8.4.15

Memorabilia: Revistas / Magazines / Fanzines (55) - Sonora #2 - 1991


Sonora
#2 - 1991
98 páginas
Bilingue: Italiano + Inglês
com CD de oferta


Nº 2 da revista Sonora, editada pela Materiali Sonori de Itália. Já aqui apresentámos o Nº1, de 1990.
Este número é mais dedicado ao cinema e às ligações deste com a música.
Daí ao texto ilustrativo abaixo, sobre David Lynch.




Lynchmania (c)

"Sobre técnicas de filmagem há muitos manuais, sobre a crítica temos muitas opiniões, mas quanto a iluminações existem apenas alguns lampejos espasmódicos"
James Broughton, Seeing The Light, 1977

Graças à Palma de Ouro com que foi galardoado no Festival de Cinema de Cannes por Wild At Heart, e acima de tudo, pelo êxito retumbante a nível mundial da série televisiva Twin Peaks, David Lynch foi rapidamente transformado de um director de culto num realizador de primeira classe e celebridade mundial. Agora já um realizador conhecido, como poderíamos esperar em tais casos, para a imprensa, especializada e não especializada, que se diverte a si própria encontrando toda a espécie de significados e referências nos seus, indubitavelmente, estranhos filmes.
A Lynchmania contagiosa dos últimos meses tem contudo trazido na sua trouxa novos elementos nos média que deveríamos ter assumido como sendo incompatíveis com largas audiências televisivas: Temas de uma morbidez maníaca, níveis de violência física e psicológica sem precedentes, megadoses de ironia surreal e puro nonsense.
Significativamente mais importantes são as inovações de Lynch a nível da sintaxe fílmica, ou de preferência a devoção a especificidades visuais poéticas do cinema do realizador, construídas através la lente da câmara em vez de nas páginas do script (tal como Greenway, Jarman e outros poucos realizadores contemporâneos). A linguagem que Lynch usa de modo tão sábio e com tal auto-confiança, é essencialmente sensorial e institiva, e precisamente por esta razão a banda sonora (frequentemente uma colagem de peças evocativas e efeitos sonoros desconcertantes, de que o realizador se ocupa pessoalmente) não tem menos importância do que os ângulos da cãmara e a prova das imagens, em que a história recua no fundo, algumas vezes apenas um pretexto para orgias de citações visuais e estilização. Como um maestro de sinfonias bizarras, Lynch parece uma espécie de voyeur naif, genuinamente interessado em tornar o espectador seu cúmplice, enquanto explora as ocorrências do filme e o comportamento patológico que parece sempre ser estar sempre à espreita sob a superfície da, assim chamada, normalidade. As suas poesias são quase minimalistas, desenhadas com uma clareza ao estilo da banda desenhada, com personagens bem definidas, expressões e características físicas levadas ao extremo, e uma tal manáiaca subdivisão entre o Bem e o Mal, pureza e malvadez, melodia e ruído, que nos fazem pensar se não estamos a ser levados ainda mais longe. Entre os símbolos recorrentes, um dos mais explícitos tem a ver precisamente com a precariedade da visão cinemática, da maneira como ela é condicionada pelos raios de luz que saem do projector num continuum, alternando entre Luz e Escuridão. É o tremeluzir de lâmpadas quase a avariar, que encontramos no quarto da personagem principal de Eraserhead, tal como nas cenas finais de Blue Velvet e em vários momentos de Twin Peaks, são as chamas vacilantes de uma vela, novamente em Blue Velvet, os fósforos que são repetidamente postos, parados, defronte da lente da câmara em Wild At Heart e as luzes stobe em Industrial Symphony N.1. Um salto nos cantos mais recônditos e escuros do desconhecido podem surpreender-nos a qualquer momento, transpotando-nos para universos misteriosos, mas também de repente e inesperadamente, podemos ter as mais belas e felizes revelações a iluminar-nos.



RENAISSANCEHEAD
David Lynch nasceu em 20 de Janeiro de 1946, em Missoula, Montana. Passou a sua infância em vários estados dos EUA, mudando-se com o seu pai, um investigador científico nso US Forest Service. Bom a desenhar desde cedo, completou, de forma algo desorganizada, os seus estudos em artes nos anos sessenta, tendo também viajado pela Europa e acabando num estúdio de uma expressionista abstracto com o nome programático de Michael Angelo. Enquanto trabalhava nos mais inclassificáveis empregos, frequentou a Philadelphia Academy of Fine Arts, começando a produzir trabalhos extravagantes de arte gráfica, tal como um poster mostrando uma galinha estripada. Tendo casado com uma colega de curso e depois tornado-se pai pela primeira vez em 1967, Lynch, talvez estimulado pela experimentação criativa de realizadores independentes como Harry Smith e Stan Brakhage, fez alguns projectos multimédia: ganhou o primeiro prémio numa competição artística com uma espécie de filme-escultura, um ecrã com três unidades tridimensionais na qual se projectava um filme de animação. Também Alphabet é uma curta metragem que junta animação e acção ao vivo, e que lhe granjeou a possibilidade de estudar no prestigiado American Film Institute. A curta seguinte, The Grandmother, a história de um rapaz solitário que faz crescer uma generosa avó a partir de uma semente (!), foi bem recebida em várias competições. Depois de uma mudança para Los  Angeles, de 1971 a 1976 Lynch dedica-se a si próprio, sendo confrontado com problemas financeiros e pessoais, para conseguir acabar a longa metragem Eraserhead, um projecto muito pessoal e radical (depois de se ter divorciado da sua mulher, acabou por ficar literalmente a viver no estúdio de realização, dormindo no quarto onde grande parte da acção do filme tinha lugar). Uma surpresa desagradável aguardava o autor quando o seu pesadelo a preto e branco ficou finalmente acabado. - foi-lhe recusada a entrada nos mais prestigiados festivais cinematográficos, até o distribuidor Ben Barenholtz lhe dar a oportunidade de se tornar num filme de culto de sessões da meia-noite. Depois de um período de inactividade forçada, Lynch arranja maneira de começar The Elephant Man que recebeu nada menos do que oito nomeações para os óscares, em 1980, estabelecendo a reputação do realizador de uma vez por todas. Dune veio a seguir, uma adaptação ambiciosa da saga de ficção científica de Frank Herbert que foi recebido de forma morna pelos críticos e pelo público, e depois o bizarro mas feliz Blue Velvet, uma filme controverso devido à sua rudeza na manipulação de géneros cinematográficos, moldando-os aos caprichos de uma ardente imaginação visual. O sucesso de bilheteira, apesar das reservas postas por alguns críticos, permitiu a Lynch usar a mesma fórmula em Wild At Heart, que venceu em Cannes e, acima de tudo, agradou muito às novas gerações, e com a série televisiva Twin Peaks, que, inesperadamente, atraíu uma vasta audiência, encorajando a feitura de novos episódios, após o conjunto inicial de oito. Tendo atingido o pico da fama com apenas cinco filmes, Lynvh, do seu período com estudante de artes reteve uma evidente abordagem multimédia na sua criação cinematográfica. Os seus filmes tendem a recuperar e recapitular uma multiplicidade de estímulos culturais (desde a pintura à banda desenhada, desde o rock aos vídeoclips) e o realizador, ele próprio, gosta devariar nas suas actividades evidenciando um ecletismo ao bom estilo Renascentista: escreveu letras de canções (assim, ele é mais do que um simples criador de ruídos abstractos), escreveu e desenhou tiras de banda desenhada (a sua tira semanal para o L.A. Reader, The Angriest Dog in the World, tinha sempre os seus desenhos e textos derivados das mais banais conversas), ele exibiu ainda de forma regular as suas pinturas perturbadoras, tirou fotografias (um livro vai ser publicado com os temas improváveis de arqueologia industrial e higiene oral - pensamos que não ficaria mal nas edições da Re/Search!), é actor (aparecendo de forma breve na segunda série de Twin Peaks como um detective quase surdo, e em Zelly & Me, de Tina Rathbone) e ainda terá, provavelmente, mais uma série de cartas para jogar. O Diário Secreto de Laura Palmer, que se tornou num best-seller internacional, não é o habitual livro sobre uma série televisiva, mas na verdade o diário privado da personagem principal e vítima de Twin Peaks, da forma como é representada na TV: ela contém muitos elementos novos, é uma peça incompleta de um mosaico multimédia no qual há também lugar para "Diane...", as fitas magnéticas que o detective Cooper dita a uma secretária invisível, editado em cassete pela Simon & Schuster com a voz de Kyle MacLachlan. Emprestando-se a si próprio a inevitáveis aventuras de marketing, Lynch geriu-as de tal forma a obter novas teias da sua própria mitologia da psicose, criando ligações complexas entre a realidade e a ficção (não é por acaso que os seus familiares, amigos e elementos autobiográficos são frequentmente misturados nos seus filmes, o diário foi escrito pela sua filha Jennifer que tinha a mesma idade de Laura Palmer...). É precisamente aqui que a estranha força do autor se baseia, em ter de gerir para construir, como William S. Burroughs nas suas novelas, um universo de símbolos composto por camadas e meta-narração que intermutam de forma explicita entre um trabalho e outro, fazendo explodir as convenções de uma história linear, prescindindo das vantagens de uma forma mais tradicional de comunicar mas ganhando acesso a dimensões inexploradas do inconsciente, para todos aqueles espectadores preparados para aceitar uma participação diferente e mais dinâmica na visualização das suas obras ("Penso que a vida é como eu a mostro, que a podes reduzir cada vez mais e que mesmo assim continuará sempre a fazer um sentido fantástico").

TWIN SOUNDTRACKS
Como já referimos, para Lynch a banda sonora é de capital importância na feitura do filme, o cuidado com que ele escolhe as peças de reportório a usar e os colaboradores musicais, tal como a atenção dada à gravação e produção sonora das várias bandas sonoras, não tem quaisquer rivais na história recente do cinema (traz-nos à memória o célebre e inteligente comentário de Kubrick para 2001: A Space Odissey e A Clockwork Orange). Assim, não é particularmente surpreendente, especialmente ultimamente, que os produtos sonoros de Lynch têm tido um sucesso que vai muito para além dos coleccionadores de bandas sonoras, tendo até conseguido alguns lugares honrosos nas tabelas de vendas (além disso, Simon Frith, num ensaio incluído no volume recente Facing The Music, analisa de forma perspicaz o incremento que se tem verificado nas colaborações entre as indústrias cinematográfica e musical).
Eraserhead é um conto mórbido sobre Henry Spencer (John Nance) que sofre de alucinações, do seu casamento com a retardada Mary X e o nascimento de uma criança monstruosa, que é morta pelo seu pai no final visonário. A extraordinária atmosfera de pesadelo é tão devida à fotografia expressionista e sinistra como o desconcertante continuum sonoro de rssoar industrial, baforadas de vapor e vento assobiador, que quase sempre se sobrpõem os magros diálogos das personagens, criando um efeito paradoxal de filme mudo. Lynch, juntamente com Alan R. Splet, é o responsável pela banda sonora chocante e cacofónica, onde do magma sonoro ele permite a emergência apenas breve e distorcida de extractos de velhas gravações de jazz (que Henry ouve no seu gramofone), e uma pequena canção minimal com música de Peter Ivers, In Heaven, cantada por uma cantora deficiente e deformada que Henry vê, ou sonha que vê, no radiador do seu esquálido pequeno quarto. Deprimente e fascinante ao mesmo tempo, Eraserhead é feito com aquele sentido sombrio de dificuldade existencial que pertencia à geração punk de 1977, e é, assim, muito propriado que a estranha banda sonora tenha sido publicada pela editora Alternative Tentacles, a editora independente dos Dead Kennedys (uma foto da incrível criança é disponibilizada juntamente com o disco).
Uma das pequenas piadas sobre a natureza é também o centro da sua empreitada cinematográfica seguinte, The Elephant Man, que em linguagem tradicional narra a história verídica de John Merrick, uma pessoa sensível, prisioneira num corpo monstruoso, sujeito aos tormentos mórbidos e à curiosidade doentia das pessoas normais. A época vitoriana na qual a história se passa foi recoonstruída com acuidade exemplar, mais uma vez numa fotografia inspirada a preto e branco. A música, composta e conduzida por John Morris, orquestrada por Jack Hayes para a National Philharmonic Orchestra, recria a atmosfera do tempo duma forma convencional, mas digna de nota, com soluções orquestrais dramáticas, tocantes ou grotescas (as árias do circo que acompanham as cenas nas apresntações públicas). O único parêntesis musical ocorre quando o Elephant Man está a ver um conto de fadas, em pantomima, no teatro ao som do Adagio For Strings pelo compositor americano Samuel Barber (1910 - 1981). Lynch não resiste à oportunidade de se dispersar pelas áreas sombrias de Londres no pico da Revolução Industrial com os seus efeitos sonoros particulares, que também em trabalhos futuros aparecem para representar algo que é a sua marca.
Dune, um filme que Lynch fez de forma feliz depois de tanto Jodorowski e Ridley Scott terem sido obrigados a desistir do projecto, é ainda um teste de uma natureza diferente para o realizador, muito influenciado pela procura de uma mega-produção. A música foi atribuída aos pomposos Toto, um grupo formado por músicos de estúdio americanos bem conhecidos, de alguma forma em declínio depois dos estrondosos êxitos de vendas dos seus dois primeiros álbuns. A banda dos irmãos Porcaro utilizaram a Vienna Symphony Orchestra para os arranjos e o resultado é algo maneirista, sendo as únicas excepções o evocativo tema principal Main Title e o etéreo Prophecy Theme, que foi contudo composto e executado por Brain Eno, Daniel Lanois e Roger Eno, músicos mais apropriados para a interpretação esotérica-introspectiva de Lynch da famosa saga de ficção científica. Para os Toto, o disco foi um completo flop, enquanto no filme, apesar de muitos altos e baixos, podemos apreciar as imagens barrocas e o cuidados retrato das personagens. Um processo diferente, e mais de acordo com o estilo de Lynch e com a sua sensibilidade musical, foi então utilizado nos dois filmes seguintes. Blue Velvet e Wild At Heart. O primeiro é um thriller com uma história amorosa que acompanha um jovem, Jeffrey, numa espécie de viagem inicática (um dos temas favoritos da literatura americana), através dos negros mistérios que estão escondidos sob a aprentemente vida calma de uma pacata cidade, Lumberton. O segundo é um road movie suis generis que reconta a fuga da bela Lula da sua despótica e cruel mãe, na companhia do seu namorado, Sailor, um autêntico rocker rebelde, ambos parecidos em espírito e aparência. Em ambos os casos Lynch utilizou música original de Angelo Badalamenti, escrito tendo em mente os sons típicos da música pop dos anos 50 e 60, o período em que se passam as histórias, misturados com temas bem escolhidos do reportório standard, que servem frequentemente para elevar ou baixar o nível da acção, sublinhando sistematicamente os momentos chave dos filmes. A canção lânguida The Blue Velvet, cantada por Dorothy Vallens / Isabella Rossellini é o hit romântico tirado das tabelas de venda de 1963 por Bobby Vinton (em 1990 entrou novamente para os tops na Grã-Bretanha, por influência directa do filme de Lynch), e também outro hit de 1963, In Dreams, de Roy Orbinson, cantado em palyback por um gangster homosexual (utilizando uma lanterna como microfone: que melhor metáfora para o modo como o som e a imagem podem ser absolutamente complementares um do outro?) para agradar a Frank Booth, o criminoso psicopata, competentemente interpretado por Dennis Hopper, um verdadeiro fetish rock 'n' roll que se expressa quase em exclusivo por citações de letras de canções famosas. Lynch gosta de fazer os seus actores cantar, e assim a perfomance de Sailor / Nicholas Cage ao estilo Presley (que já tinha sido colocado em teste, musicalmente falando, no contexto dos anos 60, no filme de Coppola, Peggy Sue Got Married) não são meramente decorativos, mas constituem um código secreto entre os amantes em fuga, sendo Love Me Tender a fórmula mágica que propícia o final feliz. Se para a exploração macro-fotográfica de uma orelha humana ou para dentro de uma colónia de insectos novamente correspondem ruídos que parecem amplificar os micromecanismos naturais e as suas vozes para além dos níveis normais de percepção, a orquestração suave de Badalamenti (Mysteries Of Love, Dark Spanish Symphony) serve para segurar a audiência, antes de repentinas explosões de violência e irracionalidade virando a narrativa de pernas para o ar. Os clássicos de rock 'n' rolle as lânguidas baladas adolescentes (Be-Bop A Lula, Love Letters), juntamente com anacronismos deliberados (do hardcore de Powermad ao recente sucesso Wicked Game, de Chris Isaak, Lynch queria que ele resultasse também em Wild At Heart, competindo de forma avessa para criar interconexões intricadas de citações entre os dois filmes, em que ambos apontam para a importância do papel da música rock e da cultura rock no desenvolvimento cultural do realizador (Wild At Heart, com a sua sucessão selvagem de sequências memoráveis, tem o estilo de um longo vídeoclip).
A série Twin Peaks, pelo menos nos primeiros episódios que foram mais directamente supervisionados por Lynch (a terceira série perdeu virtualmente toda a sua força original), é ainda mais uma fenomenal concentração de citações da cultura musical e cinematográfica-televisiva Americana (A mais obstinada reconstrução da multiplicidade de referências escondidas pode ser encontrada no segundo episódio do magazine Americano Vídeo Watchdog), todos levados ao ponto da exasperação, partindo-os e virando-os do avesso, os cânones da telenovela e mistério (é suficiente dizer que a personagem principal, Laura Palmer, é já um corpo morto desde o início!). Também aqui encontramos pessoas ligadas à música de uma forma maníaca, como Leland Palmer, que, quando não está a rir ou a chorar de forma desalmada, está a dançar e a cantar de uma forma obsessiva. Pode haver uma repentina pausa na acção quando a Girl Singer é cantada na Roadhouse, ou quando uma canção da época é seleccionada na jukebox, ou ainda quando James Hurley decide tocar guitarra acústica e cantar uma melancólica canção de amor. Mais que tudo a música de Badalamenti, logo directamente a partir do inesquecível tema de abertura, com teclados místicos e notas de baixo profundas que expressam a paragem/cristalização de uma angústia, contribui de uma forma decisiva para definir o código estilístico da série, com as guitarras vibrantes, o número do coro cheio de carícias, o fumarento fascínio do cool jazz, as melodias aparentemente inocentes que nos enviam directamente para os inícios da década de sessenta, quando a sofisticação minimalista dos arranjos fez os críticos citar a escola da etérea música New Age mais do que uma vez. E se as composições rarefeitas de Badalamenti vão bem para além do espritualismo ecológico dos produtos ambientais soft de Windham Hill, Twin Peaks é à sua maneira o programa perfeito para ageração New Age, que tem por hábito descobrir e consumir acontecimentos paranormais e teorias metafísicas todos os dias. Talvez seja precisamente agradecer às novas audiências que diferiam em muito, no que toca aos seus gostos, do homem normal, de 30 a 40 anos de idade, velho ex-punks, que uma série de leitura tão difícil tenha sido um estrondoso êxito. De outra forma, termos de pensar que as audiências televisivas como um todo estão mais emancipadas do que habitualmente somos levados a crer, e pedir nada menos que uma mudança na dieta monótona que nos servem de talk shows e quiz games.

O DIÁRIO SECRETO DE ANGELO BADALAMENTI
O sucesso da banda sonora de Twin Peaks, que trepou pelas tabelas de vendas por todo o mundo deram lugar a espúrias versões dançáveis, o que forçou o seu criador a sair do escuro e dar alguns magros detalhes biográficos. Ele é de origem italiana, não muito novo, com um diploma em piano e composição da Manhattan Music School, um professor de música e ainda um compositor/arranjador de jingles publicitários, musicais e bandas sonoras (num inespecificado número de estilos, e dos mais diversos, desde o espalhafatoso Cousins aos filmes de terror, A Nightmare on Elm Street 3: Dream Warriors), Angelo Badalamenti conheceu Lynch na rodagem do filme Blue Velvet, para onde tinha sido enviado para dar lições de canto a Isabella Rossellini. Deram-se tão bem que o músico se viu envolvido na totalidade da banda sonora, e desde aí não parou de colaborar com Davod. O modo de trabalhar da equipa é muito simples: o realizador escreve poemas minimais que servem de letras para as canções (com frases românticas tão banais que até parecem metafísicas), depois descreve detalhadamente ao músico a atmosfera que a peça tem de evocar, e Badalamenti, com sofisticada sensibilidade e uma boa dose sentido latino de paixão, deita cá para fora aquelas melodias subtilmente perturbadoras e aqueles efeitos de atmosferas elusivas, que tanto têm contibuído para a popularidade de Twin Peaks (na realidade um segundo volume de temas musicais da série está já em preparação). Badalamenti, que também possui um estúdio de gravação e co-produziu as últimas edições dos Pet Shop Boys, considera-se um músico completo e não apenas um compositor de bandas sonoras. Enquanto muito lhe colocaram a coroa do novo Morricone dos anos noventa, Angelo está já a trabalhar na música para o próximo filme de Lynch e para o segundo álbum de Julee Cruise, a voz escolhida para interpretar as canções vaporosas do duo.
JULEE CRUISE - A DAMA FLUTUANTE
Uma cantora de anúncios comerciais e uma cantora de coro na Broadway num grande número de espectáculos (Cabaret, Little Shop Of Horrors, etc.), com um diploma em trompa, Julle Cruise é do Ohio. Badalamenti, que já tinha tido a oportunidade de trabalhar com ela no campo publicitário, propôs a sua voz etéra a Lynch, para cantar Mysteries of Love que acompanha os créditos finais de Blue Velvet. O talento natural da cantora e a sua cara peculiar, uma espécie de versão doentia e existencialista de Annie Lennox, causou uma tal impressão ao realizador que foi planeado um álbum inteiro de canções só para ela, Floating Into The Night, que teve uma boa recepção por parte da crítica. O segundo álbum contém dez faixas escritas por Lynch e Badalamenti, três das quais foram também incluídas em Twin Peaks, onde Cruise faz de Girl Singer. Badalamenti tocou os teclados e, com a ajuda de alguns músicos de sessão, criou arranjos delicados e desfocados, muito à imagem das fotos sobrepostas de Lynch que aparecem na capa, enquanto Julee canta numa voz aguda e doce, que não lhe vem de forma natural dela, ou então sussurra as letras. Contudo, muito disso foi planeado conscientmente, esta operação musical atinge um resultado muito fresco e persuasivo. Não contente com o facto de ter dado uma nova vida às suas canções separada do filme, David levantou a fasquia apresentando uma ambiciosa perfomance multimedia, na Brooklyn Academy of Music, em 10 de Novembro de 1989, Symphony N.1 - The Dream of The Broken Heart, que era uma colagem de composições escritas com Badalamenti, intercaladas com ruídos, cantada por Cruise no mei de actuações industriais e aparições surreais que eram de forma flagrante óbvias (um anão que recita enquanto serra uma árvore ao meio, um enorme veado sobre palafitas, bonecas a flutuar no ar, etc.). A presença unificadora no trabalho, que está disponível em forma de vídeocassete, com um prólogo de Nicholas Cage e Laura Dern (a peça pode ser considerada um apêndice onírico à história de amor de Sailor e Lula), é precisamente a figura diáfana da cantora, com a sua face pálida e o seu vestido de seda branca como a neve, que palpita em palco quase na totalidade do espectáculo, com a ajuda de fios invísiveis, uma encarnação enigmática do mais sedutor dos pesadelos do realizador.

PARA VICIADOS APENAS: DAVID ROCKER
Apesar da sua aparência séria e contrita e das suas roupas impecáveis, Lynch mostrou de forma inequívoca nos seus filmes que estava a esconder um coração apaixonadamente rocker. Tanto quanto a isso diz respeito, o mundo musical imediatamente percebeu isso, fazendo de Eraserhead um primeiro manifesto, do tumulto interno e do desgosto niilista das tribos punk/new wave. Os Tuxedomoon, uma influente banda do underground de San Francisco, prestou homenagem ao realizador gravando uma versão tecnológica de In Heaven, a pequena canção bizarra de The Lady In The Radiator, para a compilação Can You Hear Me? Live At The Deaf Club (Walking Dead Records, 1980) - a mesma faixa aparece de novo na colectânea retrospectiva Pinheads On The Move (Cramboy/Maso, 1987). Mas não é caso único. In Heaven é de facto gravada pelos Danse Society também, no seu EP Seduction (Society, 1982), pelos Pixies no Lado-B do seu single Gigantic (4AD, 1988), pelos italianos Pankow no seu primeiro LP Freiheit Fuer Die Sklaven (Contempo, 1987 - também uma versão em concerto, em Omne Animal Triste Post Coitum, Contempo, 1990), e também por um certo Adamski no álbum Musical Pharmacy. Além disso, no início da década de 80, um grupo punk londrino, que deixou marcas apenas em edições em cassete, decidiram chamar-se a si próprios de Eraserhead. Nem o segundo filme de Lynch escapou à atenção carinhosa da cena musical. Em Itália foi oportunamente editado um single de música melancólica para uma banda sonora de isolamento, atribuída aos The Elephant Men (Italian Records, 1981 - entre os cinco misteriosos Irmãos Merrick a voz de Freak Antoni dos Skiantos pode ser distintamente reconhecida). O The Elephant Man aparece na capa do single Freak, do ex-Jam Bruce Foxton e, ainda na Grã-Bretanha, no final dos anos oitenta houve um grupo com o desconcertante nome (I Had Sex With) John Merrick's Remains (um nome certamente estimulado pelo famoso anúncio de Michael Jackson sobre a sua intenção de comprar os ossos verdadeiros do Elephant Man!). A banda nova-iorquina de trash metal, Anthrax, dedicou as letras de Now It's Dark (de State of Euphoria, Megaforce, 1988) ao arquicriminoso de Blue Velvet, desempenhado por Dennis Hopper, um actor/realizador fortemente ligado à cultura e ideologia pop. O carinho de Lynch pelas emoções do rock e celebridades do rock foi rapidamente amplamente devolvida, e não nos esqueçamos de um projecto que anda a cirandar pela mente de Lynch durante muitos anos, Ronnie Rocket, cuja personagem principal é um anão louco provido de poderes estranhos: tudo isso leva-nos a esperar por uma banda sonora explosiva...
Fazendo parte de duma rica tradição de realizadores/músicos que remonta a Chaplin, Lynch caracteriza o seu próprio radicalismo tornando-se ele próprio o manipulador de largas quantidades de sons concreetos e electrónicos, mais ao menos que os Throbbing Gristle lançavam o seu primeiro trabalho e que, conjuntamente com outas bandas, iria criar o estilo chamado então de industrial: provas repetidas de um ouvido atento e sintonizado no mesmo comprimento de onda dos músicos mais inovadores da altura. Mesmo tendo em conta que ele não chegou a fazer um filme do chamado estilo musical ou uma biografia rock (como o visonário Ken Russell em Tommy ou Oliver Stone em The Doors), Lynch foi secundado apenas por Jim Jarmusch em Stranger Than Paradise e Mystry Train na sua habilidade para capturar o espírito das verdadeiras vibrações da cultura musical dos mais novos. Se foi um pouco mais do que acaso a escolha de Sting para uma parte em Dune ou a presença de John Lurie numa parte de Wild At Heart, foi sobretudo na cobertura estilizada de temas trash e sua estética, comum a muitos dos mais sanguinolentos e transgressivos grupos rock, que Lynch mostrou a sua idealização de membro da grande tribo de rebeldes do Apocalipse: o seu interesse mórbido por tudo oq ue fuigisse à norma ou que fosse bizarro, o culto da obsessão maniáca, a ausência de julgamento moral ou crítica política, o empurrar as barreiras da demência e visionarismo para além de qualquer limite. Sex Love Murder são as escarrapachadas gigantescas letras da campanha publicitária para os seus últimos filmes em cassete, numa paródia aos velhos filmes exploitation B-movies (horror, agitação, ficção científica, road movies, etc.). É precisamente aludidno aos crus pesadelos artificiais do cinema que pôs cá fora, devotado a ultrapassar os limites do bom gosto e senso comum, aos quais as franjas mais radicais da cultura jovem se voltavam cada vez mais como último refúgio de uma atitude anti-establishment, que Lynch fez uma tentaiva extrema de tocar nervos nus da sua audiência, para a forçar a abandonar hábitos enraizados e entrar numa dimensão extraterrestre. Por causa do seu inesperado sucesso, o realizador correu o risco de tornar aceitável e previsível a sua própria verve transgressiva, devido a fechar a porta ao estranho que ele abriu às audiências de massas e para outros realizadores suficientemente originais e corajosos ultrapassar os seus limites. Como o cinema, como qualquer outro Media, tem o poder vampiresco de sugar o conteúdo da expressão artística, para evitar tornar-se uma paródia de si próprio, Lynch foi talvez obrigado a encontrar um novo equilíbrio estilístico. Neste momento, contudo, a indústria de entretenimento está, respitosamente carregando as excentricidades desestabilizadoras de Lynch com a sua colossal máquina promocional, é um pouco como o (mecâncio) robin de peito vermelho que possui uma barata negra no seu nariz das sequências finais de Blue Velvet. "É um mundo estranho, não é?"

TRABALHOS
DAVID LYNCH
FILMES
The Alphabet - curta-metragem (4') 1968 USA
The Grandmother - curta-metragem (34') 1970 USA
Eraserhead - Libra Films (90') 1970 USA
The Elephant Man - Brooksfilm (125') 1980 USA
Dune - De Laurentis / Universal (137') 1984 USA
Blue Velvet - De Laurentis Entertainment (120') 1986 USA
Wild At Heart - Samuel Goldwyn Company (120') 1990 USA
PROJECTOS
Ronnie Rocket
Goddess
One Saliva Bubble
TELEVISÃO
The Cowboy & The Frenchman 1988 FRA
Opium 1989 USA
Clean Up - We Care About NY 1989 USA
Chris Isaak - Wicked Game 1989 USA
Twin Peaks 1990 USA
American Chronicles 1991 USA
VÍDEO
Industrial Symphony N.1 - The Dream Of The Broken Hearted 1990 USA
BANDAS SONORAS
John Morris - The Elephant Man LP 1980
D. Lynch & Alan R. Splet - Eraserhead LP Alternative Tentacles (Virus 30) 1982 GB
Toto - Dune LP Polydor (823770-1) 1984 USA
A. Badalamenti / Autores Vários - Blue Velvet LP/CD Varese Sarabanda (VSD-47227) 1986 USA
Autores Vários - Wild At Heart LP/CD Polydor (845 098-2) 1990 USA
A. Badalamenti - Music From Twin Peaks LP/CD Warner Bros (7599-26316-1) 1990 USA
PRODUÇÕES
Julee Cruise - Floating Into The Night (com A. Badalamenti) LP/CD Warner Bros (925 859-1) 1989 USA



















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