DOSSIER
KRAFTWERK
OS HOMENS-MÁQUINA
17 anos depois de ‘Electric Cafe’, os Kraftwerk regressam
com um álbum que não esconde o tempo em que nasce mas que se mantém firme na
linguagem clássica do grupo. Não se procurem ‘modernices’ despropositadas nem
invenções para enganar a idade. Os mestres sabem que ainda o são.
Nuno Galopim
Como tão bem o poderiam ter dito os Xutos & Pontapés,
apesar de diametralmente opostos em termos musicais, longa se tornou a espera
por quem, ano após ano, aguardava por novidades do quarteto de Dusseldorf que,
como poucos grupos na história da música popular, é fonte de um raríssimo
sentido de unanimidade, sendo-lhes atribuída uma espécie de carga matricial de
tudo o que a pop herdou de electrónico nos últimos 30 anos...
Em 2000, quando anunciaram o regresso ao activo para
então nos darem a conhecer a canção-tema «oficial» que haviam composto para a
exposição universal de Berlim – que simplesmente intitularam Expo 2000 – muitos
pensaram que talvez estivesse para breve a concretização de um há muito
aguardado álbum de originais, o sucessor de Electric Cafe que data já de...
1985!
Mas não foi ainda dessa vez que o grupo de quatro
elementos (dos quais se mantém apenas dois membros da formação «clássica», Ralf
Hutter e Florian Schneider) abriu as portas do secretismo ao qual há muito
envolveu o seu estúdio Kling Klang, que durante parte dos anos 90 serviu o
árduo e lento processo de digitalização de todas as fontes de som analógicas
usadas na extensa discografia lançada entre os anos 70 e 80. De resto, em The
Mix, álbum de remisturas lançado em 1991 e no site oficial do grupo (em www.kraftwerk.com) são visíveis marcas
desse trabalho de transposição de velhas fontes de som para os novos suportes
digitais. Tudo isto sem «alterar» a alma «tradicional» do som Kraftwerk.
Muitos foram os que, ao longo dos últimos anos,
defenderam a tese de que haveria uma suposta ansiedade instalada entre os
Kraftwerk, que lhes fazia temer a edição de algo que não acabasse considerado
ao nível da excelência da obra anterior. E aqui basta ouvir uma vez o novo e
belíssimo Tour De France Soundtracks para entendermos que estamos perante uma
obra que não só exala imediatamente as marcas dos seus autores, como sabe estar
à altura tanto de reencontros com exigências antigas e com novos desafios, até
mesmo novos sons, sem abusar, como em The Mix, dos «excessos» das novas
linguagens rítmicas. Aliás, a reduzida presença de «modernices» rítmicas, em
favor de um certo classicismo (mesmo com algumas excepções), acaba por ser uma
das mais notáveis conquistas deste regresso finalmente concretizado.
Apesar do «receio» ou «não vontade» em apresentar
qualquer material novo ao longo dos anos 90, nada impediu o grupo de, mesmo
depois dos abandonos de Karl Bartos e Wolfgang Flur, encarar a hipótese de
enfrentar plateias, o que aconteceu não muitas, mas suficientes vezes, ora
devidamente documentadas (como no vídeo de campanha Stop Sellafield), ora
registadas nas memórias dos felizardos que assistiram aos concertos em eventos
como, entre outros, o Sónar, em Barcelona...
Há cerca de dois anos, num gesto inesperado que ninguém
então ligou ao que acabaria por ser o futuro próximo do grupo, reeditaram em CD
o histórico EP de 1983 Tour De France, disco que assinalava um reencontro com
uma já antiga paixão pela ideia de viagem e dos percursos (basta evocar
Autobahn, isto é, auto-estrada, ou Trans Europe Express, um comboio),
adicionando ao som um elemento espantosamente novo e, oops, humano. Tour De
France fala do esforço e camaradagem entre ciclistas e baseia a sua estrutura
rítmica no arfar de quem pedala. Isto é, a máquina ainda está por lá como
elemento protagonista, mas a fonte de som prioritária e mais evidente ao longo
de toda a canção acaba por nascer do corpo humano. Contradição face a ditos do
passado ou, antes, o definitivo reconhecer do papel uno entre o homem e a
máquina, antes mesmo das invasões do mundo por «terríveis» cyborgs.
Tour De France Soundtracks tem tudo para ser um novo e um
absolutamente «tradicional» álbum dos Kraftwerk. Como em momentos de Trans
Europe Express e, sobretudo, Computer World e Electric Cafe, o álbum dedica
parte do seu alinhamento a uma espécie de ciclo que se estende por várias
etapas, aí uma evidente dedicatória à Volta a França em Bicicleta. Depois de um
prólogo (Prologue) entramos numa sequência de três etapas, que terminam com um
contra-relógio (Chrono), com uma continuidade de registos e soluções mecânicas
que quase nos fazem sentir a memória conceptual de um Autobahn... Todas estas
peças são novas, pontualmente captando um registo do Tour de France original,
que se serve em versão revista e melhorada a fechar o álbum, qual epílogo.
Esta nova versão de Tour de France corresponde ao único
momento não «inédito» do álbum, já que, ao contrário do que chegou a circular
como primeira notícia, este é mesmo um álbum de originais. Além da suite
dedicada à centésima Volta a França em Bicicleta (e ao próprio vigésimo
aniversário do original Tour de France), o álbum mostra quão fiéis a si mesmos
continuam a ser os «mestres» de Dusseldorf. Apesar de serem evidentes novas
estruturas e maquinarias rítmicas, as fórmulas melodistas e o modo de usar as palavras
seguem velhas e sábias fórmulas «robóticas». Evitando a contaminação do que não
é seu, como sábios professores que sabem que certos alunos levaram a outros
níveis os seus ensinamentos, mas que não têm o direito de agora as reclamar
para si, evitam recorrer a fórmulas downtempo, trip hop, techno ou aos blips
and blops tão na moda. Ideias que geneticamente descendem em alguns casos de
velhas bíblias escritas nas caves secretas dos estúdios Kling Klang, mas que
têm agora vida própria. Tal como vida própria continua a ter a estimulante
música dos Kraftwerk. Escutando temas como Vitamin, Aero Dinamik ou Titanium
verificamos quão perto estamos de presenciar um presente que sabe ser tão agora
como a herança do antes. Já em Elektro Kardiogramm e na sua continuação, em
Regeneration, reencontramos um sentido de melodismo que evoca os dias pop de
Computer World, embora seja evidente que tecnologicamente o discurso verbal e
musical seja do século XXI. As «máquinas», afinal, sabem bem onde e quando
estão neste momento de regresso...
Escutado por diversas vezes, e ultrapassando o efeito
viciante que o disco desencadeia sobre qualquer grande admirador do grupo sem
receios de neles encontrar hoje uma banda 17 anos mais velha que a que fez
Electric Cafe mas que formalmente não se afastou muito do seu rigor
linguístico, Tour de France Soundtracks revela-se um disco que facilmente
podemos colocar entre os melódica e espiritualmente mais tranquilos do
quarteto. Não é a resposta nunca dada ao álbum Techno Pop, que incidentes
passados impediram que alguma vez visse a luz do dia (nesse sentido, o tom
espartano da contenção melodista de Electric Cafe talvez seja até o que de mais
próximo dessa ideia perdida hoje podemos evocar).
Figuras de importância matricial na construção de uma
linguagem que explica muita da música dos últimos 30 anos, com a coragem de
evitar o chinfrim visual e eléctrico tão em voga nos inícios de 70, os mestres
estão de volta. Em primeiro lugar merecem respeito. E, em segundo, que se lhes
escute um álbum sóbrio e coerente, linguisticamente claro, esteticamente firme
no desejo de não mudar o que «não tem» de ser mudado. Regras são regras. E se
há grupo que as crie e siga à risca, esse grupo são os Kraftwerk!
A Paixão Pelo Ciclismo
Fruto de um interesse do grupo pelo ciclismo, ‘Tour de
France’ surgiu em 1983. Um acidente de Hütter impediu que o projecto fosse,
depois, mais longe.
A enorme popularidade angariada pelo grupo desde os
sucessos de finais de 70 fez dos Kraftwerk um motivo de desejo pop com valor acrescentado
na alvorada de 80.Contudo, contra o excesso de curiosidade, a resposta natural
do grupo acontecia pelo silêncio, pela sucessiva recusa em dar entrevistas,
pela cada vez mais discreta exposição. A dada altura há quase um regime de
black out imposto pelos próprios a si mesmos, num desejo de paz procurando no
«mui» secreto refúgio dos estúdios Kling Klang. Um silêncio coincidente com a
chegada ao número um em Inglaterra de uma reedição (com capa à Computer World)
do já clássico The Model... O silêncio é rompido apenas em 1983, com a edição
de um novo single, Tour de France, e o anúncio de um álbum que supostamente se
seguiria, que chegou mesmo a ter número de série mas acabou por nunca ser nem
gravado nem editado...
Tour de France reflectia já um crescente interesse do
grupo pelo ciclismo, desporto que se tornará entretanto actividade regular
entre os elementos do colectivo, sobretudo depois de terminada a cansativa
digressão que se seguiu a Computer World.
Chegados a uma meia idade na qual muito desperta um
renovado interesse pela preservação do corpo, os Kraftwerk encontraram no
ciclismo um desporto, sobre o qual Ral Hütter já nutria há muito um claro
interesse.
Em pouco tempo a discussão sobre esta nova fonte de
interesse passou da racionalização à acção, com encontros regulares num dos
clubes velocipédicos da cidade. Não só trabalhavam o corpo como se mantinham
juntos e, ao ar livre, asseguravam uma fuga pontual à relativa claustrofobia
dos estúdios onde só eles e os mais próximos amigos tinham ordem para entrar.
Ao mesmo tempo a actividade desportiva em conjunto permitiu-lhes criar um
uniforme negro (da cor da noite, isto é, das suas horas normais de trabalho em
estúdio) que todos usavam por igual. Enfim, a filosofia «kraftwerkiana» em
acção velocipédica!
Do interesse à concepção de uma canção que o reflectisse
o passo foi rápido e natural. Depois de temáticas de alta tecnologia nos anos
70, e de um olhar sobre os computadores na alvorada de 80, era o corpo humano,
em diálogo com a máquina, a fonte central de reflexão a quatro. Mais ainda,
depois dos motores dos carros e comboios, depois da radioactividade e dos
mecanismos das máquinas de calcular, a ideia era a de celebrar os músculos
humanos, o esforço físico. Tudo isto corresponde ainda a um momento histórico
de escalada de um certo discurso ecologista, que leva os próprios membros dos
Kraftwerk a trocar os seus belos Mercedes por carrinhos mais económicos.
A canção, em 1983, foi pensada segundo o som da
respiração e do pedalar, sugerindo em pleno as intenções conceptualizadas.
Infelizmente, um gravíssimo acidente de bicicleta de
Hütter não só atrasou o single como comprometeu um álbum de conceito de que
certamente esta canção seria uma peça central. Justiça feita agora, 20 anos
depois.
DISCOGRAFIA
Para uma discografia representativa, álbuns como
‘Autobahn’, ‘Radio-Activity’, ‘trans Europe Express’, ‘The Man Machine’ e
‘Computer World’ serão os essenciais. Os restantes completam apenas uma
discografia fundamental.
1969. ‘Tone Foat’
Originalmente assinado como Organisation, é um espaço de
improvisação.
1970. ‘Kraftwerk’
A «verdadeira» estreia demonstra ainda um predomínio do
ensaísmo.
1971. ‘Kraftwerk 2’
Apesar da continuidade, em Kling Klang surgem saudáveis
pistas novas
1973. ‘Ralf & Florian’
Momento de quase ruptura com o passado e desvio para o
melodismo
1974. ‘Autobahn’
O primeiro clássico, com uma aproximação à ideia de
canção pop!
1975. ‘Radio-Activity’
Novo registo conceptual, insiste na procura da linguagem
da canção pop.
1977. ‘Trans Europe Express’
De grande importância histórica futura, definiu uma
linguagem europeia.
1978. ‘The Man Machine’
A obra-prima da pop electrónica é a base da música dos
últimos 25 anos.
1981. ‘Computer World’
Novo depoimento «conceptual», centra-se na relação com o
computador.
1986. ‘Electric Cafe’
Em vez do «abortado» Techno Pop, um disco minimalista e
experimental.
1991. ‘The Mix’
Uma revisão da matéria dada à luz das emergentes corrente
rítmicas.
1998. ‘The Best Of Kraftwerk’
Editado apenas no Japão, um simples apanhado de clássicos
para recordar.
1998. ‘Concert Classics’
Um dos dois discos live do grupo, esta ainda antes da
chegada de Bartos.
1999. ‘Autobahn Tour’
Gravado na mesma digressão, um documento da era anterior
à da «fama».
2000. ‘Expo 2000’
A canção oficial da Expo de Hannover surgiu em vários
EPs, com remisturas.
PARA LÁ DA DISCOGRAFIA
LEITURAS E CONSULTAS
LIVROS
Bussy,
Pascal: ‘Kraft-werk: Man Machine And Music’
S.A.F.
1993
Barr,
Tim: ‘Kraftwerk – From Düsseldorf To The Future (With Love)’, Telbury Press,
1998.
Flür,
Wolfgang: ‘Kraft-werk: I Was A Robot’, Sanctuary 2000
HOMENAGENS E TRIBUTOS
Uma banda com o peso histórico e matricial de uns
Kraftwerk só podia gerar uma série de compilações de tributo. O curioso é que,
além dos muitos tributos que existem no mercado, dois discos de autores
concretos lhes dedicam atenção protagonista. Um deles é ‘Possessed’, que o
Balanescu Quartet gravou em 1992, álbum sublime e referencial que assume uma
abordagem por um quarteto de cordas à música destes quatro alemães. Igualmente
‘estranha’ e diferente foi a homenagem de Senor Coconut em ‘El Baile Alemán’,
transformando as canções dos Kraftwerk em temas conduzidos por ritmos
latino-americanos. Além destes dois discos temáticos abundam no mercado os
álbuns-tributo aos Kraftwerk, do já histórico ‘Trans-Slovenia Express’ com
bandas balcânicas e todo um extenso rol de propostas oriundas dos mais diversos
cantos de actividade musical electrónica. Afinal, mestres são mestres e sabem
ter descendência!
SITE OFICIAL
Vale a pena espreitar, com tempo, o site oficial dos
Kraftwerk, em www.kraftwerk.com.
Seguindo uma lógica de interactividade, o site convida à «visita» a várias
canções que fizeram história, muitas delas permitindo ao visitante a hipótese
de criar as suas versões, quebrar esquemas rígidos, interferir. Podemos, por
exemplo, alterar as sequências de efeitos em ‘Boing Boom Tchak’, somar melodias
aleatórias em ‘Pocket Calculator’ ou fazer dançar os quatro robôs em ‘The
Robots’... O grafismo que acompanha cada canção respeita capas e motivos dos
originais.
N.G.
Sem comentários:
Enviar um comentário