15.5.17

Coleccionismo De Discos - Dossier -


DIÁRIO DE NOTÍCIAS
21 DE SETEMBRO DE 2002

DOSSIER COLECCIONISMO
DISCOS E DISCOS AOS MONTES

Filmes como «Alta Fidelidade» de Stephen Frears e «Ghost World» de Terry Zwygoff» mostraram recentemente, nas salas de cinema, histórias em torno de coleccionadores de discos. Mas em Portugal eles também existem São muitos. E todos certamente passarão, na próxima semana, pela Mega Feira do Disco, na Gare do Oriente.
Nuno Galopim

Porque colecciona discos? Pelas mesmas razões pelas quais se colecciona selos, moedas, modelos de automóveis, canecas, porta-chaves ou vacas em barro? Talvez sim e talvez não. Como qualquer outra colecção, os discos têm o seu mundo próprio, passível de ser visitado e admirado a diversos níveis, em função das preocupações de quem os compra, reúne e ouve. Como em todas as colecções, cada qual reúne as peças consoante os seus interesses e objectivos. Por artistas, por épocas, por temas, até mesmo pelas capas.
O coleccionismo de discos existe em Portugal enquanto prazer individual desde que há vinil. Mas nos últimos anos, com o aparecimento de algumas lojas essencialmente dedicadas ao disco de colecção e a entrada em cena de um calendário regular de feiras (sobretudo em Lisboa e em Cascais), aumentou significativamente o número de coleccionadores e as mais incríveis temáticas coleccionistas. «Há quem coleccione aquelas capas de raparigas bonitas, em estados mais ou menos despidos. As capas dos anos 50 eram muito sugestivas», explica ao DN Victor Nunes, da loja Discolecção, uma casa pequena, mas muito confortável, forrada a madeira e álbuns e singles de Tim Buckley, David Bowie ou Sérgio Godinho, na qual é raro entrarmos sem que lá esteja uma ou mais outra cara habitual, fazendo dali uma espécie de ponto regular de encontro. Coisa, de resto, frequente nas lojas de discos de colecção aqui ou noutro lugar.
Victor começou a coleccionar discos aos 14 anos, e foi acumulando-os, com a «avidez de ter coisas sempre diferentes para ouvir». O seu primeiro disco foi Made In Japan dos Deep Purple, mas não esconde grande paixão pela música de David Bowie, de Marc Bolan, Alex Harvey e, descoberto mais tarde, o rock alemão. «No progressivo nunca entrei muito. Cheirava-me a pretensioso. Depois entrei no jazz e ultimamente estou mais na música contemporânea, embora reconheça que não percebo nada. Ainda estou a começar», completa... Victor Nunes, todavia, não se considera um verdadeiro coleccionador, já que defende que um cloleccionador é aquele que procura apenas os discos de 45 rotações: «Quem junta LPs faz apenas um amontoar de discos, mesmo que tenha as discografias completas de várias bandas ou cantores». Para o dono da Discolecção, a verdadeira colecção faz-se em vinil, apesar de aceitar que o CD possa, também, ser coleccionável. «Há determinadas edições que podem ser coleccionáveis. Edições pequenas, como a primeira do Bowie, por exemplo. E à medida que vai avançando a tecnologia, alguns CDs tornam-se coleccionáveis», defende.



Opinião contrária tem Custódio Simão, o dono das lojas Jukebox, para quem há dois tipos de coleccionador: «por um lado aquele que quer todos os discos de um determinado artista ou, por outro, o que procura todos os discos de uma determinada época, seja os anos 50 ou 60... Ou estilos», independentemente do formato, mas sem o CD por perto. «Nos singles há mais acesso ao coleccionismo porque as capas, sendo mais e mais diferentes, permitem isso mesmo». Custódio começou, muito novo, a comprar discos dos Herman’s Hermits e dos Beatles. «Queria as edições originais. Comprei cada vez mais e cheguei a um ponto em que não tinha mais capacidades financeiras. Comecei então a negociá-los», recorda. Hoje tem na Jukebox lisboeta (perto de Santa Apolónia) um espaço onde o vinil é rei, com uma área de consulta geral e uma, mais restrita, forrada a peças tão incríveis como o primeiro álbum de Bowie, clássicos de Gainsbourg, Durutti Column e outros. Mas é logo à entrada que se constata que entramos numa loja especial. Se olharmos para a parede entre o 130 e o 132 da Rua do Jardim do Tabaco vemos, expostos, discos de discursos de Salazar e Marcello Caetano, registos áudio do 25 de Abril, um álbum do Papa ou raridades de Amália.



O COLECCIONADOR PORTUGUÊS

O rock português dos anos 60 é, segundo Victor Nunes, uma colecção «muito interessante, toda feita de EPs» (isto é, discos de 45 rotações com duas faixas de cada lado). Igualmente frequente é a colecção de prensagens de discos dos anos 60 (sobretudo os EPs, com capas diferentes e com valor nos circuitos internacionais). «A colecção portuguesa de EPs é uma das melhores do mundo», adverte Victor Nunes: «Houve capas portuguesas lindas, mas sem o verniz usado nas capas francesas... As pessoas não tinham cuidado e aquelas cores foram-se esbatendo muitas vezes. As editoras portuguesas, na altura, não apostavam muito na qualidade», explica. E continua: «Os LPs eram caros e, em Portugal, nos anos 60, as pessoas compravam essencialmente EPs... Por isso faziam-se muitos EPs. E as edições, como têm capas diferentes e, por vezes, alinhamentos também diferentes, têm valor lá fora. Portugal teve EPs do Jimi Hendrix, coisa que não houve em mais lado nenhum! Até os Jethro Tull... Têm quatro EPs em Portugal!».
Ao rock português de 60 e aos EPs pop/rock Custódio Simão acrescenta ainda as frequentes colecções de Amália Rodrigues, de nomes ligados «À música de intervenção» (como José Afonso, Sérgio Godinho, Luís Cília) e, do panorama internacional, «em primeiro lugar os Rolling Stones, logo depois os Beatles e os anos 60 e 70 em geral, quer nas prensagens portuguesas, como nas edições originais». Nesse momento olha para a sua direita e, na parede da loja, aponta o dedo a um raríssimo LP de estreia de David Bowie, na edição original da Deram Records (1967). «Muitos dos coleccionadores têm entre 30 e 45 anos. Os mais novos procuram, sobretudo, heavy metal», completa o dono da Jukebox, que continua: «actualmente colecciona-se também bastantes discos da Eurovisão. Era uma coisa que antes se via, principalmente, nos países nórdicos. E agora chegou cá. Não atinge é valores muito elevados».
Francisco Dias, da Neon Records, tem 27 anos e colecciona, sobretudo, vinil de punk rock e hard rock dos anos 70. «Cresci com o vinil, a vasculhar nas lojas todas», recorda, explicando a sua opção. De resto, antes de ter loja, nos dias em que trabalhava apenas por mail order, só lidava com vinil. Na sua loja, com características diferentes, tem um público essencialmente entre os 18 e 30 anos, e com uma opção clara pelas áreas do rock’n’roll às quais se dedica a Neon Records. O espaço é pequeno, mas os posters e capas que decoram a loja, no andar superior do Centro Comercial Portugália, criam o ambiente que define as opções estéticas. Aqui não se serve apenas o coleccionador, mas o consumidor de rock em geral, especialmente o que opta pelo vinil.
Ao procurar algumas características do coleccionador lusitano verificamos que, contra hábitos de outros países, o português não gosta de company sleeves (isto é, discos de 45 rotações sem capa, apenas guardados em saquetas de papelão com o selo da editora). «Só mesmo os mais fanáticos coleccionadores dos Who, dos Beatles ou Stones procuram esses discos entre nós. Algumas dessas edições, sobretudo as bandas psicadélicas dos anos 60 têm enorme valor», sublinha Victor Nunes.
Apesar de valiosos e coleccionáveis, sobretudo as edições de Amália Rodrigues, de Elvis Presley e outros nomes do rock’n’roll, os discos de 78 rpm são raramente encontrados no circuito do coleccionismo de discos. Os antiquários asseguram geralmente este segmento «pré-histórico», mas muito cativante, de algumas colecções.

OS LOCAIS DO CRIME

A Discolecção surgiu, nos anos 90, meio escondida nas galerias do Hotel Amazónia. «Era uma loja do Dr. Gamito, um homem que foi pioneiro neste negócio. Quando toda a gente já não acreditava no vinil, ele abriu a loja, à qual aderiram logo os fanáticos do vinil», recorda Victor Nunes, que ficou depois com a loja, que depois se mudou para o Centro Comercial Paladium e, desde há poucas semanas, mora agora nas Escadinhas do Duque. «Isto não é um grande negócio, mas é um prazer e vai funcionando. Dá para pagar as contas», explica. Por seu lado, Francisco Dias, da Neon Records, explica que «a loja vai aguentando», e apresenta um mail order organizado na Internet, bem como a expansão da sua actividade a uma distribuidora.
Custódio Simão, da Jukebox (Lisboa e Pinhal Novo), acrescenta que há «um pequeno mercado. Comparativamente ao resto da Europa somos fracos, mas há 20 anos não havia aqui mesmo nada. Hoje já há um suporte mínimo para se poder fazer uma colecção. Há um embrião...». O recente aparecimento das lojas e a regularidade das feiras tem sido motor para o aparecimento de muitos novos coleccionadores: «Nunca pensei que atingíssemos o estado em que estamos actualmente», confessa.
As lojas de discos de colecção, apesar da frequente visita de forasteiros de ocasião, acabam inevitavelmente, como em pequenos bares, por criar uma espécie de família de clientes habituais. «Há pessoas que são residentes da loja, e com elas discuto as músicas, os músicos, a subjectividade que existe nisso... Às vezes fala-se também de política», diz Victor Nunes. «Há quem aqui venha por vezes só para ver e ouvir discos e conversar um bocado. Os clientes tornam-se amigos ao fim de um certo tempo, e depois há pequenas histórias a contar», acrescenta Custódio Simão. Todavia, fique claro que não são só os coleccionadores quem visita as lojas de vinil antigo. Muitos músicos, em busca de sons para samplar, procuram também raridades ou bizarrias entre peças esquecidas.
Muitos destes clientes «habituais» chegam a procurar, anos a fio, um disco que têm como peça a conseguir por tudo... «Ainda há dias um cliente conseguiu aqui um disco que há muito procurava, e ficou tão contente que andou a passear o disco por Lisboa», revela Victor Nunes. Destas e outras histórias vivem as tardes nas lojas de discos de colecção. Fala-se da vez em que apareceu este disco, ou aquele... «Do primeiro disco de Fausto tive apenas duas cópias em 20 anos... É muito raro... Dos Pop Five tive umas sete cópias», recorda Custódio Simão.
Sem fornecedores nem uma grande rede de fábricas, apesar de haver ainda algumas editoras especializadas a produzir discos em vinil (quer novas edições, quer, sobretudo, reedições de clássicos com grande qualidade técnica), as lojas de discos de colecção têm o seu modo muito próprio de procurar matéria-prima. E, muitas vezes, é de particulares que chegam reforços para os escaparates das lojas de discos de colecção. Todas elas vendem, compram e trocam discos. «Há discos que não têm interesse, sobretudo os de artistas que não continuaram e as pessoas não se lembram deles. Esses não têm valor», reforça Victor. «Além dos particulares, há profissionais que procuram discos entre particulares e depois os vêm vender», revela Custódio Simão.

A Feira
3ª Mega Feira Internacional do Disco (IWT)
27 a 29 de Setembro, Lisboa
De 27 a 29 deste mês decorre, na Gare do Oriente (Parque das Nações, Lisboa) a terceira Mega Feira do Disco. Será a maior de sempre das feiras de disco de colecção em Lisboa, contudo com uma embaixada internacional de peso. Entre os expositores internacionais estão já confirmadas as presenças da Beewax Records (japoneses especializados em prensagens japonesas dos anos 60), Record Palace (holandeses especializados em prensagens raras dos anos 60), Let It Rock (franceses, especializados em Bowie e Rolling Stones), JBL Mail Order (franceses, especializados em 45 rpm caros e CD singles), Big Beat Records (franceses, especializados em anos 50 e 60), Malaga Records (espanhóis, especializados em álbuns dos anos 70), Sitar Discos (espanhóis, com raridades generalistas), Scratch Records (alemães, especializados em anos 70 e 80), Timeless Records (alemães, especializados em rock progressivo), Storm Bringer Records (alemães, especializados em Deep Purple) e Straub Records (franceses, generalistas). O facto de haver especialidade nestes vendedores não exclui que alguns não apresentem material diferente, em outros formatos e de outras épocas. Haverá representação das duas lojas de coleccionismo portuguesas (Jukebox e Discolecção), de editoras (como a Música Alternativa, MVM e Sabotage), e inúmeros particulares nacionais. Esperam-se perto de 50 feirantes neste certame.

AS LOJAS

DISCOLECÇÃO
Lisboa: Escadinas do Duque, 17-A Tel: 21.3471486
Recentemente instalada neste novo espaço, é uma loja pequena, mas de ambiente convidativo e música em constante rotação. Com um stock apenas em vinil, a Discolecção apresenta uma oferta diversificada de títulos, sobretudo no formato de álbum (apesar de ter também singles e EPs). Pop/rock de 50 a 90, indie, portugueses, bandas sonoras, jazz e clássica... Preços variados, mas sem sustos, salvo em raridades maiores, que frequentemente aparecem. Compra e vende.

JUKEBOX
Lisboa: Rua do Jardim do Tabaco, 130-132 Tel: 21.8869072
Pinhal Novo: Rua Ferreira de Castro, Lt 180 R/C Dto. Tel: 21.2385289
Com o mote «from Presley to punk», as lojas Jukebox apresentam a mais vasta selecção de discos de colecção entre nós. Apesar de vender CDs, a loja é claramente apontada ao disco de colecção, com aposta nas áreas de música portuguesa, pop/rock de 50 a 90, indie, heavy metal e punk. Boa selecção de 45 rpm, sobretudo portugueses. Compra e vende.



NEON RECORDS
Lisboa: Av. Almirante Reis, 113, Centro Comercial Portugália, Loja 325 Tel: 96.2363982 Email: neonrecords@hotmail.com
Loja especializada em vinil e CD de rock & roll, surf, psychobilly, garage, punk, hardcore, metalcore... Apresenta ainda uma selecção de vinil usado em diversas áreas pop/rock de 60 a 80, boas propostas na área do gótico, speed, thrash, death metal, industrial e diversas outras expressões alternativas. Aos quatro anos de vida, esta aposta de Francisco Dias tem o seu público e respira boa saúde. Recentemente abriu uma distribuidora, a Sleazy Records. Compra, vende e troca.



OUTRAS
Além destas lojas especializadas em vinil, podem procurar ainda discos nas lojas Carbono (Lisboa, Almada, Amadora), King Size (Lisboa) ou Jo Jo’s (Porto).


BOLSA DE VALORES

1964. JOSÉ AFONSO «Baladas e Canções» (Ofir): Álbum de estreia, reeditado em CD pela EMI-VC, mas com capa diferente. A capa original é um dos trunfos desta edição, que pode valer entre 20 a 35 euros.


1969. FAUSTO «Fausto» (Philips)
Extremamente raro, sem reedição em CD, o álbum de estreia de Fausto, gravado por este às escondidas dos pais, pode valer entre os 75 e 100 euros.


1968. POP FIVE MUSIC INCORPORATED «A Peça» (Orfeu). Uma epopeia feita de versões é um disco relativamente raro, ainda sem reedição em CD. Pode valer entre 60 e 75 euros.


1969. FILARMÓNICA FRAUDE «Epopeia» (Philips ou Fontana). Há duas edições deste magnífico álbum. A original é extremamente rara. A segunda poderá valer de 60 a 100 euros.


1970. QUARTETO 1111 «Quarteto 1111» (Valentim de Carvalho). É um dos mais interessantes discos do rock português. Foi reeditado em CD, mas o vinil pode valer de 80 a 100 euros.


1971. AMÁLIA RODRIGUES «Cantigas de Amigos» (Valentim de Carvalho)
Disco centrado na poesia medieval portuguesa, com Ary dos Santos e Natália Correia. Sem reedição em CD, pode valer entre 30 e 50 euros.


1973. PETRUS CASTRUS «Mestre» (Guilda da Música). Um dos mais raros álbuns portugueses, com procura internacional, e sem reedição em CD. Pode valer mais de 150 euros.


1978. TANTRA «Holocausto» (Valentim de Carvalho). O segundo álbum dos Tantra foi recentemente reeditado em CD. O vinil, é difícil de encontrar, e pode valer entre 30 e 35 euros.


1979. JOSÉ CID «10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte» (Movieplay)
Reeditado em CD em 94 tem grande procura no circuito do rock progressivo. Pode valer de 75 a 100 euros.


1979. CORPO DIPLOMÁTICO «Música Moderna» (Nova). A pré-história dos Heróis do Mar, ainda sem reedição em CD. Sem o single promocional pode valer entre os 20 e 50 euros.




COLECÇÃO DE SONS

Cada coleccionador tem a sua mania. Luís Pinheiro de Almeida quer ter todos os discos dos Beatles, Heitor de Vasconcelos só compra vinil e João Afonso pede autógrafos aos seus músicos preferidos.
Maria João Caetano
Têm as casas repletas de discos e, mesmo assim, continuam a comprar mais porque, explicam, uma colecção nunca está completa. Três coleccionadores muito diferentes mostram-nos as suas raridades.

LUÍS PINHEIRO DE ALMEIDA


Luís Pinheiro de Almeida tinha 11 anos quando o pai lhe ofereceu o seu primeiro disco: a italiana Nilla Pizzi a cantar um dos temas do Festival de San Remo. «Os discos eram caríssimos», recorda. «Só ganhava um no dia dos anos ou no Natal». Para combater esta falta, Luís e os amigos do Liceu de Coimbra tinham uma espécie de clube: «como só um é que tinha dinheiro, ele comprava os discos e nós reuníamo-nos todos para os ouvir debaixo de uma oliveira com o gira-discos portátil». Depois, o precioso disco ia rodando entre o grupo e foi assim que descobriram Petula Clark e os Shadows, Cliff Richards e todos os outros êxitos da sua época. Em Novembro de 1963, foi-lhes revelado um segredo. Foi lançado o EP português dos Beatles, Do You Want To Know A Secret, que trazia outro tema fantástico – She Loves You – e ainda I’ll Get You e Twist and Shout. «Foi um marco», reconhece Luís. Um amor para a vida.
Licenciado em Direito, jornalista na área da justiça e da política, sempre com uma perninha na música (foi colaborador do Blitz, fez rádio), na juventude Luís coleccionou um pouco de tudo – papéis de rebuçados, botões, caricas, pratas de chocolates – mas a única colecção que ainda hoje, aos 55 anos, continua a alimentar, é a de discos. «Mas não sou um profissional, não tenho muito espírito de coleccionador», desculpa-se. Apesar disso, neste momento tem 30 mil discos (mais ou menos metade em vinil e metade em CD), todos numerados e registados na base de dados pessoal – demorou dois anos a inserir todos os dados no computador! É que Luís é um coleccionador com método. Com o apartamento literalmente forrado de música, sabe sempre onde está cada uma das suas preciosidades. Todos os álbuns de vinil estão guardados em capinhas de plástico transparente, todos os discos mantêm a etiqueta do preço e, às vezes, outro tipo de informações (data de compra, quem ofereceu, onde foi comprado, etc.). Com a mesma paciência com que, em jovem, se entretinha a passar a escrito, palavra por palavra, todas as emissões do «Em Órbita» (programa do Rádio Clube Português), Luís Pinheiro de Almeida tem pastas recheadas de recordações musicais, onde os Beatles têm o papel principal: recortes de jornais e revistas; bilhetes de concertos; fotografias tiradas no Strawberry Fields de Nova Iorque ou no Cavern de Liverpool; porta-chaves, canecas, canetas, livros, álbuns e o que mais houver para coleccionar. «Dos Beatles tenho que ter tudo», explica. Todos os álbuns e singles, editados em todos os países, as diferentes versões das músicas (das mais banais às mais estranhas), os especiais, as colectâneas, as homenagens, as aventuras a solo de cada um deles. Procura as raridades e, apesar de não saber exactamente o valor dos seus discos, sabe que um dos mais preciosos será certamente a primeira edição do Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band – uma autêntica raridade, com capas interiores ilustradas.
Além dos Beatles e dos «afilhados» destes, os Oasis, Luís Pinheiro de Almeida ouve e compra um pouco de tudo (tem quase tudo de Neil Young ou dos U2); embora com o «coração partido», está a comprar em CD os discos que antes tinha em vinil; insiste em comprar os discos da sua juventude e ainda tem mais duas «pancadas»: discos de Natal e discos de futebol (hinos de clubes, temas interpretados por futebolistas). «Não consigo explicar mas não consigo resistir», diz. Muitas das coisas encontra-as na Internet, método que considera rápido e barato. «Além disso, muitas vezes até posso ouvir o disco antes de o comprar», explica.
O seu maior orgulho? Um disco que parece de papel. Os Beatles a cantar Everywhere It’s Christmas numa edição especial para o clube de fãs. «Não deve ser o mais valioso mas é muito raro, o Paul McCartney ficou maluco quando o viu, queria comprá-lo». Impossível, claro. «Nunca vendi um disco na minha vida, raramente empresto e só às vezes troco.»

HEITOR DE VASCONCELOS

Heitor de Vasconcelos não se lembra qual foi o primeiro disco que comprou: terá sido dos Beatles ou dos Yes? Mas sabe que até 1984 nunca tinha comprado um 45 rotações. Não simpatizava com o formato. Um dia, regressou a S. Pedro do Sul, a sua terra, visitou o café onde passou parte da juventude e encontrou a juke-box onde costumava gastar várias moedas de dez tostões para ouvir sempre o mesmo disco: Ai Hana, de Paul Anka. Os discos com que tinha dançado e namorado estavam para ali, ao abandono, e Heitor não lhes resistiu e quis trazê-los para sua casa. «Todas as colecções começam assim, por motivos afectivos», explica. «Queria regressar à meninice, talvez não quisesse envelhecer». Nessa altura, Heitor ainda não era um coleccionador. Foi buscar os discos antigos do pai, comprava o que lhe aparecia. «De repente dei por mim muito disperso. E, depois, olho para o mercado internacional e tento perceber como é que eu posso concorrer com os outros coleccionadores, onde é que eu poderia marcar a diferença? Compreendi, então, que era nos discos portugueses ou editados em Portugal.»
Estava definido o principal critério. Outro se lhe seguiu: agora, Heitor de Vasconcelos já prefere os 45 rotações ao grande formato: «O EP tem um charme que os LPs não têm. Por um lado, condensa os êxitos, são apenas quatro músicas. Por outro, é o formato habitual da fotografia e cria-se uma estética destas capas, há coisas fantásticas.» Heitor tem mais de oito mil desses pequenos discos, em 45 rotações (75 por cento dos quais com prensagem portuguesa) e cerca de quatro mil em formato LP. Os discos, guardados em álbuns próprios, arrumados em estantes ou empilhados pelo chão, recheiam a sua pequena «sala de música», onde não tem nenhum leitor de CDs (porque não precisa) mas continua a ter todo o prazer com o acto de colocar um disco no prato e, com uma precisão cirúrgica, fazer mover a agulha até à faixa pretendida.
Nesta fantástica colecção, Amália é a rainha com mais de 500 discos. «Eu nem sequer gosto muito de fado mas a Amália é uma coisa diferente, não é só o fado, é tudo. Era a maneira como cantava e era o facto de ser muito fotogénica e ter umas capas geniais. É uma colecção especial.» No gira-discos de Heitor de Vasconcelos, Amália Rodrigues canta em vários formatos (até no raro 78 rotações) e em edições do Japão, da Turquia, do México, do Brasil, dos Estados Unidos, da França, do mundo inteiro. Mas há mais. Heitor de Vasconcelos orgulha-se de ter praticamente todos os discos do pop-rock português e ainda todos os discos estrangeiros prensados em Portugal. Em 45 rotações, claro.
«Pode-se ter muitos discos e não se ter uma colecção», explica. «Uma colecção tem de ter uma coerência.» Ao contrário de Luís, Heitor não tem qualquer ligação profissional com a música. Foi oficial da força aérea durante 12 anos e depois trabalhou na Junta de Turismo da Costa do Estoril. Hoje, com 60 anos, está reformado. Tem tempo para procurar todas as raridades, ir semanalmente à feira da ladra, visitar as feiras internacionais (a de Barcelona é a melhor, afiança). Só assim conseguiu reunir os seus maiores orgulhos, desde uma secção assumidamente kitsch (até lá está Luís Piçarra a cantar Ser Benfiquista) até à colecção dos temas portugueses na Eurovisão, nas suas diversas edições. Raridades: quatro discos dos Queen prensados em Portugal, um David Bowie editado pela Philips Portuguesa, um EP português dos Kinks, apenas para dar alguns exemplos.
Existe uma espécie de bolsa de valores dos discos e Heitor está sempre a par. O disco mais caro que já comprou foi a edição francesa de Light My Fire, dos Doors. «O disco vale pelo conjunto – o bom estado do vinil e da capa – mas se tiver de fazer uma opção, opto pela capa.»



JOÃO AFONSO

Profissionalmente, João Afonso sempre esteve ligado à música. Colaborou no Rádio Clube Português no Porto; fez, no vespertino Diário do Norte, um dos primeiros suplementos de cultura popular (música, teatro, cinema e poesia) da imprensa portuguesa, chamado O Elefante e, em 1970, foi um dos quatro fundadores do jornal especializado em música A Memória do Elefante. O actual responsável pelo departamento de marketing estratégico da Sony Music nasceu há 57 anos na Régua e, aos cinco anos, mudou-se para o Porto. Foi aí que, durante a adolescência, se iniciou no mundo fantástico dos bailes organizados nas garagens dos pais e das bandas mais do que amadoras. O primeiro disco que comprou, com 17 anos, só podia ser dos Kinks, a banda do momento: foi o single Tired Of Waiting For You, em 45 rotações, e custou-lhe uns 15 ou 20 escudos, um absurdo na altura. Ainda para mais porque João nem sequer tinha gira-discos, ouvia-o na casa dos amigos. «Era moda comprar os discos que eram primeiro lugar em Inglaterra», recorda.
A colecção de discos que hoje tem – cerca de 15 mil em vinil e 20 mil em CD – foi construída à medida do seu gosto e das descobertas musicais que foi fazendo. Não admira, por isso, que tenha muita música francesa e brasileira, blues, pop-rock, jazz, música celta. «Sou muito eclético», confessa. «Mas quando gosto de um artista tenho que ter tudo dele.» É a isto que se chama mania de coleccionador. Veja-se o caso de Amália Rodrigues, a dona Amália, como lhe chama. A sua colecção pode não ser tão completa quanto a de Heitor, mas João orgulha-se de ter todos os discos que Amália editou em Portugal e ainda por cima assinados pela própria.
É qua a grande particularidade da colecção de João Afonso não é a quantidade nem sequer o facto de ter algumas discografias completas ou raridades. O seu maior orgulho são as assinaturas, os autógrafos das estrelas, os rabiscos quase indecifráveis nas capas dos discos. A primeira vez que se atreveu a pedir um autógrafo foi quando os Procol Harum vieram tocar a Cascais. «Não tenho vergonha nenhuma, assumo-me como um fã, espero um momento em que se proporcione e peço», explica. Grand Hotel foi o primeiro dos cerca de 2 mil discos que João Afonso já tem assinados. A lista de troféus inclui três discos assinados por Frank Sinatra, outros tanto por Miles Davis, mais de 30 por Sakamoto, quase todos os de Bruce Springsteen. E ainda Frank Zappa, Roberto Carlos, Ney Matogrosso, Milton Nascimento, Djavan, Genesis, Leo Ferré, Peter Gabriel, Noel Gallagher, Chuck Berry, Donovan, Chieftains, Luciano Pavarotti, Leonard Cohen, Yo Yo Mama, Rolling Stones, Eric Clapton... é impossível enumerá-los todos. Mesmo assim, João Afonso faz questão de dizer que não anda a pedir autógrafos só por pedir: «Tenho que gostar do artista, primeiro da música e também da pessoa, se não não peço.»
Claro que o facto de trabalhar numa grande editora lhe facilita muito a colecção. João Afonso não tem que esperar nas filas, como os outros fãs. Conhece as estrelas nos bastidores, convive com elas, conquista-lhes a confiança e só depois lhes apresenta os discos para assinar. Foi assim que conseguiu os autógrafos de Lou Reed, Bob Dylan ou Miles Davis – de quem todos dizem que é quase impossível obter uma assinatura, quanto mais um simpático «para o João».

Mais do que um coleccionador, diz que é um «apreciador de música». É por gostar de tudo o que lhe está relacionado que tem também uma colecção de rádios antigos (cem, todos a funcionar), três grafonolas e ainda uma juke-box dos anos 50. O que é capaz de fazer por um disco? Muito pouco. Não se dá ao trabalho de frequentar feiras de coleccionismo e nem sequer gosta de encomendar discos na Internet, mas frequenta as principais discotecas, aproveita as viagens para procurar as coisas mais raras, faz encomendas aos amigos - «quase tudo se encontra no Japão, embora caríssimo» - e gasta imenso dinheiro, confessa. Tal como Luís Pinheiro de Almeida e Heitor de Vasconcelos, João Afonso traz sempre na carteira uma lista de compras. «Andamos sempre à procura de qualquer coisas.» E de vez em quando encontra umas raridades. A maior de todas será o duplo vinil que os Genesis gravaram ao vivo em 1987 em Leicester e Manchester e que nunca chegou a ser editado. O «disco de fábrica» foi-lhe oferecido pelo dono da Charisma e tem ainda mais uma especificidade: uma versão do Supper’s Ready com 26 minutos, absolutamente única. «Só há quatro exemplares em todo o mundo e um é meu», orgulha-se João Afonso. «Nem o Peter Gabriel tem um.»




4.5.17

DN:música - Série: Os Melhores Álbuns De Sempre (10)


DN:música
Os melhores álbuns de sempre

[49] SÉTIMA LEGIÃO

MAR D’OUTUBRO



‘Mar D’Outubro’, o fundamental segundo álbum da discografia da Sétima Legião representou, em 1987, uma das mais importantes declarações de identidade portuguesa sob linguística pop/rock. Um absoluto clássico do seu tempo.

TÍTULO Mar D’Outubro
ALINHAMENTO Sete Mares / Noites Brancas / Noutro Lugar / Este Amor Que Nos Separa / Saudades / Baile (das Sete Partidas) / Além-Tejo / A Reconquista / Os Limites do Mar / Onde Tem Estado o Outono?
ANO 1987 (EMI)
PRODUTOR Ricardo Camacho

T: N.G.

Depois da explosão de 1980/81, na qual a grande novidade era o recurso ao português, os músicos puderam então respirar e pensar como descobrir um verdadeiro sentido de portugalidade com base numa linguagem com raízes reconhecidamente anglo-saxónicas. Os primeiros a fazê-lo foram os Heróis do Mar, numa abordagem temática, ideológica e iconográfica tão apurada e evidente que lhes valeu até equívoca interpretação. Seguiu-se-lhes António Variações, num encontro entre o cosmopolitismo pop e os cantos da Terra mãe, do folclore minhoto ao fado.
Um terceiro nome, a entrar em cena pouco depois, acabaria por conhecer um percurso de vida artístico que em si viu nascer a mais completa e representativa visão moderna e urbana da música que brotou deste solo. Tinham (e têm) nome de exército romano: Sétima Legião.
Se o mais recente Sexto Sentido (título fundamental da discografia portuguesa recente, editado em 1999) representou o culminar dessa demanda, definindo um conceito pop que expressa uma vivência que reconhece que o que somos hoje é também resultado do confronto do presente com toda uma genética cultural, o início de todo o processo remonta a um álbum que, como poucos, marcou o Portugal da segunda metade de 80.
A Sétima Legião tinha dado os primeiros passos num single que gerou culto (Glória, 1983) e num álbum que fez história 8ª Um Deus Desconhecido, 1984), ambos editados pela independente Fundação Atlântica. Foram Discos importantes, determinantes mesmo, mas reflectindo ainda mais os pontos de partida, as referências e paixões, que uma alma própria.
Essa emergiu de transformações não só estéticas mas também humanas no seio da banda, que de cinco passa a contar com oito elementos e um diferente naipe de instrumentos. Aléms dos veículos tradicionais em linguística pop/rock, a Sétima Legião mostra agora intensa relação com percussões, acordeão, gaita de foles e até mesmo uma guitarra portuguesa.

Mar D’Outubro, do qual nasceram clássicos como Sete Mares (que daria nome ao programa de Sílvia Alves na Antena 1) e Noutro Lugar, assim como espantosos depoimentos instrumentais em Noites Brancas ou Este Amor Que Nos Separa e ainda pujantes afloramentos de intensidade bebida na terra (de geografia portuguesa, mas projectada a Sul) em Saudade, Além-Tejo ou Reconquista materializou um novo e consequente sentido de identidade portuguesa na pop do seu tempo. Isto sem perder, no processo de reinvenção da sua música, as marcas de identidade e relação com os timoneiros estéticos de referência no seu tempo. Sem dúvida, um absoluto clássico de 80.





3.5.17

Kraftwerk - Crítica de Discos - "Minimum Maximum"


DNm: 10 de Junho de 2005

A MÁQUINA AO VIVO





O Documento áudio da inesquecível digressão mundial dos Kraftwerk que nos visitou em 2004 chega em ‘Minimum Maximum’. Um verdadeiro ‘Best Of’ de 36 anos de carreira gravado ao vivo.
T: N.G.
Apesar de terem protagonizado algumas digressões históricas nos anos 70 e inícios de 80 (está de resto registada em disco a Autobahn Tour de 1974, mais concretamente nos álbuns não oficiais Concert Classics e Autobahn Live), os Kraftwerk não foram, durante uma série de anos, grandes “amigos” da estrada. Nos últimos tempos, porém, têm corrido o mundo, com a mais espantosa experiência audiovisual de alta tecnologia que os palcos pop/rock alguma vez assistiram. Uma experiência que agora, a meio de uma digressão que continua na estrada, se regista em álbum.
Há um ano, a dias da sua estreia em concerto em Portugal, numa inesquecível noite de música no Coliseu dos Recreios, Ralf Hutter explicou ao DN que só agora a tecnologia disponível lhes permite concretizar em palco uma velha visão de conceito multimédia que há muitos anos alimentavam como cenário de sonho para os seus espectáculos. “Temos o nosso próprio estúdio, o Kling Klang Studio, que é como que um instrumento para os Kraftwerk. E agora, no seu novo formato digital, é mais portátil, pode viajar...”, contou. “Pela primeira vez podemos tocar a nossa música em sincronismo com gráficos gerados por computador ou imagens de vídeo, pinturas electrónicas... Tudo o que a tecnologia hoje permite! Estamos muito felizes porque nesta digressão mundial, podemos apresentar, finalmente, as coisas que queremos segundo uma visão que há muito tínhamos. Essa visão é, agora, para nós, uma realidade”.
Tendo o grupo nascido nos dias de 70 com uma filosofia e imagem de clara oposição aos padrões tradicionais pelos quais se edificavam os mitos rock’n’roll, a sua postura em palco nunca visou quaisquer intenções de assimilar os hábitos performativos do rock. Pelo contrário, os quatro elementos do grupo sempre se mantiveram quase inertes por detrás dos seus teclados e consolas, deixando que o movimento necessário ao acompanhamento da música se fizesse através do desenho de luz e de projecções. A digressão mundial que o ano passado vimos em Lisboa e, depois, num serão acidentado no Sudoeste, e que agora registam em disco, recorre ao que designam por protótipo móvel Kraftwerk 2002, um conjunto complexo de computadores e outras máquinas que gerem em sincronismo a performance musical e o lançamento no espaço de imagens e gráficos gerados por computador. Hutter sublinhou aqui que, desta maneira, a tecnologia do século XXI deu assim a resposta a velhas Ânsias do grupo: “Deu-nos ferramentas para poder tornar reais certas visões nossas. E também mobilidade, movimento... Sempre nos interessámos bastante pelo movimento, daí a conhecida velha fascinação pelo ciclismo.” Hutter recordou ainda que a busca deste sentido de mobilidade das suas ferramentas electrónicas representou uma das demandas fundamentais desde os primeiros tempos de vida do grupo. “Eu e o meu amigo Florian Schneider criámos o nosso Kling Klang Studio em 1970 e dispendemos então muito tempo na sua construção para que assim conseguíssemos ser independentes e autónomos”, lembrou.
“Mas os nossos primeiros sintetizadores eram enormes e estavam constantemente a desafinar. Eram muito caros... O nosso primeiro sintetizador foi tão caro como o meu Volkswagen, que é o que está na capa de Autobahn. Sendo estudantes, tínhamos então os nossos problemas naturais... O Florian desenvolveu então o nosso primeiro instrumento electrónico de percussão, a partir de um outro órgão meu. Um amigo nosso, que era pintor, trabalhava connosco pintando as capas dos discos... Envolvíamo-nos em inúmeros projectos além da música, num contexto multimédia electrónico. E agora estamos a fazer a rodagem mundial do nosso protótipo móvel Kraftwerk 2002. Hoje podemos viajar e ser como pilotos de ensaio para software electrónico relacionado com a música. Continuamos, hoje, a trabalhar com o mesmo engenheiro musical que nos acompanha, desde o The Man Machine... É um processo de continuidade...”.
Quem viu os concertos, sabe que fala verdade.
Com precisão germânica, os concertos começam sempre à hora marcada (o que no caso da actuação no Sudoeste acabou por não dar tempo para a reparação de uma má comunicação entre os computadores que geram as imagens e os ecrãs). Uma voz robótica anuncia que o espectáculo vai começar. E logo as cortinas se abrem para, ao som de The Man Machine, revelar os quatro elementos do grupo estáticos frente aos seus teclados. E, por detrás, um gigantesco ecrã por onde evoluem imagens digitalmente criadas, filmes vintage, referências claras às capas dos discos, palavras cantadas... Extensão directa do conceito total que é a arte dos Kraftwerk, o concerto materializa mais uma ideia de instalação musical electrónica, uma vez mais reinventando os Kraftwerk como um espaço de afirmação de uma identidade oposta à iconografia tradicional da cultura rock’n’roll. O alinhamento, invariável, passa por momentos do recente Tour De France Soundtracks (como Vitamin, Aero Dynamic, Elektro Kardiogramm e diversas variações em torno do clássico Tour DE France), como proporciona um coerente mergulho por um passado mítico, através da recuperação de peças-chave da história da música como Autobahn, Radioactivity (versão mista entre a original, de 1975, e a remistura de 1991), Trans Europe Express (com adenda Metal On Metal), The Model, Neon Lights, Computer World (e o complemento Home Computer), Numbers, It´s More Fun To Compute, Pocket Calculator, Dentaku, Music Non Stop ou o mais recente Expo 2000, na versão Planet Of Visions. No primeiro dos encores abandonam o palco deixando-o entregue aos seus célebres robots, numa magistral celebração do tema The Robots (novamente em versão “actualizada”, segundo a norma aplicada no álbum The Mix, de 1991).

Com o esperado perfeccionismo áudio que caracteriza todas as gravações do grupo, Minimum Maximum traduz em disco o mais espantoso concerto que os palcos nos deram nos últimos anos. E consegue, talvez pela força do alinhamento best of, resistir à ausência da imagem (afinal, o concerto era, como se afirmou já, uma experiência audiovisual). A possibilidade de edição do DVD que documenta esta mesma digressão está na agenda imediata do grupo. Seguir-se-á a reedição remasterizada da obra editada entre 1974 e o presente. Hutter explicou que este trabalho de restauro lhes ocupou parte do tempo nos últimos anos: “estivemos a trabalhar na adaptação aos formatos digitais de toda a música dos Kraftwerk. Tínhamos fitas muito antigas que se estavam a degradar e havia muito trabalho para fazer. Estivemos a transformar 33 anos de trabalho de arquivo dos Kraftwerk em formato digital. Hoje todos os sons originais estão disponíveis e vamos brevemente lançar versões remasterizadas de todos os nossos álbuns desde Autobahn. Essa edição vai chamar-se The Catalog. E o grafismo dos discos vai incluir ideias que não pudemos usar no passado”, adiantou. Venham elas!





2.5.17

DN:música - Série: Os Melhores Álbuns De Sempre (9)


DN:música
Os melhores álbuns de sempre
15.07.2005

[48]        THIS MORTAL COIL

 IT’LL END IN TEARS



Criado por Ivo Watts Russell para promover uma série de colaborações entre músicos da sua editora, os This Mortal Coil, logo no seu álbum de estreia, acabaram por representar o paradigma da identidade atmosférica que caracterizou o som da 4AD em meados dos anos 80.

TÍTULO It’ll End In Tears
ALINHAMENTO Kangaroo / Song To The Siren / Holocaust / Fyt / Fond Afections / The Last Ray / Another Day / Waves Become Wings / Barramundi / Dreams Made Flesh / Not Me A Single Wish
ANO 1984 (4AD)
PRODUTOR Ivo Watts Russell

Além de ter representado uma fundamental (e então urgente) revolução estética e pragmática, o punk foi também catalisador de importantes transformações no meio editorial, tendo, tal como a música, devolvido o poder “Às bases”. Na Inglaterra de finais de 70, pequenas independentes apareceram por todo o lado, muitas associadas a redes de distribuição alternativas e lojas nas quais se podiam encontrar os singles das novas bandas. Entre as editoras que vingaram e sobreviveram à ressaca do punk, a 4AD (ligada à Beggars Banquet) cresceu para se afirmar como uma das mais importantes casas editoriais de 80. Editou Bauhaus (no início), Cocteau Twins, Dead Can Dance, Wolfgang Press e tantos outros nomes que então desenvolveram o emergente conceito de música indie, marcando identidade também através das capas desenhadas por Vaughan Oliver. Coordenada por um melómano, Ivo Watts Russell, a editora 4AD gerou em 1984 um colectivo transversal às bandas do catálogo: os This Mortal Coil.
Materialização evidente do gosto de Ivo Watts Russell, os This Mortal Coil foram um projecto de editora, juntando em estúdio músicos de difeentes grupos, tendo editado uma magnífica trilogia de álbuns entre 1984 e 1991.
O primeiro dos álbuns, o genial It’ll En In Tears reuniu músicos como Lisa Gerrard e Brandan Perry dos Dead Can Dance, Elisabeth Frazer, Simon Raymonde e Robin Guthrie dos Cocteau Twins, Gordon Sharp dos Cindytalk, Howard Devoto (dos Magazine, banda não assinada pela 4AD), Martyn Young dos Colourbox e Robbie Grey dos Modern English, entre alguns outros. O álbum, paradigma do som atmosférico que fez escola na 4AD em meados de 80, é uma pérola de bom gosto, subtileza melódica e riqueza textural.

Muitos recordam hoje o disco pela sublime e arrebatadora versão de Song To The Siren (de Tim Buckley) na voz de Elisabeth Frazer, um daqueles raros casos em que a versão supera o original (tendo David Lynch reconhecido ter servido de inspiração à sua aventura musical com Julee Cruise alguns anos depois) ou pelas não menos cativantes novas leituras de Kangaroo e Holocaust de Alex Chilton (dos Big Star) ou Not Me de Colin Newman. Mas It’ll End In Tears (tal como o álbum seguinte, Filigree And Shadow, de 1986) vale como um todo (que aacaba até por diluir em si as diferentes partes). A sucessão de canções define um percurso plácido por sonhos para voz e instrumentação quase ambiental, criando atmosferas de melodismo subtil e canções de complexa arte final numa linha próxima da que então tomava o rumo da obra dos Cocteau Twins e Dead Can Dance (claramente os pólos estéticos protagonistas nesta etapa dos This Mortal Coil).





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