Revista / Magazine
A4 - papel de jornal - a corres capa e contracapa
64 páginas
Publicação Trimestral
Distribuição Gratuita
Ano VI
Nº 21
Dezembro de 2004
JOHN PEEL, Music Lover
25 de Outubro de 2004. Na cidade inca de Cuzco, no Peru, um ataque cardíaco rouba a vida a John Peel. De todo o mundo chegam lágrimas dos seus órfãos: os ouvintes semanais, entre um auditório que extravasava as ilhas britânicas, as bandas que deram os primeiros passos nos seus programas, os colecionistas de “Peel Sessions” de todo o mundo, ou, em abstracto, a música popular, de todas as cores e feitios. Aquela voz nem sempre perceptível, mas entusiasta, rebelde, britanicamente sarcástica e apaixonada não volta mais aos microfones da rádio. As novas bandas, para as quais Peter Hook, numa reacção à morte do radialista, prevê vidas difíceis, não vão poder ter no seu curriculum uma sessão gravada para o programa de Peel, nem tão pouco vão poder dizer, inchadas de orgulho, coisas como “o Peel ouviu-nos e gostou!”.
John Robert Parker Ravenscroft começou a fazer rádio nos EUA, em 1962. Cinco anos depois, regressou a Inglaterra, para realizar na estação pirata Radio London o programa “The Perfume Garden”. Foi aí que se viu obrigado a mudar de nome: Ravenscroft era demasiado longo para os directores da Radio London e um funcionário sugeriu-lhe o nome Peel. Curiosamente, o novo apelido viria a tornar-se uma imagem de marca da BBC Radio One (em cujos quadros ingressou no mesmo ano do regresso a Inglaterra) devidos às Peel Sessions, sessões de estúdio exclusivas com bandas e artistas das mais diversas proveniências, tanto geográficas como estéticas, para posterior emissão nos seus programas. O obituário da BBC lembra que “quase toda a gente que é alguém no mundo da música gravou uma sessão para Peel”. Dos Pink Floyd aos Lightning bolt, dos Pixies aos Franz Ferdinand, de Marc Bolan aos Napalm Death, dos Joy Division aos Autechre, meio mundo gravou para Peel. A origem das Peel Sessions remonta ao tempo do “needletime” (tempo de agulha) dos anos 60, quando o sindicato dos músicos britânicos fixava uma quota de música gravada que as rádios podiam passar, conforme relata Ken Garner, autor do livro “In Session Tonight”. As novas Radio 1 e Radio 2, da BBC, especialmente orientadas para a música, tinham entre elas, em 1967, apenas sete horas de “needletime”. Para ultrapassar os limites, a programação via-se obrigada a incluir nas suas grelhas a emissão de música tocada ao vivo, e o novo programa de John Peel, “Top Gear”, mais tarde “John Peel Show”, não fugia à regra. Ao longo destes quase quarenta anos, o ouvido atento de Peel descobriu e ajudou a disseminar milhares de novos projectos e de revoluções estéticas que foram acontecendo. O punk, a new wave, o reggae, o hip hop e as electrónicas, para citar apenas alguns dos campos em que Peel se movimentava sem precisar de mapa, num saudável ecletismo, que contrasta fortemente com a ideia de rádios formatadas trazidas nos anos 90, nunca poderiam ter sido os mesmos se não tivesse um amigo tão esforçado e tão apaixonado quanto Peel. E muitos ouvintes encontravam aí uma prova de que é capaz de se ser simultaneamente aberto e crítico, e ainda melhor, surpreendente: quando o punk estava a rebentar em Inglaterra, e ele próprio era um dos instigadores dessa explosão, lembrou-se de gravar a cantora folk June Tabor para emitir num dos seus programas…
Era o único que até há poucas semanas, aos 65 anos de idade, continuava a apresentar novos sons com o mesmo entusiasmo que teria nos anos 60 e 70. “I may be old but the programme isn’t”, dizia numa entrevista realizada há poucos anos. Não é de estranhar que no obituário de uma revista como a Economist apareça, logo na linha por baixo de “Yasser Arafat, Leader Of The Palestians”, a seguinte inscrição: “John Peel, Music Lover”. Que bem que lhe cai o epíteto.
CURIOSIDADES
- Em 1967, Peel foi o primeiro homem da rádio a passar “Sergeant Pepper’s Lonely Heart Club Band”, dos Beatles.
- Era fanático pelos Fall. Entre as declarações que foram lembradas no funeral, ouviu-se uma onde Peel dizia: “Sou sortudo. Tenho tudo o que queria em miúdo (…). Se morrer amanhã, não terei nada de que me queixar – a não ser o facto de haver um álbum dos Fall no ano seguinte.”
- Clube favorito: Liverpool. Era habitual começar os DJ sets para os quais era convidado com uma gravação em vinil do relato do golo de Alan Kennedy ao Real Madrid, em 1981, quando o Liverpool ganhou a sua terceira Taça dos Campeões.
- Tema favorito: “Teenage Kicks”, dos Undertones. Peel Chegou a passa-lo duas vezes seguidas na rádio, algo de inédito até então. No seu funeral, ouviu-se “Teenage Kicks” e o hino do Liverpool, “You’ll Never Walk Alone”.
- Concerto favorito: The Faces, em Sunderland, 1977.
- John Peel tinha perto de trinta mil LPs em casa. Uma estação de rádio norte-americana já ofereceu um milhão de libras pelo espólio e existe também o interesse da British Library.
- O palco de novos talentos do festival de Glastonbury, de onde todos os anos Peel fazia reportagens, vai passar a ter o seu nome.
- John Peel tornou-se, em 1998, um OBE, ou seja, cavaleiro da Rainha de Inglaterra, e possuía vários doutoramentos honoris causa atribuídos por universidades britânicas.
Vítor Junqueira
LISTA
2004 – OS MELHORES DO ANO
1 – FRANZ FERDINAND: “Franz Ferdinand” (Domino / Edel)
2 – DEVENDRA BANHART: “Rejoicing In The Hands” (XL Recordings)
3 – SONIC YOUTH: “Sonic Nurse” (Geffen / Universal)
4 – MORRISSEY: “You Are The Quarry” (Attack / Sanctuary)
42 – COCOROSIE: “La Maison De Mon Rêve” (Touch & Go / Sabotage)
43 – LAURA VEIRS: “Carbon Glacier” (Bella Union / Symbiose)
44 – LIARS: “They Were Wrong So We Drowned” (Mute / EMI)
45 – THE MAGNETIC FIELDS: “I” (Nonesuch / warner)
46 – MR. DAVID VINER: “This Boy Don’t Care” (Loog)
47 – RADIO 4: “Stealing Of A Nation” (City Slang)
48 – GRAHAM COXON: “Happiness In Magazines” (parlophone)
49 – X-WIFE: “Feeding The Machine” (Nortesul)
50 – ROGUE WAVE: “Out Of The Shadow (Sub Pop / Musicactiva)
ANN SHENTON / ANA DA SILVA
Anas Em Colisão Electrónica Feminina (Versão 2004)
Ann e Ana, Ana e Ann. Uma esteve nos Add N To (X), a outra nas Raincoats. Este ano editaram respectivamente “The Electronic Bible Chapter 1” e “The Lighthouse”, dois discos onde a electrónica assume muitas formas.
A música electrónica tem sido um género em que poucas mulheres se têm aventurado – apesar da forte expansão que o género conheceu nos anos 90 -, ao contrário da área do pop-rock, onde a presença feminina sempre foi uma constante. Certamente este fenómeno tem muito a ver com o facto da música electrónica ser essencialmente instrumental, recorrendo muitas vezes a um imaginário tipicamente masculino, quer no culto do DJ nas pistas de dança, quer na presença fortemente maquinal que acontecia nos Kraftwerk. Simplesmente não parecia haver muito espaço para uma sensibilidade que fugisse ao simples apelo à dança ou ao fascínio das máquinas. Ainda assim, ao longo do tempo, diversas produtoras foram aparecendo com novas propostas, como Mira Calix, Neotropic ou Andrea Parker. As coisas só começaram verdadeiramente a mudar quando a pop começou a apropriar-se novamente da electrónica, na onda de revivalismo dos anos 80, que caracteriza o electroclash. As Chicks On Speed, estiveram, de certa forma, na liderança desse movimento feminista, trazendo grupos como as Le Tigre ou os DAT Politics para uma ribalta quase a raiar o mainstream. No lado mais intrspospectivo da indietrónica, apareceram também os Lali Puna liderados por Valerie Trebeljahr, e tornou-se óbvio que as mulheres tinham chegado à electrónica e estavam a trazer algo de novo. Chegamos a 2004 e surgem álbuns de Ann Shenton [ex-Add N To (X] e Ana Da Silva (ex-Raincoats, agora amadrinhada pelas Chicks On Speed).
Ann Shenton foi certamente uma das pioneiras femininas na electrónica. Ex-membro do trio Add N To (X), Ann é uma exímia instrumentista fascinada por instrumentos electrónicos antigos como os Moog ou o Theremin. Mais importante ainda, os Add N To (X) foram uma banda fundamental na integração do rock mais experimental da época (pós-rock?) num contexto electrónico, buscando inspiração no krautrock dos Neu! Ou Can; na electrónica divertida de Jean Jacques Perrey ou de Raymond Scott; no underground sórdido das bibliotecas de sons de filmes pornográficos e no rock de uns Cramps e de uns Suicide (se não no som, pelo menos na atitude). A extinção dos Add N To (X) foi o resultado natural de um projecto que explorou o que tinha para explorar, e Ann Shenton virou-se imediatamente para um projecto a solo adaptando o nome de Large Number (título de uma canção dos Add N To (X), lançado no ano passado “Spray On Sound”. Neste primeiro álbum de originais o fascínio pelo retro é exacerbado por sons que parecem vir directamente de um estranho clube nocturno dos anos 70. Com muitos ecos de Raymond Scott pelo meio, é um álbum simultaneamente experimental e divertido quanto baste para o tornar quase pop. Este ano, e depois da aparição no Festival Número, em Lisboa, Ann Shenton propõe uma colectânea ironicamente chamada de “The Electronic Bible Chapter I”, o que parece ser uma espécie de resposta à compilação de temas antigos de electrónica “Connectors” do ex-companheiro dos Add N To (X), Barry 7. Só que para Ann Shenton faz tanto sentido o presente / futuro quanto o passado, e é assim que na sua compilação marcam presença nomes como Sean O’Hagan dos High Llamas (e colaborador assíduo dos Stereolab) ou Richard H Kirk, dos Cabaret Voltaire (sob o pseudónimo Pat Riot). Entre o retro e o noise futuristas Ann Shenton não conhece barreiras, apontando diferentes perspectivas musicais.
A presença de Ana da Silva na editora das Chicks On Speed é uma daquelas coisas que deve dar mais prestígio à editora que à artista. Presença fundamental da new-wave no início dos anos 80 através das Raincoats, a portuguesa Ana da Silva atravessou uma fase de semi-obscurantismo até que um dia Kurt Cobain a redescobriu numa livraria de Londres. De pioneira da new-wave a exploradora de novos sons com um instrumento electrónico digital, que lhe caiu nas mãos, vai apenas um pequeno passo. E é fácil de perceber que algo assim seria inevitável acontecer quando se ouve “The Lighthouse”, o seu novo álbum. Pegando num passado que não se deita para trás assim tão facilmente, a sonoridade das Raincoats e dos Young Marble Giants aparece recontextualizada num novo mundo digital, explorando as possibilidades de fazer canções dentro das perspectivas que o novo brinquedo abriu para Ana da Silva. Curiosamente, em muitas canções, “The Lighthouse” lembra “Scary World Theory” dos Lali Puna, e não só por causa de algumas canções serem cantadas em português. Tal como os Neu! E os United States Of America foram bandas importantíssimas para os Stereolab e Broadcast, os Young Marble Giants e Laurie Anderson são a grande fonte de inspiração dos Lali Puna e de Ana da Silva. Os arquétipos do passado são usados então em “The Lighthouse”, permitindo a produção de um som mais acessível para os ouvintes desejosos por canções e pouco adeptos das paisagens sonoras da música instrumental.
Até que ponto o impacto da sensibilidade feminina vai ser importante na electrónica só o futuro dirá. Para já as duas An (n)as distinguem-se por um universo pessoal completamente aparte dos seus pares. No fundo a boa música não conhece géneros sexuais: brota de pessoas que sentem que têm algo para dizer ao mundo.
César A. Laia
Discos
LAIBACH
Anthems (CD Mute)
Os Laibach, eminentes pseudo-fascistas da Eslovénia, são herdeiros da atitude provocadora dos Throbbing Gristle e foram uma das bandas mais importantes da cena industrial dos anos 80. Com um humor corrosivo, os Laibach apropriaram-se da estética militarista fascista como meio de provocação das flores luminosas da pop de então. E não olharam a meios para o fazer, como demonstra esta compilação. Canções horripilantes como “The Final Countdown” dos Europe ou “In The Army Now” dos Status Quo foram revisitadas como uma caricatura, onde tudo o que estaria menos evidente se torna claro como água. A boçalidade foi usada como uma arma, mas também serviu para transformar canções dos Beatles como “Get Back” em hinos para fascistas desprevenidos. “Anthems” demonstra toda esta evolução, desde o passado ainda agarrado aos Throbbing Gristle, passando pela sátira, até ao presente com a excelenete canção “Tanz Mit Laibach”. Tudo isto acompanhado de um segundo CD com remisturas difíceis de encontrar, para atrair os fãs que têm os álbuns todos. Há que redescobrir os Laibach, e nada melhor do que começar por aqui.
(9/10)
CAL
STEALING ORCHESTRA
Bu! (MP3 You Are Not Stealing Records)
Os criminosos voltam sempre ao local do crime. Os maiores ladrões de samples que se conhecem em Portugal, regressam ao Far-West dos assaltos a carruagens de sons, prontos a montar, desmontar e remontar o que se apanhar. É a lógica dos irmãos Metralha aplicada à música, e qual é o melhor sítio para uma banda como esta lançar EPs? Uma netlabel, pois claro! E como se diz que ladrão que rouba a ladrão tem mil mp3 de perdão… “Bu!” é o segundo EP dos Stealing Orchestra lançado na netlabel You Are Not Stealing Records, e sucede ao irreverente “É Português?! Não Gosto!”. A forma como os Stealing Orchestra têm evoluído é notável. Quando começaram, com o álbum “Stereogamy”, tinham imensas boas ideias, mas eram ainda mal aplicadas. Eram um circo ainda com os palhaços por todo o lado e faltava um pouco de organização. Já no ano passado, contudo, “The Incredible Shrinking Band”, o segundo álbum, mostrava uma banda que preferia a ironia è piada desbragada da D. Lina, tornando-se mais refinada e atenta aos pormenores. “Bu!” é a evolução lógica do álbum do ano passado, apontando ainda mais para um imaginário cinemático underground, à procura dos monstros da série Z. Bem, não é tanto assim, afinal agora surgem textos de Miguel Torga e de Alexandre O’Neill. Marco Paulo deu lugar à literatura? Não, o que aconteceu foi uma apropriação dos textos para a criação de ambientes de terror, quase a lembrar Vincent Price ou então Mão Morta, nas declamações descritivas do terror feitas por Adolfo Luxúria Canibal. “Bu!” lembra mais filmes do que discos de outros grupos. Ou seja, este bando de malfeitores está cada vez mais a cruzar as plataformas mas entre a música e a imagem, entre o humor e o gore. O medo vai ter tudo, inclusive um excelente EP de graça.
(8,5/10)
César A. Laia
Clássicos
SCARLET STREET
Fritz Lang (USA 1945)
Fritz Lang foi reconhecidamente um dos realizadores imigrantes em Hollywood que mais se preocupou com o cariz não linear de desenvolvimento do comportamento das personagens. A sua abordagem cinematográfica passou repetidamente pela procura do lado recôndito, obscuro e pessimista da condição humana, na perspectiva da sua génese e da sua manifestação mais consequente. Esta direcção, alinhada com os principais arquétipos do filme noir, contribuiu fortemente para a caracterização desse género e para a sua solidificação e disseminação no período do pós-guerra. Scarlet Street tornou-se uma das principais marcas iconoclastas do mestre Lang e desse género transversal que é o film noir. Lang reutilizou o trio de actores do seu filme anterior “The Woman In The Window” – Edward J. Robinson, Joan Bennett e Dan Duryea -, na mesma trama triangular clássica. Robinson é Christopher Cross (excelente a sua conotação com o significado do diminutivo criss-cross), um homem de meia-idade, caixa de um banco, desiludido com a monotonia problemática da sua vida afectiva, resultado de um casamento despropositado com uma mulher anódina, tendo, no entanto, nas suas aspirações artísticas de pintor, a única fuga ao seu tormento quotidiano. O aparecimento casual de Kitty March (Joan Bennett) na sua vida facilmente se torna uma via para a sua realização pessoal e afectiva, cedendo imediatamente às suas faculdades físicas e representação de liberdade. Kitty, mulher de expedientes fáceis sempre à procura do próximo golpe, ladeada por Johnny (Dan Duryea), híbrido de namorado e chulo, aceita a relação na suposição de que Chris é um pintor rico e excêntrico de Manhattan. A preocupação psicanalítica de Lang em conferir um realismo cru, de certa forma frio, ao percurso de Chris realça e eleva o drama e a profundidade da história. A não linearidade referida no início torna-se evidente na associação que Lang trabalha entre contexto-causa-efeito: um homem com valores éticos tradicionais, uma aderência procurada ao adultério e a inusitada recorrência ao roubo, mentira e… crime. Lang como que opera uma metamorfose no triângulo de personagens da sua trama juntando imaginariamente os três vértices num mesmo ponto comum. A conclusão do filme é extraordinariamente brutal, sem concessões, mostrando os caminhos para lelos da punição como uma realidade comum e fulminante nas suas consequências e sem necessidade de promoção artificial de moral (o que nos faz pensar em “M”, outra obra-prima assinada pelo mestre ainda na Alemanha). Trata-se de um dos finais mais emblemáticos, surpreendentes e marcanteMiguel S. Leocádios da história do cinema, ao lado de “White Heat”, de Raoul Walsh, e “Kiss Me Deadly”, de Robert Aldrich. Um tour-de-force negro, frio e sem eufemismos. Para ver e rever, sobretudo para quem tem saudades de “filmes totais”, que não sucumbem na sua criatividade aos sessenta minutos.
autor: Luís Jerónimo e Tiago Carvalho (compilação) - Prefácio: Victor Afonso (Kubik) título: Escritos de Fernando Magalhães - Volume XI: 2003
editora: Lulu Publishing
nº de páginas: 592
isbn: none
data: Julho de 2018
PREFÁCIO
Fernando Magalhães – O Espírito Inquieto
Por Victor Afonso
Fernando Magalhães era um espírito inquieto. Para já,
adorava o que fazia, que era ouvir música e escrever sobre ela. Ir a concertos
e partilhar opiniões com os amigos. Ouvir discos e falar deles apaixonadamente
até altas horas num bar do Bairro Alto. A sua inquietação dizia respeito ao
prazer de descobrir constantemente música nova e a satisfação (quase pueril) de
a dar a conhecer aos seus leitores. Ou
evocar a boa música do passado (anos 70 e 80). Gostava de muitos géneros
musicais diferentes, e abria o espectro da curiosidade estética até ao limite
do horizonte, que é como quem diz, até à plena diversidade artística.
Interessava-lhe primeiramente a qualidade da arte musical. Só depois surgiam os
rótulos, quase sempre necessários para etiquetar este ou aquele disco, este ou
aquele estilo.
Mas este sempre foi um país que liga muito pouco à
crítica de arte. Os críticos que escrevem para a imprensa generalista ou
especializada, sejam de música, cinema, artes plásticas, literatura, ou de
teatro, têm a nobre função de divulgar e promover os objetos culturais que
analisam. Mas para quem escrevem os críticos? A verdade é que, na esmagadora
maioria dos casos, os críticos escrevem para o próprio umbigo, para uns quantos
iniciados e para... os outros críticos. É um círculo vicioso que em nada
beneficia o leitor médio de jornais ou revistas. O exercício da crítica deve
conter tanto de informativo como de emissão de juízo de valor e,
tendencialmente, elaborada numa linguagem o menos técnica e hermética possível.
Ora, no caso do Fernando Magalhães, a sua tónica era a de tornar percetível a
toda a gente o seu discurso crítico. Não queria nada com linguagens académicas
ou herméticas, queria que a sua análise chegasse ao maior número de pessoas
possível. Talvez esta sensibilidade se devesse ao facto do Fernando ter sido
formado em filosofia, e só mais tarde enveredaria pelo jornalismo por manifesta
paixão. A filosofia deu-lhe ferramentas para saber escrever com superior
qualidade, quer no conteúdo, quer na forma. Assim como certamente lhe abriu
diferentes portas de perceção analítica, de abordagem crítica e de pensamento
discursivo.
Durante anos escreveu para diversas publicações, mas
foi no (então) semanário Blitz e
no diário Público que
a escrita de Fernando Magalhães se fez notar e granjeou uma pequena legião de
seguidores. Para além do grande domínio da língua portuguesa, o jornalista tinha
uma vasta e diversificada cultura musical, que lhe permitia dissertar com a
mesma desenvoltura sobre fado, krautrock, eletrónica experimental, folk ou jazz(foi a ler muitas das
suas críticas que desenvolvi o gosto pelas mestiçagens estéticas). Depois,
detinha um sentido de humor férreo e sarcástico, sobretudo quando fazia
reportagens de concertos ao vivo, com aquele seu olhar tão atento aos
pormenores e às relações improváveis que estabelecia entre matérias como
literatura, história, filosofia, cinema e, naturalmente, música. Tanto revelava
valores musicais emergentes e obscuros como escrevia longas recensões sobre
artistas consagrados como Frank
Zappa, Residents, King
Crimson, Anthony Braxton, Dead Can
Dance, Tom Waits, Kepa Junkera ou (o seu muito amado) Peter Hammil. Muitas vezes se queixou
que o Público não lhe dava rédeas soltas para escrever sobre aquilo que queria
realmente escrever (dado que privilegiava as correntes musicais marginais e
alternativas), facto que lhe proporcionava uma angústia crescente enquanto
profissional da escrita jornalística. A crítica musical de Fernando Magalhães
era cirúrgica, extremamente bem construída, inteligente, pragmática e
pedagógica (a tal premissa importante mas desprezada por muitos críticos).
Outra das suas características particulares: adorava elaborar listas. Listas
dos melhores discos de cada ano e de cada género musical. Fez muitas dezenas de
listas que divulgava nos jornais e na internet – como nesse magnânimo e
insurreto fórum SONS, sítio online de boa memória com quem partilhava e
discutia descontraidamente com muitas dezenas de amigos (muitos deles
virtuais).
Voltando ao início e
reiterando esta ideia: Fernando Magalhães exercitava com enorme prazer o seu
gosto pela música, qual criança que descobria um brinquedo novo e excitante.
Era um fervoroso militante no exercício da divulgação musical e não fazia
concessões de gosto. Escrevia com prazer, e com prazer dissertava sobre as
sonoridades que o fascinavam. Como diria o também saudoso radialista António
Sérgio, o Fernando tinha esse poder de “incendiar o imaginário dos leitores”, o
que não é dizer pouco. Pelo contrário, é dizer tudo, e só podia ser assim vindo
de um espírito inquieto.
#60 - "Brian Eno (starsailor)" Fernando Magalhães 08.01.2002 150308 Do período pop: Here Come the Warm Jets (1973) - 9/10 Takin...
Escritos de Fernando Magalhães em Livro
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Novo - Volume 1.2 - 1991
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Novo - Volume 1.1 - 1988/1990
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LULU (versões mais antigas - com alguns textos em falta, entretanto descobertos. Tal já não acontece com as versões mais actuais, publicadas agora na Bubok - Portugal - ver acima)
Volume 1 - 1988/1991
Volume 2 - 1992/1994 (460 páginas, formato maior que A4)
Volume 3 - 1995 (336 páginas, formato maior que A4)
Volume 4 - 1996 (330 páginas, formato maior que A4)
Volume 5 - 1997 (630 páginas, formato maior que A4)
Volume 6 - 1998 (412 páginas, formato maior que A4)
Volume 7 - 1999 (556 páginas, formato maior que A4)
Volume 8 - 2000 (630 páginas, formato maior que A4)
Volume 9 - 2001 (510 páginas, formato maior que A4)
Volume 10 - 2002 (428 páginas, formato maior que A4)
Volume 11 - 2003 (606 páginas, formato maior que A4)
Volume 12 - 2004/2005 (476 páginas, formato maior que A4)