Artigo que saiu no jornal LP
páginas 22 e 23
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Jornal LP
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Página 22 e 23
OCASO ÉPICO
Esta é uma realidade
completamente ficcionada e os nomes de pessoas não foram alterados, contendo
uma visão puramente emocional e especulativa, sobre o assunto.
Trata-se duma cassete,
contendo material sonoro, capaz de vos surpreender, tal como me sucedeu a mim.
É do amanhã que a coisa trata.
Preso por ter cão e preso por
não o ter, o projecto musical de Carlos Farinha tem sido, em meu entender,
tomado como uma abordagem leviana das mais actualizadas correntes musicais de
vanguarda.
Um olhar ao passado, aponta
para uma personalização constante do percurso musical do colectivo Ocaso Épico.
A escola musical da corrente
de que Farinha Master, outro dos alter-egos por que é conhecido o músico, pode
reconhecer-se como a música saloia de vanguarda.
De Farinha e de todas as suas
propostas já não há que esperar surpresas. Quer dizer, não havia até esta
cassete me ter vindo parar às mãos. Deixo para discussões posteriores, vínculo
especulativo desta afirmação.
A surpresa foi gerada nos
quase sessenta minutos de aventura auditiva, impregnados de calor, sangue e
nervos, enfim, como uma viagem que se inicia relutante e se acaba a voltar a
fita para trás num incandescente desejo de ouvir de novo. Façam de conta que
estão a sintonizar uma qualquer estação radiofónica marroquina – aqui, rádio
macau – e predisponham-se então a viajar comigo.
O DESCONCERTANTE “MUITO
OBRIGADO” DEU EM “DESPERDÍCIOS”
O chefe do estabelecimento
prisional de Lisboa saúda-vos!
Depois, enquanto a fita passa,
o chefe discursa. Marcial.
Ao longe, um réptil ácido
geme. Alto.
Sejam bem-vindos. Outro
gemido.
Palo alto-falante, percebe-se
que a vida treme, algures filtrada em ruídos tecnológicos. Sintetizadores.
Acordes repetidos com uma sabedoria e corrosiva ironia.
No entanto, bate um coração.
Com pressa.
Primeira surpresa – a electrónica
finalmente torna-se visceral. Ao estímulo sonoro, corresponde imediatamente uma
resposta sensorial não intelectualizada. Ao coração acontece bater. Apressado.
Intervenção do locutor de
serviço para anúncio das horas e respectivo discurso balofo… the more you live,
the more you love. Pois. E quanto mais amas, mais aprendes.
Intervenção do convidado,
aparecendo de surdina pelo canal esquerdo… e por isso voltas sempre.
Masoquista.
Farinha tem sempre voltado.
Sempre insistido. Mesmo depois de conhecer como irmãs, as ruas da amargura do
isolamento, da ignorância e do desprezo.
“Muito Obrigado” foi a
experiência que traçou o início da música saloia de vanguarda. Não entendam
como leviano ou menos sério, este conceito. A designação tem sido ostentada
pelo próprio líder dos Ocaso Épico. E é de facto, uma escola.
“Desperdícios” será, se chegar
a ver edição, a sequência lógica e certeira do colectivo que o ano passado se
estreou em disco grande. Todas as propostas esboçadas em “Muito Obrigado”,
espraiam-se em flagrantes desperdícios, mais sérios, é claro e mais musicais.
Tão grave a surpresa que tive,
que durante algum tempo, pus de parte “Disintegration”, dos The Cure.
“Desperdícios, a música tem
delirantes momentos de arrebatamento. Mas acaba por ser isso mesmo, um
desperdício: quem irá comprar os seus discos? Talvez as mesmíssimas pessoas que
adquiriram o primeiro disco daquele colectivo.
Final da faixa. Entra de novo
o locutor – no ar – cursor em baixo.
O homem está farto de levar
lambadas…
Grita. Mas não é o grito
habitual. O homem grita um lamento. Tapa o nariz com dois dedos e bate com a
mão em gume na garganta. Qual é o mesmo exacto da formulação do primeiro
vocábulo – surgiu do grito, da dor – qual a passagem do ligeiro distender dos
músculos até à gestualização da primeira gargalhada. Nada é explicado nesta
teia de sonorizações repetidas mimeticamente. Que magia poderá ter uma flauta
ilustrando um lamento. Melodias paralelas. Inexistência quase total de harmonias.
Ocaso Épico, um caso brilhante
de aprendizagem.
FARINHA MASTER LEVA-NOS À
CERTA
Já ninguém (quer dizer, eu) já
não acreditava que a música deste colectivo, por vezes meras experiências
esboçadas em intenções-performance, pudessem constituir surpresa, só por si.
Em “Desperdícios” a música
desliga-se finalmente da performance, da relação directa como o espectador e
torna-se brilhante. Brilhante na maneira como torna acessível a linguagem
musical, normalmente hermética, do projecto liderado por Farinha Master.
Brilhante na facilidade de
colagem de elementos ideológicos, apenas pela pesquisa de sons humanos, algumas
vezes traduzidos em linguagem memorizada por máquinas.
Brilhante, porque tudo isso se
torna lógico.
Tudo cola. As peças condizem
umas com as outras. Pelas razões contrárias, creio que David Bowie falhou a sua
mais recente experiência, Tin Machine.
Ocaso Épico – pensava já num
caso arrumado. Ouvia com a curiosidade do exótico. Ia ver com a sensação do
pitoresco. “Desperdícios” deu-me uma lambada. Bem feito.
Carlos Farinha vive de
dependências. Formalizadas no conjunto das personagens-músicos que o
acompanham.
Se antes, (e “Muito Obrigado”
é disso um bom exemplo), a música dos Ocaso Épico era funcional e actuante
sobretudo no contacto directo com o espectador, neste caso de “Desperdícios” faz-se
notar finalmente o colectivo, indirecto.
Pode ser que tudo saia da
cabecinha do veterano aglutinador master Farinha, mas o discurso musical das
diversas personalidades está lá. Distinto. Cada personalidade, cada músico,
dispõe duma atitude emocional, duma intrincada rede de estímulos precisos que
dão identidade e ao mesmo tempo unidade ao colectivo. O somatório das atitudes
conjuntas fornece finalmente um resultado, uma obra singular pelo emaranhado de
estados de espírito, a necessitar de resposta imediata. Situação que até aqui
só tinha sentido durante os concertos – as “bocas”, a provocação directa era
outra das dependências de que este colectivo necessitava para mexer a máquina. “Desperdícios”
distanciava-se.
A música cria, só por si,
referências miméticas. Farinha gostava (gosta) de ser provocado. O colectivo
provoca. Farinha não é agressivo. O colectivo é. Em “Desperdícios”, finalmente
o público, (eu, ouvinte) fui provocado. Significante e significado encontram
finalmente expressão na música dos Ocaso Épico. O diálogo existe. O espectáculo
é, passa a ser a situação “ao vivo”, sozinho, em casa…
Final de emissão. Aqui rádio
macau, directamente de Agadir. Boa noite…
TEMPORIZAÇÕES COM…
Nesta nova fase da vida dos
Ocaso Épico (fase editorial), continuam a frequentar-se as escolas
minimais-repetitivas, da música serial, das diferentes abordagens de música
contemporânea, aliadas a um personalizado dramatismo lusófono (sobretudo
patente no discurso ideológico de Carlos Farinha), ou como lhe queiram chamar,
mas o que de mais importante se respira é a fundamentação duma antiga
brincadeira do líder Farinha – a música saloia de vanguarda que eu definiria,
com alguma leviandade, como a síntese entre as escolas citadas e um certo tom
brejeiro, muito querido do mentor deste projecto.
Querido Farinha. Quem te viu e
quem te vê. Já ninguém dava nada por ti e vê só o que fizeste.
Dei três passos à caranguejo e
meia dúzia de cangaru, com coice de burro, a colmatar.
Isto é a mais surpreendente
ponte sobre o Guadiana que podiam ter inventado.
“Desperdícios” faz renascer a
esperança numa verdadeira música moderna portuguesa, para lá dos rebanhos intelectuais,
dedicando-se a ser simplesmente diferente.
É nessa diferença que o
colectivo Ocaso Épico se assume como único no nosso país. Mesmo que essa
diferença torne infinitamente pequena, a distância entre outros projectos
análogos.
“Desperdícios” é um trabalho
incomum.
Mesmo muito incomum.
João Pedro Costa
Discussão sobre este concerto neste post do facebook:
https://www.facebook.com/groups/79267872910/permalink/10157106128627911/
atenção: é necessa´rio aderir ao grupo Ocaso Épico para ter acesso ao conteúdo da discussão
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