DNMAIS
Sábado, / Junho 2003
DEAD CAN DANCE
Na Terra Dos Sonhos
O lançamento de um ‘best of’ convida a um reencontro com
a música dos Dead Can Dance, projecto de Brendan Perry e Lisa Gerrard que
marcou pela diferença o panorama alternativo dos anos 80 e vincou a identidade
de uma das vertentes do som da 4AD.
Nuno Galopim
É uma música nova ou uma amálgama de músicas antigas? É world music ou pop/rock? As
questões não são novas e, na verdade, recorrentes sempre que os Dead Can Dance
se apresentam na berlinda. Ao reencontrar a sua memória, através de uma
selecção de temas apresentados em Wake, um best of que nos convida a
(re)descobrir a aventura sem tempo nem fronteiras da música deste projecto que
nos revelou Brendan Perry e Lisa Gerrard, estas questões e memórias saudáveis
dos dias de ouro da 4AD regressam à ordem do dia.
Banda de referência do catálogo da editora independente
britânica 4AD, os Dead Can Dance definiram, disco após disco, um percurso entre
o antigo e o contemporâneo, doseando tonalidades e sabores renascentistas,
trovadorescos ou clássicos, juntando aromas mediterrânicos, africanos, do Leste
europeu, do médio oriente, da Ásia. Entre canções de forma mais tradicional e
uma requintada tecelagem de ambientes, a música oferece uma ideia de sonho sem
tempo nem lugar, de apelo suave aos sentidos... E decididamente difícil de
traduzir por palavras.
Começaram por ser um colectivo alargado, na clássica
tradição da banda pop/rock, mas ao segundo álbum era já uma dupla, repartindo
entre si as responsabilidades de composição e interpretação. Brendan Perry
sempre foi a voz herdeira da tradição pop/rock alternativa, entoando formas
concretas. Por seu lado, a Lisa Gerrard desde cedo coube o papel da libertação
dos espartilhos da arquitectura vocal pop/rock, trabalhando ao longo dos anos
um registo de vocalização decididamente pessoal que muito contribuiu para o
definir de uma identidade característica nos Dead Can Dance.
OS PRIMEIROS DIAS. Tanto Lisa Gerrard como Brendan Perry
têm ascendência anglo-irlandesa, remontando o encontro de ambos aos dias em que
viviam em Melbourne (Austrália), em 1980. Brendan revelava então sinais de
contaminação pela revolução punk que mudara a face da música no hemisfério
Norte poucos anos antes. Lisa, por seu lado, educada e crescida no melting pot
cultural de um bairro de emigrantes oriundos de regiões mediterrânicas,
mostrava já uma evidente predisposição para abraçar os sabores «exóticos» das
músicas desses muitos vizinhos... Curiosamente, depois de estabelecida uma
amizade e traçado um desejo de futuro na música, passaram ambos pela cozinha de
um restaurante libanês em Melbourne, no qual lavaram pratos a troco de um sonho
de partida para Londres. Assim foi. Fizeram as malas, e na bagagem traziam já
as primeiras canções. Mal imaginando que os aromas que traziam das vivências em
Melbourne vinham já nas entrelinhas das intenções musicais. Entre essas
primeiras composições encontrava-se já o hoje mítico Frontier, resultado de uma
sessão de trabalaho baseada na improvisação, que agora é incluído no
alinhamento de Wake.
NA CASA DE IVO. Os Dead Can Dance aterram em Londres em
1982, sem horizontes nem projectos concretos, mas donos de uma insistente
vontade em fazer a sua música. Esses primeiros dias não foram fáceis, vivendo
Lisa e Brendan do dinheiro do subsídio de desemprego, habitando um magro apartamento
num bloco na Isles of Dogs, a Leste de Londres e recebendo, uma após outra, as
recusas das mais diversas editoras...
Uma das cassetes foi deixada nos escritórios da
recentemente criada 4AD, uma operação paralela da editora Beggars Banquet,
formada para desenvolver emergente talento, e sob a direcção de Ivo Watts
Russel, um antigo discotecário. A editora, que tinha assegurado a estreia em
álbum dos Bauhaus e que era então «casa» de nomes como os Modern English e Dif
Juz, encontrou na proposta de Perry e Gerrard uma das suas pérolas, definindo
assim, em poucos anos, uma identidade muito peculiar de som e imagem, através
de uma mão cheia de edições dos p´roprios Dead Can Dance, Cocteau Twins e This
Mortal Coil, este último um projecto transversal às bandas da editora, reunindo
a colaboração de membros de vários grupos sob a batuta do «patrão» Ivo Watts
Russel.
Depois de um primeiro álbum menos característico, a
música dos Dead Can Dance mostra então, ao longo da segunda metade da década de
80, um percurso de evolução linguística, atingindo a definição clara de
identidade em Within The Realm Of A Dying Sun, e assinando as obras-primas da
sua discografia nos seguintes The
Serpent’s Egg e Aion. O grupo mostrava já ter-se liberto dos rumos mais
clássicos da tradição da canção pop/rock, optando antes por um labor centrado
nos discorrer de ambientes e cenários. Estas marcas de identidade contribuíram
rapidamente para o definir de uma admiração generalizada entre uma população
jovem de horizontes musicais mais exigentes, vincando assim um culto que
abraçou não só os Dead Can Dance, como também os restantes parceiros da «via
ambiental» da 4AD.
Em poucos anos os Dead Can Dance tornam-se num nome com
exposição global. Quando chegam ao circuito universitário norte-americano em
inícios de 90 trazem na mala os sons de Aion, que fazem das actuações ao vivo
um palco de encontro de fontes diferentes de som, permitindo o encontro dos
sintetizadores com instrumentos de outras geografias e outros tempos. É de
então que data o seu período de aposta mais evidente na estrada, assinando
diversas digressões (uma delas mais tarde registada num DVD agora
disponibilizado entre nós).
Tudo muda na vida dos Dead Can Dance quando, nos anos 90,
Brendan Perry se muda para uma residência na Irlanda rural e Lisa Gerrard se
instala numa casa de montanha na Austrália. O afastamento não impede a
continuação do trabalho, mas determina uma progressiva separação de tendências
e intenções que acabará por determinar o fim do grupo e a inevitável continuação
dos percursos individuais, em carreiras a solo. Lisa Gerrard, depois de
trabalhos nas bandas sonoras de O Informador, Gladiador e Ali, é hoje, mais que
Brendan Perry, dona de nova carreira em ascensão.
DVD
Dead Can
Dance
«Towards
The Within»
4AD/MVM
Concerto: ***
Extras: ***
Originalmente lançado em vídeo por alturas da edição do
álbum ao vivo com o mesmo título, este documentário sobre a digressão de 1993
cruza excertos de uma actuação no Mayfair Theatre em Santa Monica (Los Angeles,
EUA) com momentos de conversa com Brendan Perry e Lisa Gerrard. O alinhamento
live apresenta inúmeros inéditos, tal e qual a versão em disco. O melhor do DVD
está, contudo, nos cinco extras nele incluídos, nada mais nada menos que
videoclips, dois deles (The Host Of Seraphim e Yulunga) extraídos do filme
Baraka (de Ron Fricke), que contou com a contribuição dos Dead Can Dance na
respectiva banda sonora. O histórico Frontier e The Protagonist surgem em clips
rodados por Nigel Grieson, uma das almas da 23 Envelope, companhia de design
que definiu a imagem da 4AD.
Dead Can
Dance
«Wake»
4AD/MVM
****
O segundo best of dos Dead Can Dance propõe, num CD
duplo, um percurso de memórias captadas ao longo da discografia, não esquecendo
o registo ao vivo de 1994. Para os admiradores em busca de novidade, Wake
inclui o mítico Frontier, a primeira maquete dos Dead Can Dance, gravada ainda
em Melbourne.
DISCOGRAFIA
A discografia dos Dead Can Dance está integralmente
reeditada em CD pela 4AD (representada entre nós pela MVM). O ‘best of’ agora
editado pode perfeitamente servir de cartão de visita a quem não conhecer a
obra do grupo, assim como assegurar um bom retrato completo da sua obra para os
mais velhos fiéis de 80 e 90. Wake é, todavia, um primeiro passo num processo
de (re)descoberta que, para obter uma representação mais completa da obra
deverá, depois, passar por discos-chave como Within The Realm Of A Dying Sun,
The Serpent’s Egg e Aion, os melhore desta «safra». O álbum ao vivo de 1994 é
um bom retrato das artes do palco de um grupo que nunca chegou a actuar entre
nós (o DVD Towards The Within acrescenta depois o complemento directo visual).
Para carteiras mais recheadas, a caixa de 2001 oferece uma belíssima visão de
conjunto. Completar, depois, com os discos dos This Mortal Coil e, porque não,
um olhar atento pelo catálogo da 4AD (ver página 14 desta edição).
1984. «Dead Can Dance»
Mais «convencional», inclui o EP Garden Of Arcane
Delights na edição em CD.
1985. «Spleen And Ideal»
Começa aqui o percurso de definição da linguagem muito
peculiar do grupo.
1986.
«With The Realm Of A Dying Sun»
Lisa e Brendan dividem o disco ao meio e cada um canta
num dos lados.
1988. «The Serpent’s Egg»
Este é um dos dois discos obrigatórios do grupo, na
plenitude da sua linguagem.
1990. «Aion»
Dominado por referências renascentistas, outro episódio
fundamental.
1991. «A Passage In Time»
A primeira antologia, pensada para apresentar o grupo nos
EUA e Canadá.
1993. «Into Labyrinth»
O retomar do percurso, em forma, mas sem a mesma surpresa.
1994. «Towards The Within»
Disco ao vivo registado em Los Angeles durante a
digressão de 1993.
1996. «Spiritchaser»
Derradeiro registo de originais, muda azimutes, para o
hemisfério Sul.
2001.
«Dead Can Dance 1981-1998»
Caixa antológica com 3 CDs e o DVD de Towards The
Within».