14.2.12

Livros sobre música que vale a pena ler (e que eu tenho, lol) - Cromo #12: Luís Pinheiro de Almeida e João Pinheiro de Almeida (Direcção) - "Enciclopédia da Música Ligeira Portuguesa"


autor: Luís Pinheiro de Almeida e João Pinheiro de Almeida (Direcção)
título: Enciclopédia da Música Ligeira Portuguesa
editora: Círculo de Leitores
nº de páginas: 412
isbn: 972-42-1660-8
data: Julho de 1998


sinopse:
Também por meio de canções pode ser contada a história de povos e países. Se, nesta matéria, a França é uma regra e um exemplo, por ser pátria de cantores e autores que fizeram a crónica viva do seu tempo, Portugal não é propriamente uma excepção.
Com efeito, é possível reconstituir os momentos angulares do percurso colectivo dete país de canções que, em fases históricas bem determinadas, operaram as sínteses fundamentais, registando e transmitindo a alegria, a tristeza, o sonho, o medo ou a vocação da quimera.
Desde os fados de inspiração anarco-sindicalista do princípio de século até ao canto de intervenção que precedeu e se sucedeu à Revolução do 25 de Abril, passando pela música ligeira de inspiração italiana, francesa ou latino-americana que marcou as décadas de 40, 50 e 60, longo, diversificado e complexo foi o caminho percorrido, ao longo destas quase dez décadas, pela música portuguesa não erudita. Muitas canções fizeram a época, não só por terem correspondido ao gosto que nelas foi predominante, mas também porque contribuíram para se deixar feito o registo da nossa História.
Com a sua breve duração, que raramente excede os três minutos, a canção, em Portugal como no mundo, é, talvez, o principal suporte da cultura de massas. Após a II Guerra Mundial, e mais acentuadamente a partir de meados dos anos 60, a utilização generalizada dos giradiscos permitiu a largas camadas das populações urbanas, sobretudo as mais jovens, terem acesso a formas de expressão musical ligeira que eram, ao mesmo tempo, emblema e símbolo de formas colectivas de ser e de estar.
Portugal, obviamente, não escapou a esta regra, mesmo considerando o facto de, durante quase cinco décadas, ter vivido em regime de ditadura. A canção, no nosso país, fez política mesmo quando afirmou a pés juntos a sua liminar recusa de qualquer forma de intervenção cívica. A canção fez história, mesmo quando se recusou a aceitar que a tenha feito. A canção transformou-se em suporte sensível da nossa memória e do nosso imaginário, mesmo quando, reivindicando a humildade e a modéstia da sua dimensão cultural, quis ser somente efémera, fugaz e condenada ao esquecimento. A canção, afinal, tomou sempre partido, mesmo quando, por omissão ou dissimulação, fingiu não o tomar, porque, como bem assinala a etnomusicóloga Victoria Sau, «historicamente, as canções não são só documentos vivos, sinceros e palpitantes, de factos ocorridos, mas também reflectem os estados de boa ou má vizinhança entre as pessoas ou as regiões». Ou seja, a canção toma sempre partido, mesmo quando aqueles que a criam e difundem supõem ou defendem o contrário.
Se canções como «Angola é Nossa» ou «Grândola Vila Morena», em campos políticos e ideológicos diametralmente opostos, constituem momentos referenciais da intervenção política através da música, muitas outras houve e há que, sem nunca terem incorporado nos seus textos qualquer expressa referência política, contribuíram para perpetuar estados de espírito e situações sociais que uns pretendiam ver mudados e outros não.
Situado no extremo ocidental de um continente a transbordar de História, de cultura e de memória, Portugal ficou imune às influências estéticas e de gosto provenientes de outros países. Fomos claramente influenciados pela canção romântica italiana, pela música de opereta francesa e alemã, pelo reportório sentimental de países como a Venezuela, o Brasil ou o Uruguai. Muitos cantores e autores portugueses interpretaram e criaram canções seguindo, mais ou menos assumidamente, figurinos estrangeiros. A verdadeira canção portuguesa foi apenas a matriz tradicional, a canção etnográfica, o canto nascido da memória da terra, que através das exemplares recolhas de Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça, tanto veio a influenciar a prática musical de cantores e de grupos surgidos após o 25 de Abril, confirmando o que diz o musicólogo espanhol Felipe Pedrell, quando defende que «todas as canções são inspirações sucessivas de uma inspiração primeira, que foi a canção natural».
Mas nem sempre só estas influências são dignas de registo. Também a canção de texto francesa marcou profundamente o trabalho criador de cantores-autores que se afirmaram na segunda metade da década de 60, trilhando o caminho aberto por José Afonso. Do mesmo modo, a música pop anglo-americana daquela década foi determinante para trabalho de grupos que, em Portugal, cantavam à maneira dos Beatles, dos Searchers, dos Beach Boys, dos Rolling Stones ou dos Credence Clearwater Revival. Já em meados da década de 80, o pop-rock da mesma origem influenciou todo o movimento do chamado rock português.
Imunes não ficámos também à influência da obra de grandes cantores-autores brasileiros, de Tom Jobim a Chico Buarque de Holanda, passando por Caetano Veloso ou Ivan Lins. De igual modo nos influenciou a canção latino-americana de texto de um Daniel Viglietti ou de um Atahualpa Yupanki, ou a música da Trova Nueva, de Cuba.
Quer isto dizer que nunca vivemos isolados, mesmo quando eram parcos os sons e as notícias que nos chegavam do mundo à nossa volta. Também, em matéria de música, sempre fomos de algum modo cosmopolitas, seguindo modas, copiando figurinos, imitando modelos, à semelhança do que aconteceu na literatura, no cinema, no teatro ou nas artes plásticas. Desse modo, ganhámos muito mais do que perdemos. Enriquecemo-nos em vez de nos despojarmos. E, mesmo quando aparentemente comprometemos a nossa identidade, ganhámos em visão do mundo e em maturidade.
Português mesmo ficou apenas o fado, forma de folclore urbano que, à semelhança do tango argentino, elegeu como temas centrais o ciúme, a tristeza, a nostalgia, o desamparo, a noite, a traição, a pobreza e a viagem, ou não fossem ambos produtos culturais de zonas portuárias onde os sentimentos-limite e as grandes inquietações ancestrais atormentam quem chega e quem parte, abrindo-se aos ventos do mundo. Ao fado, como ao tango, poderá aplicar-se aquilo que Lorde Byron um dia escreveu sobre a felicidade e a memória: «A memória de uma felicidade já não é felicidade; a memória de uma dor ainda é uma dor.»
A enciclopédia que agora se publica vai permitir fazer um balanço, ainda que não exaustivo, do que foram estas décadas ditas por música, do que tem sido este povo traduzido em canções, do que tem sido a nossa história transformada em letra e música.
Se se perguntar a alguém qual a forma de expressão artística que, de forma mais imediata, associa a um momento crucial da sua vida, é quase certo que escolherá a canção. Talvez por ser mais simples, mais impressiva, mais emotiva, mais susceptível de abrir sulcos na areia fina da memória. Os filmes sobre a Guerra do Vietname são sempre pontuados pelas canções da época, sejam elas dos Bufallo Springfields ou dos Jefferson Airplane. Também as de José Afonso, dos Sheiks ou mesmo de António Calvário ou de Madalena Iglésias ficariam indelevelmente ligadas aos filmas que, em Portugal, fossem capazes de evocar as guerras do Ultramar.
Sem discriminações, este ambicioso e vasto trabalho de equipa vai constituir-se como um instrumento de trabalho para sociólogos, musicólogos, historiadores da cultura ou mesmo investigadores literários. Com as suas 400 entradas, vai ajudar-nos a ganhar distância crítica relativamente a uma forma de expressão musical que se assume como o registo ao mesmo tempo transitório e perene do que tem sido a História deste país, neste século, contada através do som dos fadistas, dos cantores de intervenção, dos guitarristas, dos cantores e músicos rock, dos cantores românticos, dos cantores de feira, dos cantores de emigração e de tantos outros que fizeram da canção a sua forma singular de estar no mundo, independentemente de critérios valorativos de natureza estética, ideológica ou cultural.
Amália Rodrigues, José Afonso, Hermínia Silva, Alfredo Marceneiro, Carlos Paredes, Rui Veloso, Pedro Abrunhosa, Carlos Ramos, Estevâo Amarante ou Tony de Matos são hoje nomes referenciais de um longo percurso colectivo que, à margem do espartilho dos preconceitos, contribui para que compreendamos com maior clareza quem fomos, o que quisemos, o que sonhámos, o que sofremos e o que construímos ou destruímos ao longo de quase dez décadas de História contemporânea. Esta Enciclopédia da Música Ligeira Portuguesa será, seguramente, sob a exemplar coordenação de Luís Pinheiro de Almeida, crítico sério estudioso do fenómeno musical ligeiro e popular, um livro de referência que a cada passo se abrirá ante os nossos olhos, carregados de som e de sentido, para melhor nos apercebermos de que Portugal se disse também a cantar

José Jorge Letria
Cascais, Julho de 1995




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