autor: Luís Jerónimo e Tiago Carvalho (compilação) - Prefácio: Vitor Joaquim
título: Escritos de Fernando Magalhães - Volume XII: 2004/2005
editora: Lulu Publishing
nº de páginas: 476
isbn: none
data: Dezembro de 2018
PREFÁCIO
À escuta no
MARR
Por Vitor Joaquim
É
com grande prazer e uma imensa gratidão que dedico estas minhas palavras ao
fugaz amigo Fernando Magalhães. Há já algumas semanas que o Tiago Carvalho me
convidou para escrever o prefácio de mais uma série de escritos do FM. Ao longo
deste tempo, tenho pensado no que dizer sobre ele. Na verdade, sinto que era
capaz de estar horas a fio a falar do FM, porque para falar dele é preciso
metermos o mundo todo na conversa, implica não deixar nada de fora e ter tudo
em consideração. É pensar em tudo e em nada ao mesmo tempo. Daí que me tenha
sido tão difícil começar. Não por não querer, mas por não saber como começar ou
sequer saber sobre o que falar.
Tendo ele escrito palavras que se viriam a revelar fundamentais para mim, sobre discos meus, o processo fica imediatamente contaminado pela subjectividade de um olhar que nunca poderá ser neutro. Devo-lhe mais do que muito por tudo o que escreveu sobre o meu trabalho, e só por isso, já lhe fico eternamente grato. Mas depois de muito revolver as memórias que dele transporto, acho que muito mais importante do que falar sobre o que ele escreveu sobre mim é falar daquilo que tínhamos em comum, eu como músico e ele como ouvinte: o prazer de ouvir e descobrir o mundo através da música. Esse prazer que parece começar a perder-se na forma desenfreada como hoje se ouve música e que aproxima a relação muito mais a um processo de consumo do que a um processo de fruição. Muito se tem escrito sobre a forma desenfreada e a rapidez com que actualmente se ouve música. Sendo certo que uma elevada percentagem das músicas tocadas não são ouvidas na sua totalidade até ao fim, começa a ser por demais evidente que a tendência tende a acentuar-se a cada ano que passa. Fruto de uma insatisfação e de uma inquietação permanente, as novas gerações de ouvintes de música, vêem-se muito mais a si próprios como consumidores do que como amantes da escuta.
Nesse sentido, a memória do FM impõe-se-me imediatamente sobretudo pela forma como cultivava a atenção pela escuta e pela ponderação proporcionada pelo momento de ouvir. Um momento que se intuía mágico e simultaneamente reflexivo. Quase como se fosse um momento religioso.
Tendo ele escrito palavras que se viriam a revelar fundamentais para mim, sobre discos meus, o processo fica imediatamente contaminado pela subjectividade de um olhar que nunca poderá ser neutro. Devo-lhe mais do que muito por tudo o que escreveu sobre o meu trabalho, e só por isso, já lhe fico eternamente grato. Mas depois de muito revolver as memórias que dele transporto, acho que muito mais importante do que falar sobre o que ele escreveu sobre mim é falar daquilo que tínhamos em comum, eu como músico e ele como ouvinte: o prazer de ouvir e descobrir o mundo através da música. Esse prazer que parece começar a perder-se na forma desenfreada como hoje se ouve música e que aproxima a relação muito mais a um processo de consumo do que a um processo de fruição. Muito se tem escrito sobre a forma desenfreada e a rapidez com que actualmente se ouve música. Sendo certo que uma elevada percentagem das músicas tocadas não são ouvidas na sua totalidade até ao fim, começa a ser por demais evidente que a tendência tende a acentuar-se a cada ano que passa. Fruto de uma insatisfação e de uma inquietação permanente, as novas gerações de ouvintes de música, vêem-se muito mais a si próprios como consumidores do que como amantes da escuta.
Nesse sentido, a memória do FM impõe-se-me imediatamente sobretudo pela forma como cultivava a atenção pela escuta e pela ponderação proporcionada pelo momento de ouvir. Um momento que se intuía mágico e simultaneamente reflexivo. Quase como se fosse um momento religioso.
E
é justamente a esse propósito que gostaria de recordar uma noite de escuta
partilhada que jamais esquecerei. Não me recordo do dia de semana ou sequer do
ano. Tenho como certo que não terá sido muito antes da sua morte, mas é tudo o
que recordo em termos temporais.
Por
iniciativa de uma série de amigos, entre os quais se inclui o Tiago Carvalho, o
Luis Marvão e o Silva, realizou-se no bar MARR, em Setúbal, uma sessão de
escuta da autoria do FM. Aquilo a que hoje em dia se poderia considerar um
verdadeiro trabalho de curadoria contemporânea.
A
sessão consistia em estar num bar a fazer duas coisas, basicamente: beber (uma
inevitabilidade) e ouvir. Sendo um bar com um sistema de som razoável, não
havia propriamente nada de estranho na proposta. É aliás algo que se faz
habitualmente em bares. O que este programa tinha de inovador é que quase
ninguém falava enquanto a música desfilava. Quase toda a atenção era dedicada a
ouvir e circular pelo espaço de uma forma que mais parecia de deambulação do
que de se querer ir a algum lado. Conforme o momento, uns circulavam
lentamente, outros ficavam parados a ouvir e a contemplar o som. Se é que se
pode contemplar o som.
Havia
ainda assim, um pormenor filho da mãe nesta produção: antes de iniciar a
sessão, o FM distribuía a cada um dos presentes uma folha A4 com os temas que
iam desfilar durante a noite. No entanto, havia um elemento surpresa: uma das
músicas tocadas não constava da lista. Ou seja, a lista não estava realmente
completa. No final, quem a conseguisse identificar (na realidade, descobrir)
recebia das mãos do próprio FM um disco por ele oferecido. Este pózinho de
perlimpimpim era o suficiente para deixar toda a gente com as antenas no ar
durante o tempo de escuta e ouvir passava a ser uma ocupação a tempo inteiro.
Não
menos importante era naturalmente o alinhamento dos temas. Era muito comum,
depois de um tema dos Panasonic (ou Pan Sonic, conforme) poder-se ouvir um tema
de Bach. Ou ao contrário. O inesperado fazia parte da receita e a
imprevisibilidade tornava cada momento um verdadeiro deleite de audição. Cada
um de nós, com um copo numa das mãos e uma folha A4 na outra, espremia-se até
ao tutano por identificar cada um dos novos temas que iam desfilando, gozando
cada momento de escuta ao máximo, alimentado pela vaga esperança de vir a
descobrir o tema escondido da sessão.
Enquanto isso, o FM passeava-se pelo bar, olhando-nos com um misto de curiosidade, desafio e deleite. Largava uma dica aqui, uma dica ali e lá ia sorrindo, passeando-se de pessoa em pessoa, de forma a que a conversa não pudesse nunca ganhar raiz e retirar peso à escuta. Ficou-me a sensação de que nesses momentos nos sentíamos todos nas suas mãos, da mesma forma que estamos nas mãos de quem opera um comboio de uma montanha russa, totalmente vulneráveis e simultaneamente entusiasmados com a viagem.
Nesses momentos tudo era simples e cada um de nós era como uma criança, sempre de ouvidos abertos e à descoberta do mundo. Para todos os efeitos, só existia aquilo, ouvir.
Enquanto isso, o FM passeava-se pelo bar, olhando-nos com um misto de curiosidade, desafio e deleite. Largava uma dica aqui, uma dica ali e lá ia sorrindo, passeando-se de pessoa em pessoa, de forma a que a conversa não pudesse nunca ganhar raiz e retirar peso à escuta. Ficou-me a sensação de que nesses momentos nos sentíamos todos nas suas mãos, da mesma forma que estamos nas mãos de quem opera um comboio de uma montanha russa, totalmente vulneráveis e simultaneamente entusiasmados com a viagem.
Nesses momentos tudo era simples e cada um de nós era como uma criança, sempre de ouvidos abertos e à descoberta do mundo. Para todos os efeitos, só existia aquilo, ouvir.
Acabada
a sessão, o entusiasmo era geral, desatava tudo à conversa a tentar revisitar o
alinhamento e a descortinar o tema escondido. O bar Marr, esse, passava a ser
aquilo que era normalmente: um bar igual a tantos outros. As nossas cabeças é
que não eram nada iguais ao normal, fervilhavam pela noite dentro ressoando muito
para além daquelas escassas horas de deleite. E provavelmente, sem que o
percebamos, ainda hoje ressoam a esse momento.
Vitor Joaquim
29-11-2018
Fm12 Indice by on Scribd
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