autor: Luís Jerónimo e Tiago Carvalho (compilação) - Prefácio: Victor Afonso (Kubik)
título: Escritos de Fernando Magalhães - Volume XI: 2003
editora: Lulu Publishing
nº de páginas: 592
isbn: none
data: Julho de 2018
PREFÁCIO
Fernando Magalhães – O Espírito Inquieto
Por Victor Afonso
Fernando Magalhães era um espírito inquieto. Para já,
adorava o que fazia, que era ouvir música e escrever sobre ela. Ir a concertos
e partilhar opiniões com os amigos. Ouvir discos e falar deles apaixonadamente
até altas horas num bar do Bairro Alto. A sua inquietação dizia respeito ao
prazer de descobrir constantemente música nova e a satisfação (quase pueril) de
a dar a conhecer aos seus leitores. Ou
evocar a boa música do passado (anos 70 e 80). Gostava de muitos géneros
musicais diferentes, e abria o espectro da curiosidade estética até ao limite
do horizonte, que é como quem diz, até à plena diversidade artística.
Interessava-lhe primeiramente a qualidade da arte musical. Só depois surgiam os
rótulos, quase sempre necessários para etiquetar este ou aquele disco, este ou
aquele estilo.
Mas este sempre foi um país que liga muito pouco à
crítica de arte. Os críticos que escrevem para a imprensa generalista ou
especializada, sejam de música, cinema, artes plásticas, literatura, ou de
teatro, têm a nobre função de divulgar e promover os objetos culturais que
analisam. Mas para quem escrevem os críticos? A verdade é que, na esmagadora
maioria dos casos, os críticos escrevem para o próprio umbigo, para uns quantos
iniciados e para... os outros críticos. É um círculo vicioso que em nada
beneficia o leitor médio de jornais ou revistas. O exercício da crítica deve
conter tanto de informativo como de emissão de juízo de valor e,
tendencialmente, elaborada numa linguagem o menos técnica e hermética possível.
Ora, no caso do Fernando Magalhães, a sua tónica era a de tornar percetível a
toda a gente o seu discurso crítico. Não queria nada com linguagens académicas
ou herméticas, queria que a sua análise chegasse ao maior número de pessoas
possível. Talvez esta sensibilidade se devesse ao facto do Fernando ter sido
formado em filosofia, e só mais tarde enveredaria pelo jornalismo por manifesta
paixão. A filosofia deu-lhe ferramentas para saber escrever com superior
qualidade, quer no conteúdo, quer na forma. Assim como certamente lhe abriu
diferentes portas de perceção analítica, de abordagem crítica e de pensamento
discursivo.
Durante anos escreveu para diversas publicações, mas
foi no (então) semanário Blitz e
no diário Público que
a escrita de Fernando Magalhães se fez notar e granjeou uma pequena legião de
seguidores. Para além do grande domínio da língua portuguesa, o jornalista tinha
uma vasta e diversificada cultura musical, que lhe permitia dissertar com a
mesma desenvoltura sobre fado, krautrock, eletrónica experimental, folk ou jazz (foi a ler muitas das
suas críticas que desenvolvi o gosto pelas mestiçagens estéticas). Depois,
detinha um sentido de humor férreo e sarcástico, sobretudo quando fazia
reportagens de concertos ao vivo, com aquele seu olhar tão atento aos
pormenores e às relações improváveis que estabelecia entre matérias como
literatura, história, filosofia, cinema e, naturalmente, música. Tanto revelava
valores musicais emergentes e obscuros como escrevia longas recensões sobre
artistas consagrados como Frank
Zappa, Residents, King
Crimson, Anthony Braxton, Dead Can
Dance, Tom Waits, Kepa Junkera ou (o seu muito amado) Peter Hammil. Muitas vezes se queixou
que o Público não lhe dava rédeas soltas para escrever sobre aquilo que queria
realmente escrever (dado que privilegiava as correntes musicais marginais e
alternativas), facto que lhe proporcionava uma angústia crescente enquanto
profissional da escrita jornalística. A crítica musical de Fernando Magalhães
era cirúrgica, extremamente bem construída, inteligente, pragmática e
pedagógica (a tal premissa importante mas desprezada por muitos críticos).
Outra das suas características particulares: adorava elaborar listas. Listas
dos melhores discos de cada ano e de cada género musical. Fez muitas dezenas de
listas que divulgava nos jornais e na internet – como nesse magnânimo e
insurreto fórum SONS, sítio online de boa memória com quem partilhava e
discutia descontraidamente com muitas dezenas de amigos (muitos deles
virtuais).
Voltando ao início e
reiterando esta ideia: Fernando Magalhães exercitava com enorme prazer o seu
gosto pela música, qual criança que descobria um brinquedo novo e excitante.
Era um fervoroso militante no exercício da divulgação musical e não fazia
concessões de gosto. Escrevia com prazer, e com prazer dissertava sobre as
sonoridades que o fascinavam. Como diria o também saudoso radialista António
Sérgio, o Fernando tinha esse poder de “incendiar o imaginário dos leitores”, o
que não é dizer pouco. Pelo contrário, é dizer tudo, e só podia ser assim vindo
de um espírito inquieto.
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