Diário de Notícias
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30 de Março de 2002
Hippies Digitais
Apesar das revelações dos Primal Scream em 1990, a ideia
de uma música hipnótica baseada em linguagens electrónicas não seguiu, depois,
as linhas mestras das correntes pelas quais a música avançou ao longo da
década, e foram pontuais os casos onde a fonte de inspiração para artes
digitais se localizou na memória das escolas «alucinogénicas» de finais de 60.
Um interessante caso, seguido com atenção há já alguns
anos, nasceu na Escócia, berço da dupla Marcus Eoin / Michael Sandison.
Estrearam-se há seis anos na pequena independente Skam, que então editou um
máxi-single de oito temas, correspondendo este a uma maquete (em vinil) que o
duo havia enviado a diversas editoras. Seguiu-se o EP «Hi Scores», denotando
sinais de busca entre referências electro, Hip Hop e noções de paisagismo, que
o álbum de estreia «Music Has The Right To Children» revela com sinais de
maioridade, já em 1998, num momento em que as marcas de uma postura de
contemplação pelo passado (em detrimento da tradicional postura de antecipação
que coordena muitas aventuras nestas áreas) se mostrava já evidente.
Com excepção para um EP («In A Beautiful Place Out In The
Country», de 2000), os Boards Of Canada mantiveram-se em silêncio durante
quatro anos e regressam, agora, com «Geogaddi», um segundo álbum que denuncia o
assumir da herança do psicadelismo, incorporando-a na carne da música e não
apenas enquanto uma máscara que se usa para teatro de imagem.
A capa indicia um primeiro sinal claro de um mergulho
iminente num espaço de convite à libertação do corpo (à boa maneira das
sugestões do psicadelismo de uns Pink Floyd ou Beatles de 1967). Um mundo de
visões caleidoscópicas percorre, depois, todo o restante «inlay», e conduz-nos,
pela mão, ao som que o disco depois encerra.
E aí entramos, aos poucos, num espaço que começa por nos
traçar linhas sólidas, sugere tons e melodias e, aos poucos, transporta ao
núcleo dos acontecimentos, como quem mergulha inevitavelmente num abismo que
quase assusta mas depois, inevitavelmente, atrai... Há uma interessante lógica
de construção «quase-narrativa» nesse processo de sedução induzida que nos
conduz depois ao longo de todo o disco e nos faz segui-lo de fio a pavio, quase
sugerindo tratar-se de uma peça conceptual. Será?
Alternam os momentos de construção de núcleos que quase
sugerem a estrutura de canção (como «Julie And Candy», «1969» ou o belíssimo
«Dawn Chorus»). Com pontes de passagem que asseguram o fluir constante da
progressão da audição. O percurso acaba, depois, por revelar uma série de
apropriações de ferramentas formais características do psicadelismo de 60,
entre elas notas de sitar, vozes de tez indiana, linhas difusas em espiral,
vozes rebobinadas, ruídos brancos... Vozes de um mundo real (ou talvez de
sonho) cruzam pontualmente, ao longe, as texturas que evoluem no espaço, não
assumindo nunca um protagonismo de linha da frente como sucede na canção.
No final da «viagem», uma espécie de «trip» hippie
digital, instala-se uma sensação de paz. Uma paz que não decorre da mesma
experiência do sentido de liberdade que transborda de discos recentes de nomes
como os Manitoba, Fridge ou For Tet, onde as formas são, apesar de mais
nítidas, menos rígidas... Condicionando (e condiconado por) um percurso muito
concreto, «Geogaddi» não deixa de representar mais um saboroso convite a um
espaço de fuga. Na era da formatação, um disco como este segundo álbum dos
Boards Of Canada pode ter efeitos quase terapêuticos. Não inventa a pólvora,
não rompe visões, mas recupera, de forma curiosa, marcas de um passado rico em
criatividade. Tão rico que, com novas ferramentas, ainda sugere pistas a
desbravar.
N.G.
BOARDS
OF CANADA «Geogaddi»
Warp /
Zona Música **** (4 estrelas)
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