autor: Luís Jerónimo e Tiago Carvalho (compilação)
título: Escritos de Fernando Magalhães - Volume V: 1997
editora: Lulu Publishing
nº de páginas: 632
isbn: none
data: 2016
prefácio: Mário Correia
Música tradicional irlandesa em estado de completa maturação mas segurando com firmeza a flama do entusiasmo de quem sente ter ainda mais e melhor para lhe dar. Música que estabelece a comunicação com os deuses e os homens, possuída, do princípio ao fim, pelos rasgos de génio que são timbre exclusivo dos eleitos. Música feliz, que sabe não serem necessárias operações de maquilhagem para tocar no coração de quem verdadeiramente a ama. Na contracapa, consumada a alegria pagã do “pub”, com a silhueta recortada em contraluz, os Dervish olham o reflexo do crepúsculo nas águas esmeraldinas de um lago da Irlanda.
PREFÁCIO
PREFÁCIO
Não é sensação fácil de descrever esta de
estar hoje, aqui e agora, a discorrer sobre a escrítica do Fernando Magalhães,
porque as palavras se cruzam com vivências que nem sempre as próprias palavras
foram os meios mais adequados para as exprimir. A narrativa, primeiro
mentalmente elaborada, apresenta-se sincrética e não raro mesmo fugidia,
escapando-se entre as emoções que a recordação inevitavelmente cobre com uma
espécie de nevoeiro de sentidos que vão sendo arrumados nos arquivos das nossa
memória afectiva. Com efeito, que há para dizer das palavras que o Fernando
Magalhães alinhava nos seus artigos, reportagens e recensões, dessas palavras
com os quais nos revelava discos e descrevia concertos, elaborando autênticas
pautas de audição?
Conheci-o pessoalmente no início dos anos 90
do século passado, aquando da sua vinda ao Porto para assistir, pela primeira
vez, ao Festival Intercéltico: à entrada do “velho” Rivoli, imóvel, procurando
na penumbra da sala onde se iam iniciar ensaios de som, disse quem era e ao que
vinha, com o ar tímido de quem pede licença por estar a interromper alguma
coisa. Foi fácil, muito fácil a conversa que se seguiu e as cumplicidades que
se foram construindo com o decurso dos tempos. Desde logo, numa comunicação
renovada todas as quartas-feiras, quando saía o suplemento “Pop&Rock”, com
o jornal Público, com recensões discográficas que se articulavam como peças de
um mapa indispensável para procurar tesouros discográficos das mais variadas
proveniências musicais: o Fernando era um verdadeiro príncipe da escrita nestes
tempos de revelação, cruzando distintos gostos musicais e estabelecendo pontes
de comunicação entre géneros e estilos, abrindo horizontes de modernidade e de
contemporaneidade, sem nunca deixar de colocar em devido destaque a essência
das raízes, não hesitando, para tal, em percorrer as sendas e caminhos da mais
“dura” tradição.
Recordo que veio pela primeira vez ao Planalto
Mirandês, uma finisterra – e ele tinha uma atracção muito especial pelas
finisterras! – do Nordeste Transmontano nos inícios do século actual, porque
queria saber in situ dos velhos
gaiteiros e viver de perto aquilo que ele designou como sendo uma “louca
aventura, como devem ser todas as aventuras condenadas ao sucesso”, o Festival
Intercéltico de Sendim – Terras de Miranda, organizado pelo Centro de Música
Tradicional Sons da Terra, sediado em pleno coração das terras mirandesas. E
foi uma delícia: a música, a terra, a gente, a aldeia, a paisagem e as arribas
proporcionaram-lhe um estado de embriaguez sensorial que não mais esquecerei.
Tudo se encaixava na perfeição numa visão quase totalmente mítica da terra que
se lhe revelava inteira e telúrica. Recordo – e o tempo é sempre o lugar da
natal da esperança – que na cidade de Miranda do Douro fomos visitar a sé –
hoje concatedral – depois de deambularmos por um cenário de quinhentistas
evocações, com o rio Duero-Douro lá em baixo, manso e dócil entre monumentais
fragas, numa paisagem onde nada começa e nada acaba. Fiz-lhe notar, em
comentário circunstancial, que aquele templo sagrado vinha dos tempos da
ocupação filipina e que, lá dentro, eu sentia que a sua altura era esmagadora.
Discordou de imediato comigo, esclarecendo que aquela arquitectura não tinha
por objectivo esmagar quem quer que fosse mas sim elevar, ligar a terra aos
céus. Se o românico tinha procurado puxar o céu para a terra, aqui tratava-se
de re-ligar a terra ao céu. Era como a música, como toda a música que valia a
pena ouvir: serviria, deveria servir – caso contrário não o era, era outra
coisa que não música – para nos elevar acima da horizontalidade do quotidiano.
Era o filósofo quem falava, estava bom de ver. Habituámo-nos a encontrar nas
palavras alinhadas pelo Fernando Magalhães esta dimensão de procura do
entendimento para tudo quanto nos rodeia, sendo a música um veículo
privilegiado para fazer dessa busca um caminho prenhe de significados e de
orientações.
Pouco tempo depois da incursão transmontana,
ofereci-lhe uma gaita de foles, de pura traça tradicional mirandesa e sei que
emudeceu de emoção, indo ao encontro daquele que era um dos seus sonhos. No
acto da entrega, teceu considerações sobre o arcaísmo do instrumento e
contemplou-o embevecido, sem se atrever a tentar tirar-lhe um só som que fosse.
Sei que lutou com denodo com válvulas algo deficientes e uma ponteira que não
se entendia com palheta, porventura mal amanhada, para gáudio do tin whistle
que ele tocava com alguma desenvoltura, atrevendo-se mesmo a acompanhar músicos
irlandeses através dos respectivos discos. Depois de operações de melhoramento
da dita cuja, Fernando Magalhães ter-se-á atrevido a fazê-la falar, sem todavia
deixar de pensar quer mesmo “bicho indomável” aquele instrumento tão popular em
terras mirandesas.
Mas era suposto prefaciar esta compilação de
textos escritos pelo Fernando Magalhães falando justamente deles ou do seu
processo de construção narrativa. Só que os seus textos não foram produzidos
para serem explicados mas sim para serem objecto de fruição, como propostas de
viagens pelas notas, pelas melodias, pelos ritmos e pelas harmonias das obras
musicais para as quais entendia dever chamar a nossa atenção, quase sempre por
boas ou muito boas razões embora, por vezes, não deixasse de zurzir na
mediocridade, no oportunismo e no facilitismo de certas propostas que às vezes
lhe empestavam os aparelhos de reprodução. Fernando Magalhães sabia ser
elegante e delicado nas abordagens críticas mas também incisivo e cáustico
quando achava que era necessário que o fosse.
Era, confessada e inequivocamente, um
habitante de olimpos de excelência musical, com horizontes expressivos muito
alargados que podiam emergir da mais dura tradição até mergulharem na mais
ousada formulação ou vertigem da modernidade. Escrevia sobre música fazendo da
emoção da escuta um acto de transmissão das vibrações desse cristal primordial
que era um gosto apurado e refinado por tudo quanto fosse criação cerebral
elaborada com verdade e com autenticidade, como não raro o referia nos seus
escritos. Muitas vezes bastava-nos saber o que é que o Fernando tinha dito
desta ou daquela obra discográfica para os seguirmos na (re)descoberta dos sons
revelados. Um disco nunca era uma peça isolada, nascida sob os auspícios de uma
qualquer genial inspiração, era inserido no tempo, na história, numa concepção
artística, enfim, num determinado contexto expressivo. A música era por ele
entendida como parte integrante de todo um perpetuum
mobile, fruto do encontro de aquisições e de perdas, de sensibilidades e
emoções, num tempo concreto. Sendo certo que o futuro não pré-existe, não é
virtualmente real, Fernando Magalhães não raro se atrevia a antecipar futuros
expressivos, porque não se limitava a constatar, queria sempre e ir mais além
nas suas navegações musicais.
Perscrutava a identidade da música, esse
vínculo comum no qual descansam as diferenças, com a audácia de quem se sentiu
sempre muito mais atraído pelos caminhos por fazer do que propriamente pelos
caminhos percorridos, os quais todavia tinha de conhecer como ninguém, para
poder ousar na sedução da descoberta. Quando no seu presente ouvia para trás, o
horizonte estava carregado de futuro, procurava sempre vislumbrar a luz dos
amanhãs que viriam mesmo que tivesse que tactear sombras pouco esclarecedoras.
Nunca “sepultava” um disco daqueles cuja audição recomendava nos seus escritos:
jazia em latência, à espera do novo sopro de vida musical do seu criador, na
certeza de que ganharia novos contornos e dimensões expressivas com o que havia
de vir. E deste princípio auditivo-compreensivo nunca abdicou e nós estamos-lhe
muito agradecidos por isso. Porque deste modo também aprendemos a ouvir.
Foi por tudo isto que um dia, quando acabou o
mês de Julho de 2003, quando visitou, pela única vez, o Centro de Música
Tradicional Sons da Terra, me deixou palavras de circular reflexão inscritas no
livro de visitas:
A
pedra faz a casa
a
casa tece-se na aldeia
a
aldeia casa-se com o mundo
o
mundo revela-se nas estrelas
as
estrelas reflectem-se na pedra
Numa
casa como esta
o
círculo torna-se espiral
o
tempo espirala-se no templo
E
das pedras se faz luz
O
Centro de Música Tradicional Sons da Terra
re-inventa
o Centro
da
terra
Não é, de forma alguma, despropositada a
transcrição. Assim como tudo quanto atrás deixo escrito a pretexto e sobre a
prosa do Fernando Magalhães. É tudo uma questão de espirais, não é verdade,
Fernando? Espiralemos, pois, com a renascença dos teus textos, uma renascença
que só pode ser redentora, como tu gostarias, com certeza, que fosse. Porque só
assim terá valido a pena.
Mário Correia
Praia da Granja, 12 de Agosto de 2016
ÍNDICE
Indice Vol5 1997 by luisje on Scribd
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