3.7.18

Livros sobre música que vale a pena ler - Cromo #74: Luís Jerónimo e Tiago Carvalho (compilação) - "Escritos de Fernando Magalhães - Volume XI: 2003"


autor: Luís Jerónimo e Tiago Carvalho (compilação) - Prefácio: Victor Afonso (Kubik)
título: Escritos de Fernando Magalhães - Volume XI: 2003
editora: Lulu Publishing
nº de páginas: 592
isbn: none
data: Julho de 2018

 Vol 11

PREFÁCIO

Fernando Magalhães – O Espírito Inquieto
Por Victor Afonso

Fernando Magalhães era um espírito inquieto. Para já, adorava o que fazia, que era ouvir música e escrever sobre ela. Ir a concertos e partilhar opiniões com os amigos. Ouvir discos e falar deles apaixonadamente até altas horas num bar do Bairro Alto. A sua inquietação dizia respeito ao prazer de descobrir constantemente música nova e a satisfação (quase pueril) de a dar a conhecer aos seus leitores.  Ou evocar a boa música do passado (anos 70 e 80). Gostava de muitos géneros musicais diferentes, e abria o espectro da curiosidade estética até ao limite do horizonte, que é como quem diz, até à plena diversidade artística. Interessava-lhe primeiramente a qualidade da arte musical. Só depois surgiam os rótulos, quase sempre necessários para etiquetar este ou aquele disco, este ou aquele estilo.
Mas este sempre foi um país que liga muito pouco à crítica de arte. Os críticos que escrevem para a imprensa generalista ou especializada, sejam de música, cinema, artes plásticas, literatura, ou de teatro, têm a nobre função de divulgar e promover os objetos culturais que analisam. Mas para quem escrevem os críticos? A verdade é que, na esmagadora maioria dos casos, os críticos escrevem para o próprio umbigo, para uns quantos iniciados e para... os outros críticos. É um círculo vicioso que em nada beneficia o leitor médio de jornais ou revistas. O exercício da crítica deve conter tanto de informativo como de emissão de juízo de valor e, tendencialmente, elaborada numa linguagem o menos técnica e hermética possível. Ora, no caso do Fernando Magalhães, a sua tónica era a de tornar percetível a toda a gente o seu discurso crítico. Não queria nada com linguagens académicas ou herméticas, queria que a sua análise chegasse ao maior número de pessoas possível. Talvez esta sensibilidade se devesse ao facto do Fernando ter sido formado em filosofia, e só mais tarde enveredaria pelo jornalismo por manifesta paixão. A filosofia deu-lhe ferramentas para saber escrever com superior qualidade, quer no conteúdo, quer na forma. Assim como certamente lhe abriu diferentes portas de perceção analítica, de abordagem crítica e de pensamento discursivo.
Durante anos escreveu para diversas publicações, mas foi no (então) semanário Blitz e no diário Público que a escrita de Fernando Magalhães se fez notar e granjeou uma pequena legião de seguidores. Para além do grande domínio da língua portuguesa, o jornalista tinha uma vasta e diversificada cultura musical, que lhe permitia dissertar com a mesma desenvoltura sobre fado, krautrock, eletrónica experimental, folk ou jazz (foi a ler muitas das suas críticas que desenvolvi o gosto pelas mestiçagens estéticas). Depois, detinha um sentido de humor férreo e sarcástico, sobretudo quando fazia reportagens de concertos ao vivo, com aquele seu olhar tão atento aos pormenores e às relações improváveis que estabelecia entre matérias como literatura, história, filosofia, cinema e, naturalmente, música. Tanto revelava valores musicais emergentes e obscuros como escrevia longas recensões sobre artistas consagrados como Frank Zappa, Residents, King Crimson, Anthony Braxton, Dead Can Dance, Tom Waits, Kepa Junkera ou (o seu muito amado) Peter Hammil. Muitas vezes se queixou que o Público não lhe dava rédeas soltas para escrever sobre aquilo que queria realmente escrever (dado que privilegiava as correntes musicais marginais e alternativas), facto que lhe proporcionava uma angústia crescente enquanto profissional da escrita jornalística. A crítica musical de Fernando Magalhães era cirúrgica, extremamente bem construída, inteligente, pragmática e pedagógica (a tal premissa importante mas desprezada por muitos críticos). Outra das suas características particulares: adorava elaborar listas. Listas dos melhores discos de cada ano e de cada género musical. Fez muitas dezenas de listas que divulgava nos jornais e na internet – como nesse magnânimo e insurreto fórum SONS, sítio online de boa memória com quem partilhava e discutia descontraidamente com muitas dezenas de amigos (muitos deles virtuais).

Voltando ao início e reiterando esta ideia: Fernando Magalhães exercitava com enorme prazer o seu gosto pela música, qual criança que descobria um brinquedo novo e excitante. Era um fervoroso militante no exercício da divulgação musical e não fazia concessões de gosto. Escrevia com prazer, e com prazer dissertava sobre as sonoridades que o fascinavam. Como diria o também saudoso radialista António Sérgio, o Fernando tinha esse poder de “incendiar o imaginário dos leitores”, o que não é dizer pouco. Pelo contrário, é dizer tudo, e só podia ser assim vindo de um espírito inquieto.


ÍNDICE


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