autor: Luís Maio
título: Afectivamente GNR
editora: Assírio & Alvim (colecção Rei Lagarto - 17)
nº de páginas: 147
isbn: 972-37-0225-8
data: 1989
sinopse:
Apresentação
Este livro é em princípio uma estreia. O primeiro entre nós publicado a respeito de uma formação portuguesa na área da chamada «música moderna». Um acontecimento que desde logo remete para o espaço cultural onde se vem inscrever, para eventualmente forçar a estreiteza dos seus actuais parâmetros.
A tradicional subalternidade do sector pop/rock no círculo musical nacional pode considerar-se, a nível de produção, em fase de ser superada. Processo germinal nos inícios da década, ainda incluído ou requerendo ulterior reiteração, não parece por isso menos irreversível. Porque, embora pese a fragilidade inerente ao sinuoso fluir local do género, é também incontestável o crescendo quantitativo, e sobretudo qualitativo, que nele se tem vindo a testemunhar. Deu-se o grande safanão musical no complexo de inferioridade perante o estrangeiro, durante cerca de três decénios pouco ou nada disfarçado por glosas desinspiradas, quando não desastrosamente incompetentes. Graças às aquisições cada vez mais seguras da geração de 80, estamos agora no ponto em que se torna improvável a regressão ao obscurantismo, pelo menos, em que se esconjurou a empecida apatia do passado.
Se a incriatividade traumática no capítulo pop/rock foi aqui ultrapassada, em contrapartida não se chegou sequer a visar o bloqueio anexo que por sistema o tem relegado para o charco das artes menores. Aliás, a submersão no embrutecimento não fez senão radicalizar-se por via de uma espécie de aliança tácita dos músicos com os média e o público, como se a desqualificação do estatuto artístico fosse certificado de vitalidade das obras. Assim, evitando higienicamente quaisquer conotações passadistas com a concorrência moribunda da mpp, a nossa música moderna ergueu-se e persistiu empunhando a diversão como exclusivo estandarte. Rejeitou-se, portanto, a marca da intelectualização, dispensou-se a própria intencionalidade, incluindo circunstâncias onde «leituras» trivializantes por força soaram a falso.
Ao promover a descuidada negligência que é a de se reflectir como endémica e estouvada, a nova comunidade musical tem resvalado continuamente para o precipício das aberrações culturais. Daí, em particular, a situação de «alegre analfabetismo» que faz o grosso do luso discurso metamusical, a futilidade mentecapta da maioria das entrevistas, a ignara ligeireza das revisões críticas e, a rematar tudo isto, a ausência de uma leitura adequada a quase quatro décadas, em especial aos agitados últimos anos da nossa história pop/rock.
Os GNR aparecem neste contexto em posição privilegiada a exigir um tipo de tratamento diferente. São uma das bandas mais resistentes da nossa «vaga moderna», uma das raras sobreviventes do seu primeiro «boom» em 80 a conservar-se actualmente em actividade. Apesar de, ou graças às sucessivas mudanças de formação e variações de estilo, a apreciação do seu trabalho em termos globais aponta para um saldo francamente positivo, por certo sem rival à escala nacional. Não embarcaram na onda do rock português, nem na moda mais recente dos revivalismos de veia popularista. No entanto, ou não obstante se terem sabido manter à margem dos movimentos que têm dominado a nossa cena pop/rock, poucos serão aqueles que como eles se podem vangloriar de a terem tanto e tão bem servido. Descolando de qualquer tipo de tributagem mimética, colhendo influências nos mais diversos estilos musicais para as devolver em configurações próprias e com frequência brilhantes, eles criaram um estilo. Foram e são exemplo paradigmático de uma independência que se reconhece como apanágio do mais apurado escol cultural lusitano. Depois, na sua atitude artística, a exemplaridade tem vindo a par com a excepcionalidade. Desde os primórdios, e cada vez mais, os GNR pautam a sua actividade por um princípio de prazer, imediato e pregnante, perfeitamente ajustado aos requisitos do campo pop/rock. Nisso têm alinhado a concurso e boa parte das vezes vencido aos pontos os mais sérios candidatos a «entertainers» surgidos entre nós nesse âmbito. As músicas nunca deixaram de ser sedutoras e contagiantes, recentemente também muito dançáveis, as palavras só têm ganho calo na ludicidade hilariante e irresistível, ao passo que os concertos já foram delirantes para agora se tornarem de uma espectacularidade mais mesurada e profissional. No entanto, no grupo portuense, o encanto e a fruição são possíveis na medida em que se desencadeiam, como bem mais que puro entretenimento. É discutível se a música dos GNR corresponde aos objectivos dos instrumentalistas que a têm rubricado e, como mesmo aqui se poderá constatar, várias são as situações de declarada discrepância que a este respeito há a citar. Contudo, desde o semi-experimental «Avarias» aos instrumentais de Alexandre Soares, passando pelo vasto rol de canções de estrutura pouco ortodoxa que amiúde constela todos os álbuns, esta banda nunca se rendeu à facilidade e simplismo acreditados nos tops. Por outro lado, se é também duvidoso Rui Reininho ter alguma vez ambicionado algo mais que divertir divertindo-se, convenhamos que por regra escolhe vias pouco pacíficas de saciar semelhante propensão. Será um ponto a aprofundar mais tarde, mas é evidente desde o primeiro contacto que o riso que investe em palavras, voz e perfomance, é tudo menos o «saudável» conformismo. A sua gargalhada é sempre a «outra» a que provoca o poder e o instituído, a que faz alvo da «seriedade trágica» no esteio das normas e usos correntes.
Assim tem evoluído o grupo pop/erock português rompendo a autocastradora malha dualista onde o género se vem a arrastar, apostando na sensualidade e na inteligência como duas faces da uma única moeda. Tendo em vista a relevância da banda na nossa música moderna e a especificidade do seu posicionamento, sobre outro nome não poderia recair este projecto. Porque se reclama refractário no espírito àquela antítese de que eles são os detractores autorizados, porque, complementarmente, se supõe inaugural na fórmula literária que eles melhor que ninguém entre nós justificam.
Este livro não é, portanto, o tipo de brochura singela feita de encomenda para aterrar nas estantes dos adolescentes entre os compêndios escolares e os policiais de bolso. Não se satisfaz no desvendamento de «segredos escaldantes», supondo que os há na vida privada dos artistas, nem no historial epicamente relatado do seu currículo. É claro que a história do grupo e a vida dos músicos nos importam, mas apenas na medida em que possam contribuir para elucidar a obra. Porém, o objectivo não é académico, estando longe do nosso propósito impor abordagens na linha de uma musicologia científica ao que pela sua natureza própria é estranho a esse aparelho conceptual. A análise interessa-nos, todavia, na perspectiva de uma abertura de pistas que em vez de fornecer uma única chave de interpretação possa sugerir várias. Pretendemos expor os GNR tal como os entendemos e, em última análise, acreditamos que a moderna música portuguesa na sua globalidade é qualquer coisa de estimulante entre o prazer e a razão. Evidentemente, o facto de se tratar de um ensaio para o qual partimos sem rodagem prévia, num espaço em que não se encontram precedentes locais, dificulta e contingencia tal experiência.
É provável, em particular, que surjam acusações quanto à atitude genérica que assumimos sobre o nosso objecto. Não adoptamos a apologia incondicional, rejeitamos o olhar distanciado do observador imparcial. Mantemo-nos antes numa espécie de meio termo entre a objectividade analítica e a apreciação valorativa, quase, mas nem sempre, favorável. Para muitos será um erro metodológico, sê-lo-á provavelmente, para nós é uma opção ditada pelos pressupostos de onde toda a empresa descola. Não interpelamos uma banda de que gostamos numa óptica de desempenhamento, como não deixamos de examinar com rigor crítico os aspectos nela estimados negativos.
Uma última questão preliminar: o aparecimento deste livro não representará para os GNR, como já sucedeu com tantas estrelas pop em situação análoga, uma sentença de morte, ou pelo menos de declínio? Não é este, faça-se notar, o nosso ponto de vista. É opinião corrente entre os especialistas e auditores mais qualificados sertem os mais recentes trabalhos da banda portuguesa os seus piores até à data, e é bem possível que seja o caso. Não obstante, pensamos que por enquanto merecem o benefício da dúvida. Este livro nasceu das razões que já indicámos, e também porque sendo nós capazes ou não de lhes fazer justiça, é verdade que os GNR já há muito conquistaram o direito a um tributo deste tipo.
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