autor: Luís Jerónimo e Tiago Carvalho (compilação, introdução e prefácio)
título: Escritos de Fernando Magalhães - Volume II: 1992/1994
editora: Lulu Publishing
nº de páginas: 460
isbn: none
data: 2015
prefácio: Miguel Augusto Silva
sinopse:
Prefácio
Devia ser um daqueles fins de tarde como o de hoje, em que um Verão atrevido nos dá uma vontade terrível de ir estudar para os exames de fim de semestre… Deixei a Alameda e rumei ao Príncipe Real. Nesse tempo – 1992 ou 1993 – já havia poucas edições naquele formato grande, com capa de cartão… Por entre um lote fabuloso de novas edições de música tradicional em CD – distribuídas pela Etnia, Mundo da Canção ou Megamúsica –, na VGM ainda restavam alguns exemplares em LP de etiquetas irlandesas ou escocesas, como a Claddagh ou a Springthyme.
Detivera-me
nos discos mais pequenos, com caixa de plástico. Ao meu lado estava um garimpeiro
mais velho. Todos sabemos como vemos aqueles que já passaram os 30 quando nós
ainda andamos nos 20; nisso os ingleses são os mais radicais, e lapidam-nos o
“teen” antes de lá chegarmos. Os dedos deste colega de aventuras deslizavam
rapidamente pelos CDs, como se tivesse com eles uma relação antiga… Mas poderia
haver qualquer coisa nova lá pelo meio, que tivesse escapado na última jornada.
Não era, para mim, um comportamento estranho. Quando encontrou Kaksi!, de uns tais Hedningarna, falou
comigo: “Este é muito bom!”. Parecia saber o que dizia. Acho que apenas sorri.
De facto devia ser um belo disco… O Fernando Magalhães já tinha feito uma
crítica muito boa no suplemento “Pop/Rock” do Público.
Quando
deixou a loja perguntei ao Orlando quem ele era. “Não sabes?”, respondeu. “A
sério?!”, perguntei. Talvez a cara me fosse familiar, não sei… Ele tinha
trabalhado na Contraverso no final da década de 80, altura em que eu estive no
liceu mais bonito de Lisboa, o Passos Manuel. A Travessa da Queimada era logo
ali e a Contraverso uma aventura. Os seus textos – nos jornais LP, Blitz
e Público – uma alegria que aguardava
ansiosamente.
Passados
uns tempos voltei a cruzar-me com ele. Achei estranho por estar a apanhar o
autocarro na paragem onde eu morava… Recordei-lhe esse dia e fiquei a saber que
a sua casa era num prédio atrás do meu. Fomos a caminho de Entre Campos, a
falar de música e de discos. Música tradicional, da Hungria, Sebő Ensemble,
Muzsikás e Márta Sebestyén… Ficámos amigos. Eram tempos apaixonados em relação
às músicas tradicionais, que os festivais Cantigas
do Maio, Encontros da Tradição
Europeia e, principalmente, o Intercéltico,
no Porto, contribuíam para complementar a forte distribuição de discos e
consolidar uma paixão. A viagem durou menos do que habitualmente.
Recordo-me
quando fomos jantar à Taverna dos Trovadores, em S. Pedro de Sintra. Ao balcão,
disse-me que aí preparavam uma bebida especial, em que misturavam Irish whiskey, azeite… Quando viu que eu estava a acreditar, desatou a
rir, incrédulo; no fim um sorriso de criança. Almoçámos juntos mais vezes
quando o século decidiu mudar. No Mercado do Peixe, nas Picoas, um empregado
fazia lembrar o grande José Mário Branco (que ambos muito admirávamos). E
dizia-me com um sorriso matreiro: “Ó Sr. José Mário Branco! Pode trazer-nos a
ementa, por favor?”. Era o mesmo sentido de humor dos seus amados Monty Python.
Do
outro lado do espelho do universo do seu ecletismo musical, onde habitavam
todas as músicas, estava aquele que ele mais admirava. Lembro-me que fomos
vê-lo uma vez ao Teatro São Luís, em Lisboa. Ele e a Filipa, eu e a Ana. O meu
amigo parecia muito ansioso, tal como eu estava – nesse tempo, agora e sempre
nos seus concertos. Um dos seus textos que sempre recordarei foi precisamente
sobre ele, na coluna “Valores Selados” do Blitz,
a 7 de Novembro de 1989. 11/11 estava próximo. “É difícil escrever sobre a
perfeição. É difícil, sobretudo, relatar em pormenor e com um mínimo de
distanciação aquilo que de essencial existe na música dos Van Der Graaf
Generator e de Peter Hammill em particular. Será talvez difícil para os
leitores, confundidos por tanta veneração, acreditar na palavra do crítico.
Pois é, aqueles que desde o início têm acompanhado o percurso de Hammill e
companhia sabem decerto do que se trata. Para esses, na posse de todos os
segredos, a música e poesia da banda representam muito mais do que o habitual
nestas coisas dos discos, quase se revestindo com as roupagens do sagrado.”
Os
discos. Sempre os discos. Um dia disse-me que era “em discos” que lhe pagavam
na Contraverso. Mais tarde, vim a saber que a vida dele tinha mudado quando uma
amiga lhe ofereceu Liege & Lief
dos Fairport Convention. Sobre a diva Shirley Collins, a propósito de For As Many As Will (o disco que tem a
mais bela capa de sempre da folk
inglesa), só ele teve o dom de conseguir descrever a sua voz: “Uma voz sem
grandes predicados técnicos mas que guarda em si uma sabedoria acumulada de
séculos. Uma voz com a textura de pano antigo, musgo, mel e madeira”.
Um
dia, no início do século XXI, veio ter connosco. Saiu do comboio no Tamariz e
veio pelo paredão ao nosso encontro, até ao Jonas. Era um fim de tarde, quente,
como o de hoje… Vislumbrei-o ainda ao longe, num tempo em que o Estoril-Sol
ainda forçava o entardecer. Ao ombro a gaita-de-foles galega que tinha ficado
de trazer; um amigo tinha-lha arranjado em Ourense, no Obradoiro dos Seivane.
Era uma imagem surreal à beira-mar. Dizia-me que era um instrumento telúrico,
mas o único que mantinha uma ligação constante entre o céu e a terra.
Depois
foi embora. Há sempre tempo para partir. No seu caso, chegou demasiado cedo,
fez ontem dez anos. Os seus textos continuam a ecoar por aí. Talvez no Castelo
dos Mouros, no solstício ou no equinócio – quando o vento leva as cinzas do
Verão –, uma gaita-de-foles anime as noites quentes de festins Druidas.
Ao
Fernando.