18.6.17

Kraftwerk - Dossier - "Os Homens-Máquina"


DOSSIER
KRAFTWERK
OS HOMENS-MÁQUINA



17 anos depois de ‘Electric Cafe’, os Kraftwerk regressam com um álbum que não esconde o tempo em que nasce mas que se mantém firme na linguagem clássica do grupo. Não se procurem ‘modernices’ despropositadas nem invenções para enganar a idade. Os mestres sabem que ainda o são.

Nuno Galopim



Como tão bem o poderiam ter dito os Xutos & Pontapés, apesar de diametralmente opostos em termos musicais, longa se tornou a espera por quem, ano após ano, aguardava por novidades do quarteto de Dusseldorf que, como poucos grupos na história da música popular, é fonte de um raríssimo sentido de unanimidade, sendo-lhes atribuída uma espécie de carga matricial de tudo o que a pop herdou de electrónico nos últimos 30 anos...
Em 2000, quando anunciaram o regresso ao activo para então nos darem a conhecer a canção-tema «oficial» que haviam composto para a exposição universal de Berlim – que simplesmente intitularam Expo 2000 – muitos pensaram que talvez estivesse para breve a concretização de um há muito aguardado álbum de originais, o sucessor de Electric Cafe que data já de... 1985!



Mas não foi ainda dessa vez que o grupo de quatro elementos (dos quais se mantém apenas dois membros da formação «clássica», Ralf Hutter e Florian Schneider) abriu as portas do secretismo ao qual há muito envolveu o seu estúdio Kling Klang, que durante parte dos anos 90 serviu o árduo e lento processo de digitalização de todas as fontes de som analógicas usadas na extensa discografia lançada entre os anos 70 e 80. De resto, em The Mix, álbum de remisturas lançado em 1991 e no site oficial do grupo (em www.kraftwerk.com) são visíveis marcas desse trabalho de transposição de velhas fontes de som para os novos suportes digitais. Tudo isto sem «alterar» a alma «tradicional» do som Kraftwerk.
Muitos foram os que, ao longo dos últimos anos, defenderam a tese de que haveria uma suposta ansiedade instalada entre os Kraftwerk, que lhes fazia temer a edição de algo que não acabasse considerado ao nível da excelência da obra anterior. E aqui basta ouvir uma vez o novo e belíssimo Tour De France Soundtracks para entendermos que estamos perante uma obra que não só exala imediatamente as marcas dos seus autores, como sabe estar à altura tanto de reencontros com exigências antigas e com novos desafios, até mesmo novos sons, sem abusar, como em The Mix, dos «excessos» das novas linguagens rítmicas. Aliás, a reduzida presença de «modernices» rítmicas, em favor de um certo classicismo (mesmo com algumas excepções), acaba por ser uma das mais notáveis conquistas deste regresso finalmente concretizado.
Apesar do «receio» ou «não vontade» em apresentar qualquer material novo ao longo dos anos 90, nada impediu o grupo de, mesmo depois dos abandonos de Karl Bartos e Wolfgang Flur, encarar a hipótese de enfrentar plateias, o que aconteceu não muitas, mas suficientes vezes, ora devidamente documentadas (como no vídeo de campanha Stop Sellafield), ora registadas nas memórias dos felizardos que assistiram aos concertos em eventos como, entre outros, o Sónar, em Barcelona...
Há cerca de dois anos, num gesto inesperado que ninguém então ligou ao que acabaria por ser o futuro próximo do grupo, reeditaram em CD o histórico EP de 1983 Tour De France, disco que assinalava um reencontro com uma já antiga paixão pela ideia de viagem e dos percursos (basta evocar Autobahn, isto é, auto-estrada, ou Trans Europe Express, um comboio), adicionando ao som um elemento espantosamente novo e, oops, humano. Tour De France fala do esforço e camaradagem entre ciclistas e baseia a sua estrutura rítmica no arfar de quem pedala. Isto é, a máquina ainda está por lá como elemento protagonista, mas a fonte de som prioritária e mais evidente ao longo de toda a canção acaba por nascer do corpo humano. Contradição face a ditos do passado ou, antes, o definitivo reconhecer do papel uno entre o homem e a máquina, antes mesmo das invasões do mundo por «terríveis» cyborgs.
Tour De France Soundtracks tem tudo para ser um novo e um absolutamente «tradicional» álbum dos Kraftwerk. Como em momentos de Trans Europe Express e, sobretudo, Computer World e Electric Cafe, o álbum dedica parte do seu alinhamento a uma espécie de ciclo que se estende por várias etapas, aí uma evidente dedicatória à Volta a França em Bicicleta. Depois de um prólogo (Prologue) entramos numa sequência de três etapas, que terminam com um contra-relógio (Chrono), com uma continuidade de registos e soluções mecânicas que quase nos fazem sentir a memória conceptual de um Autobahn... Todas estas peças são novas, pontualmente captando um registo do Tour de France original, que se serve em versão revista e melhorada a fechar o álbum, qual epílogo.



Esta nova versão de Tour de France corresponde ao único momento não «inédito» do álbum, já que, ao contrário do que chegou a circular como primeira notícia, este é mesmo um álbum de originais. Além da suite dedicada à centésima Volta a França em Bicicleta (e ao próprio vigésimo aniversário do original Tour de France), o álbum mostra quão fiéis a si mesmos continuam a ser os «mestres» de Dusseldorf. Apesar de serem evidentes novas estruturas e maquinarias rítmicas, as fórmulas melodistas e o modo de usar as palavras seguem velhas e sábias fórmulas «robóticas». Evitando a contaminação do que não é seu, como sábios professores que sabem que certos alunos levaram a outros níveis os seus ensinamentos, mas que não têm o direito de agora as reclamar para si, evitam recorrer a fórmulas downtempo, trip hop, techno ou aos blips and blops tão na moda. Ideias que geneticamente descendem em alguns casos de velhas bíblias escritas nas caves secretas dos estúdios Kling Klang, mas que têm agora vida própria. Tal como vida própria continua a ter a estimulante música dos Kraftwerk. Escutando temas como Vitamin, Aero Dinamik ou Titanium verificamos quão perto estamos de presenciar um presente que sabe ser tão agora como a herança do antes. Já em Elektro Kardiogramm e na sua continuação, em Regeneration, reencontramos um sentido de melodismo que evoca os dias pop de Computer World, embora seja evidente que tecnologicamente o discurso verbal e musical seja do século XXI. As «máquinas», afinal, sabem bem onde e quando estão neste momento de regresso...
Escutado por diversas vezes, e ultrapassando o efeito viciante que o disco desencadeia sobre qualquer grande admirador do grupo sem receios de neles encontrar hoje uma banda 17 anos mais velha que a que fez Electric Cafe mas que formalmente não se afastou muito do seu rigor linguístico, Tour de France Soundtracks revela-se um disco que facilmente podemos colocar entre os melódica e espiritualmente mais tranquilos do quarteto. Não é a resposta nunca dada ao álbum Techno Pop, que incidentes passados impediram que alguma vez visse a luz do dia (nesse sentido, o tom espartano da contenção melodista de Electric Cafe talvez seja até o que de mais próximo dessa ideia perdida hoje podemos evocar).
Figuras de importância matricial na construção de uma linguagem que explica muita da música dos últimos 30 anos, com a coragem de evitar o chinfrim visual e eléctrico tão em voga nos inícios de 70, os mestres estão de volta. Em primeiro lugar merecem respeito. E, em segundo, que se lhes escute um álbum sóbrio e coerente, linguisticamente claro, esteticamente firme no desejo de não mudar o que «não tem» de ser mudado. Regras são regras. E se há grupo que as crie e siga à risca, esse grupo são os Kraftwerk!



  
A Paixão Pelo Ciclismo

Fruto de um interesse do grupo pelo ciclismo, ‘Tour de France’ surgiu em 1983. Um acidente de Hütter impediu que o projecto fosse, depois, mais longe.

A enorme popularidade angariada pelo grupo desde os sucessos de finais de 70 fez dos Kraftwerk um motivo de desejo pop com valor acrescentado na alvorada de 80.Contudo, contra o excesso de curiosidade, a resposta natural do grupo acontecia pelo silêncio, pela sucessiva recusa em dar entrevistas, pela cada vez mais discreta exposição. A dada altura há quase um regime de black out imposto pelos próprios a si mesmos, num desejo de paz procurando no «mui» secreto refúgio dos estúdios Kling Klang. Um silêncio coincidente com a chegada ao número um em Inglaterra de uma reedição (com capa à Computer World) do já clássico The Model... O silêncio é rompido apenas em 1983, com a edição de um novo single, Tour de France, e o anúncio de um álbum que supostamente se seguiria, que chegou mesmo a ter número de série mas acabou por nunca ser nem gravado nem editado...
Tour de France reflectia já um crescente interesse do grupo pelo ciclismo, desporto que se tornará entretanto actividade regular entre os elementos do colectivo, sobretudo depois de terminada a cansativa digressão que se seguiu a Computer World.
Chegados a uma meia idade na qual muito desperta um renovado interesse pela preservação do corpo, os Kraftwerk encontraram no ciclismo um desporto, sobre o qual Ral Hütter já nutria há muito um claro interesse.
Em pouco tempo a discussão sobre esta nova fonte de interesse passou da racionalização à acção, com encontros regulares num dos clubes velocipédicos da cidade. Não só trabalhavam o corpo como se mantinham juntos e, ao ar livre, asseguravam uma fuga pontual à relativa claustrofobia dos estúdios onde só eles e os mais próximos amigos tinham ordem para entrar. Ao mesmo tempo a actividade desportiva em conjunto permitiu-lhes criar um uniforme negro (da cor da noite, isto é, das suas horas normais de trabalho em estúdio) que todos usavam por igual. Enfim, a filosofia «kraftwerkiana» em acção velocipédica!
Do interesse à concepção de uma canção que o reflectisse o passo foi rápido e natural. Depois de temáticas de alta tecnologia nos anos 70, e de um olhar sobre os computadores na alvorada de 80, era o corpo humano, em diálogo com a máquina, a fonte central de reflexão a quatro. Mais ainda, depois dos motores dos carros e comboios, depois da radioactividade e dos mecanismos das máquinas de calcular, a ideia era a de celebrar os músculos humanos, o esforço físico. Tudo isto corresponde ainda a um momento histórico de escalada de um certo discurso ecologista, que leva os próprios membros dos Kraftwerk a trocar os seus belos Mercedes por carrinhos mais económicos.
A canção, em 1983, foi pensada segundo o som da respiração e do pedalar, sugerindo em pleno as intenções conceptualizadas.
Infelizmente, um gravíssimo acidente de bicicleta de Hütter não só atrasou o single como comprometeu um álbum de conceito de que certamente esta canção seria uma peça central. Justiça feita agora, 20 anos depois.

DISCOGRAFIA

Para uma discografia representativa, álbuns como ‘Autobahn’, ‘Radio-Activity’, ‘trans Europe Express’, ‘The Man Machine’ e ‘Computer World’ serão os essenciais. Os restantes completam apenas uma discografia fundamental.


1969. ‘Tone Foat’
Originalmente assinado como Organisation, é um espaço de improvisação.
1970. ‘Kraftwerk’
A «verdadeira» estreia demonstra ainda um predomínio do ensaísmo.
1971. ‘Kraftwerk 2’
Apesar da continuidade, em Kling Klang surgem saudáveis pistas novas
1973. ‘Ralf & Florian’
Momento de quase ruptura com o passado e desvio para o melodismo
1974. ‘Autobahn’
O primeiro clássico, com uma aproximação à ideia de canção pop!
1975. ‘Radio-Activity’
Novo registo conceptual, insiste na procura da linguagem da canção pop.
1977. ‘Trans Europe Express’
De grande importância histórica futura, definiu uma linguagem europeia.
1978. ‘The Man Machine’
A obra-prima da pop electrónica é a base da música dos últimos 25 anos.
1981. ‘Computer World’
Novo depoimento «conceptual», centra-se na relação com o computador.
1986. ‘Electric Cafe’
Em vez do «abortado» Techno Pop, um disco minimalista e experimental.
1991. ‘The Mix’
Uma revisão da matéria dada à luz das emergentes corrente rítmicas.
1998. ‘The Best Of Kraftwerk’
Editado apenas no Japão, um simples apanhado de clássicos para recordar.
1998. ‘Concert Classics’
Um dos dois discos live do grupo, esta ainda antes da chegada de Bartos.
1999. ‘Autobahn Tour’
Gravado na mesma digressão, um documento da era anterior à da «fama».
2000. ‘Expo 2000’
A canção oficial da Expo de Hannover surgiu em vários EPs, com remisturas.

PARA LÁ DA DISCOGRAFIA
LEITURAS E CONSULTAS

LIVROS




Bussy, Pascal: ‘Kraft-werk: Man Machine And Music’
S.A.F. 1993

Barr, Tim: ‘Kraftwerk – From Düsseldorf To The Future (With Love)’, Telbury Press, 1998.

Flür, Wolfgang: ‘Kraft-werk: I Was A Robot’, Sanctuary 2000



HOMENAGENS E TRIBUTOS



Uma banda com o peso histórico e matricial de uns Kraftwerk só podia gerar uma série de compilações de tributo. O curioso é que, além dos muitos tributos que existem no mercado, dois discos de autores concretos lhes dedicam atenção protagonista. Um deles é ‘Possessed’, que o Balanescu Quartet gravou em 1992, álbum sublime e referencial que assume uma abordagem por um quarteto de cordas à música destes quatro alemães. Igualmente ‘estranha’ e diferente foi a homenagem de Senor Coconut em ‘El Baile Alemán’, transformando as canções dos Kraftwerk em temas conduzidos por ritmos latino-americanos. Além destes dois discos temáticos abundam no mercado os álbuns-tributo aos Kraftwerk, do já histórico ‘Trans-Slovenia Express’ com bandas balcânicas e todo um extenso rol de propostas oriundas dos mais diversos cantos de actividade musical electrónica. Afinal, mestres são mestres e sabem ter descendência!

SITE OFICIAL

Vale a pena espreitar, com tempo, o site oficial dos Kraftwerk, em www.kraftwerk.com. Seguindo uma lógica de interactividade, o site convida à «visita» a várias canções que fizeram história, muitas delas permitindo ao visitante a hipótese de criar as suas versões, quebrar esquemas rígidos, interferir. Podemos, por exemplo, alterar as sequências de efeitos em ‘Boing Boom Tchak’, somar melodias aleatórias em ‘Pocket Calculator’ ou fazer dançar os quatro robôs em ‘The Robots’... O grafismo que acompanha cada canção respeita capas e motivos dos originais.
N.G.







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