15.7.19

Pérolas e Preciosidades - Ocaso Épico (cont.)



Artigo que saiu no jornal LP
páginas 22 e 23
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Jornal LP
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Página 22 e 23 

OCASO ÉPICO

Esta é uma realidade completamente ficcionada e os nomes de pessoas não foram alterados, contendo uma visão puramente emocional e especulativa, sobre o assunto.
Trata-se duma cassete, contendo material sonoro, capaz de vos surpreender, tal como me sucedeu a mim.
É do amanhã que a coisa trata.
Preso por ter cão e preso por não o ter, o projecto musical de Carlos Farinha tem sido, em meu entender, tomado como uma abordagem leviana das mais actualizadas correntes musicais de vanguarda.
Um olhar ao passado, aponta para uma personalização constante do percurso musical do colectivo Ocaso Épico.
A escola musical da corrente de que Farinha Master, outro dos alter-egos por que é conhecido o músico, pode reconhecer-se como a música saloia de vanguarda.
De Farinha e de todas as suas propostas já não há que esperar surpresas. Quer dizer, não havia até esta cassete me ter vindo parar às mãos. Deixo para discussões posteriores, vínculo especulativo desta afirmação.
A surpresa foi gerada nos quase sessenta minutos de aventura auditiva, impregnados de calor, sangue e nervos, enfim, como uma viagem que se inicia relutante e se acaba a voltar a fita para trás num incandescente desejo de ouvir de novo. Façam de conta que estão a sintonizar uma qualquer estação radiofónica marroquina – aqui, rádio macau – e predisponham-se então a viajar comigo.

O DESCONCERTANTE “MUITO OBRIGADO” DEU EM “DESPERDÍCIOS”

O chefe do estabelecimento prisional de Lisboa saúda-vos!
Depois, enquanto a fita passa, o chefe discursa. Marcial.
Ao longe, um réptil ácido geme. Alto.
Sejam bem-vindos. Outro gemido.
Palo alto-falante, percebe-se que a vida treme, algures filtrada em ruídos tecnológicos. Sintetizadores. Acordes repetidos com uma sabedoria e corrosiva ironia.
No entanto, bate um coração. Com pressa.
Primeira surpresa – a electrónica finalmente torna-se visceral. Ao estímulo sonoro, corresponde imediatamente uma resposta sensorial não intelectualizada. Ao coração acontece bater. Apressado.
Intervenção do locutor de serviço para anúncio das horas e respectivo discurso balofo… the more you live, the more you love. Pois. E quanto mais amas, mais aprendes.
Intervenção do convidado, aparecendo de surdina pelo canal esquerdo… e por isso voltas sempre. Masoquista.
Farinha tem sempre voltado. Sempre insistido. Mesmo depois de conhecer como irmãs, as ruas da amargura do isolamento, da ignorância e do desprezo.
“Muito Obrigado” foi a experiência que traçou o início da música saloia de vanguarda. Não entendam como leviano ou menos sério, este conceito. A designação tem sido ostentada pelo próprio líder dos Ocaso Épico. E é de facto, uma escola.
“Desperdícios” será, se chegar a ver edição, a sequência lógica e certeira do colectivo que o ano passado se estreou em disco grande. Todas as propostas esboçadas em “Muito Obrigado”, espraiam-se em flagrantes desperdícios, mais sérios, é claro e mais musicais.
Tão grave a surpresa que tive, que durante algum tempo, pus de parte “Disintegration”, dos The Cure.
“Desperdícios, a música tem delirantes momentos de arrebatamento. Mas acaba por ser isso mesmo, um desperdício: quem irá comprar os seus discos? Talvez as mesmíssimas pessoas que adquiriram o primeiro disco daquele colectivo.
Final da faixa. Entra de novo o locutor – no ar – cursor em baixo.
O homem está farto de levar lambadas…
Grita. Mas não é o grito habitual. O homem grita um lamento. Tapa o nariz com dois dedos e bate com a mão em gume na garganta. Qual é o mesmo exacto da formulação do primeiro vocábulo – surgiu do grito, da dor – qual a passagem do ligeiro distender dos músculos até à gestualização da primeira gargalhada. Nada é explicado nesta teia de sonorizações repetidas mimeticamente. Que magia poderá ter uma flauta ilustrando um lamento. Melodias paralelas. Inexistência quase total de harmonias.
Ocaso Épico, um caso brilhante de aprendizagem.

FARINHA MASTER LEVA-NOS À CERTA

Já ninguém (quer dizer, eu) já não acreditava que a música deste colectivo, por vezes meras experiências esboçadas em intenções-performance, pudessem constituir surpresa, só por si.
Em “Desperdícios” a música desliga-se finalmente da performance, da relação directa como o espectador e torna-se brilhante. Brilhante na maneira como torna acessível a linguagem musical, normalmente hermética, do projecto liderado por Farinha Master.
Brilhante na facilidade de colagem de elementos ideológicos, apenas pela pesquisa de sons humanos, algumas vezes traduzidos em linguagem memorizada por máquinas.
Brilhante, porque tudo isso se torna lógico.
Tudo cola. As peças condizem umas com as outras. Pelas razões contrárias, creio que David Bowie falhou a sua mais recente experiência, Tin Machine.
Ocaso Épico – pensava já num caso arrumado. Ouvia com a curiosidade do exótico. Ia ver com a sensação do pitoresco. “Desperdícios” deu-me uma lambada. Bem feito.
Carlos Farinha vive de dependências. Formalizadas no conjunto das personagens-músicos que o acompanham.
Se antes, (e “Muito Obrigado” é disso um bom exemplo), a música dos Ocaso Épico era funcional e actuante sobretudo no contacto directo com o espectador, neste caso de “Desperdícios” faz-se notar finalmente o colectivo, indirecto.
Pode ser que tudo saia da cabecinha do veterano aglutinador master Farinha, mas o discurso musical das diversas personalidades está lá. Distinto. Cada personalidade, cada músico, dispõe duma atitude emocional, duma intrincada rede de estímulos precisos que dão identidade e ao mesmo tempo unidade ao colectivo. O somatório das atitudes conjuntas fornece finalmente um resultado, uma obra singular pelo emaranhado de estados de espírito, a necessitar de resposta imediata. Situação que até aqui só tinha sentido durante os concertos – as “bocas”, a provocação directa era outra das dependências de que este colectivo necessitava para mexer a máquina. “Desperdícios” distanciava-se.
A música cria, só por si, referências miméticas. Farinha gostava (gosta) de ser provocado. O colectivo provoca. Farinha não é agressivo. O colectivo é. Em “Desperdícios”, finalmente o público, (eu, ouvinte) fui provocado. Significante e significado encontram finalmente expressão na música dos Ocaso Épico. O diálogo existe. O espectáculo é, passa a ser a situação “ao vivo”, sozinho, em casa…
Final de emissão. Aqui rádio macau, directamente de Agadir. Boa noite…

TEMPORIZAÇÕES COM…

Nesta nova fase da vida dos Ocaso Épico (fase editorial), continuam a frequentar-se as escolas minimais-repetitivas, da música serial, das diferentes abordagens de música contemporânea, aliadas a um personalizado dramatismo lusófono (sobretudo patente no discurso ideológico de Carlos Farinha), ou como lhe queiram chamar, mas o que de mais importante se respira é a fundamentação duma antiga brincadeira do líder Farinha – a música saloia de vanguarda que eu definiria, com alguma leviandade, como a síntese entre as escolas citadas e um certo tom brejeiro, muito querido do mentor deste projecto.
Querido Farinha. Quem te viu e quem te vê. Já ninguém dava nada por ti e vê só o que fizeste.
Dei três passos à caranguejo e meia dúzia de cangaru, com coice de burro, a colmatar.
Isto é a mais surpreendente ponte sobre o Guadiana que podiam ter inventado.
“Desperdícios” faz renascer a esperança numa verdadeira música moderna portuguesa, para lá dos rebanhos intelectuais, dedicando-se a ser simplesmente diferente.
É nessa diferença que o colectivo Ocaso Épico se assume como único no nosso país. Mesmo que essa diferença torne infinitamente pequena, a distância entre outros projectos análogos.
“Desperdícios” é um trabalho incomum.
Mesmo muito incomum.

João Pedro Costa









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