro e ao poeta-cantor Rui Reininho, avultando
com um Vítor Rua, decididamente num plano internacional e a estabelecer um
corte epistemorocklógico em Portugal. Cremos que sim... e como ele aparecerão
mais outros, porque nos quer parecer que o rock, na década de 80, tem um futuro
promissor e independente neste país.
Também não é de esquecer o vanguardismo da intervenção
literária junto ao público e aos músicos do rock que representou a actividade
jet-set-marginália de Manuel Castro Caldas, que reputo do mais sofisticado e
especializado conhecimento sobre rock em Portugal; bem como certas tentativas
frutíferas na Memória do Elefante e no Rock Week de António Duarte.
António Sérgio, por seu turno, mostrou a mais elevada
qualidade no seu criterioso programa radiofónico Roll’s Rock e colocou-se à
frente duma certa opinião radiodifundida bastante exigente que destruiria as
barreiras miserabilistas dos totalitarismos fascista e neo-realista,
desmascarando o gang de pseudoprodutores, que vivem à custa do trabalho dos
músicos sem a mínima espécie de intervenção estética ou relevância cultural.
Abstenho-me da problemática, já crónica, do capital
investido no rock cá em Portugal, porque não estou jamais satisfeito com a
penalização pública dos custos militares e políticos, infinitamente superiores;
tornei inerente, neste prefácio, o assunto e o livro que vai ler não descurou
também a matéria supracitada.
6. Os Magníficos 80
Dobrada a década de 70, o rock ganha foros de primazia no
mundo do comércio e do empresariato, começa a dar lucro Às firmas
discográficas, que brutalmente o obrigam a uma disco-gleba com mais-valia para
os pseudoprodutores, os canalhas das empresas a viverem à custa dos músicos, os
nababos tiranos organizadores de festivais: desde o idílico Vilar de Mouros até
às arenas dos pavilhões desportivos onde se exibem os rockers e os popers vai
um abismo. O capital toma conta do rock e a Imprensa, bem como a TV e a Rádio,
tiram o proveito.
A poesia, outrora controversa e esfumada desde «D.
Sebastião, el-rei-cão» até «se cá mijasse fazia-se cá chichi», ganha poderes
ideocráticos e começa a surgir uma onda de superpseudo-merda-vedetas como se
resumiria num só poema.
«Já fumega e atira pró tecto (jazz-rock)
Abre-latas e manda pró cano (funk-cócó)
Eu qué sê um MRPP (em merengue) e cagar blues
Band
Estorvantes, trovantes e avantes (from kremlin
With
love)
O fodro está podre e já não frodo (psicopeta)
Que bem cheiras do PI (-3,1415) e lambe-cu
(pornoxanxada)
A lêndea d’água doce nem é pau-pau nem queijo-
queijo
(freakalhada)
o corpo diplomático não dá faísca (punk-bem)
quem apanha um táxi apanha no cu (disco-pivete)
xutos e sniffs, cagajetas e punhetas (secção
junkie-tara)
eis o rock português, ó burguês!»
Mas os Heróis do Mar levantam a bandeira nacional e
ganham a luta pela sobrevivência, os UHF são exemplarmente trabalhadores e os
GNR alcandoram a nossa estética do rock new wave a um nível jamais sonhado: os
bons 80 revelam finalmente as nossas qualidades e as nossas incapacidades.
Estes três últimos anos foram mais importantes que tudo o que anteriormente se
passou, porque o rock em Portugal se libertou da imitação e do plágio, senão
leiam este livro do António Duarte só para ver a diferença entre o passado e o
presente; é que a história dá-nos a razão, e mesmo se nos estivermos nas tintas
para a tal «razão», temos o delírio de algum prazer com os nossos Heróis do
Mar, UHF e, sobretudo, os GNR.
Se ninguém é perfeito é porque o António Duarte vasculhou
toda a literatura jornalística nacional e não conseguiu vislumbrar um único
génio no rock nacional (e parece-me impossível consegui-lo), mas temos de nos
lembrar assim de nós mesmos para nos modificarmos; dos fracos não reza a
história, muito menos esta história do rock em Portugal que o António Duarte
nos oferece.
Jorge Lima Barreto
Sem comentários:
Enviar um comentário