DN - Diário de Notícias
16 de Fevereiro de 2002
Discos pe(r)didos
Nascida de uma amizade entre Miguel Esteves Cardoso e Pedro
Ayres de Magalhães, a Fundação Atlântica apresentou-se, em 1983, como o
primeiro exemplo de editora independente portuguesa capaz de traduzir o
conceito das novas «indies» que haviam brotado da Inglaterra de meados de 70. A
Fundação Atlântica recebeu, desde logo, o apoio incondicional de Francisco
Vasconcelos, da Valentim de Carvalho, que assegurou assim o fabrico e
distribuição dos discos. À equipa juntar-se-iam, logo depois, Ricardo Camacho,
Francisco Sande e Castro, Pedro Bidarra e Isabel Castanho (Inha para os
amigos), em casa de quem a editora conheceu morada oficial durante algum tempo.
Apresentada com um manifesto que fez história, a Fundação
Atlântica deixou desde logo claro que ia aliar a edição de novos valores da
música moderna portuguesa à representação local de discos de peso nos cenários
alternativos de então. Pela Fundação Atlântica editaram os Xutos & Pontapés
(single «Remar Remar»), estrearam-se os Delfins, a Sétima Legião, Anamar, Luís
Madureira, as Clube Naval (êxito no Verão de 84 com «Professor Xavier»)... Os
Duruti Column lançaram, através da Fundação, «Amigos em Portugal». E o lote de
referências não ficaria nunca completo sem uma referência aos discos a solo de
elementos dos Heróis do Mar, mais concretamente o single (também com edição em
máxi-single) «Rapazes de Lisboa», de Paulo Pedro Gonçalves, e o máxi «Ocidente
Infernal», de Pedro Ayres Magalhães.
Este disco, que assinalou, até hoje, a única aventura a solo
do ideólogo dos Faíscas, Corpo Diplomático, Heróis do Mar e Madredeus, era
apresentado, em 1985, como o primeiro de uma série de máxis instrumentais que o
músico pretendia editar mas que, por razões que o destino traçou, acabaram por
não acontecer nunca, ficando o projecto com uma ideia de continuidade por
concretizar (quem sabe um dia? Não seria má ideia...).
O disco
apresenta duas faixas instrumentais onde as ideias de paisagismo ambiental são
vitaminadas por um conceito que o próprio Pedro Ayres Magalhães explica em
texto publicado na contra-capa do máxi-single. «Janeiro de um ano qualquer. As
espirais do fumo negro, avançam da margem sul para noroeste, quentes ainda do
incêndio lento, que foi pouco a pouco consumindo as válvulas últimas, soltando
a grande pressão. Das águas já tépidas do Tejo liberta-se um cheiro pegajoso
misturado com o pó, acrescentado ao pavor. Os homens gastaram a terra, como
quem quer devorar. O tempo cumpriu mesmo assim. Exposição dos quadros sonoros
de Lisboa no último quartel do séc. XX, o ranger dos ferrolhos nas portas da
Europa. Aquelas colunas...», escrevia sobre «Ocidente Infernal», tema título
dominado por uma pulsação forte para guitarras, que rasgam uma melodia entre a
contenção e o grito. No lado B, «Adeus Torre de Belém», sublinha novo retrato
lisboeta, desta feita sob um conceito em duas partes, uma primeira feita de
sons reais, captados na cidade (mais concretamente no Barreiro, em Dezembro de
84), uma segunda, de perfil quase minimalista pop, «sob os destroços duma metrópole
afundada».
É possível encontrar aqui laços da finidade para com
algumas intenções retratistas em pontuais aventuras dos Heróis do Mar mas,
acima de tudo, e particularmente na atitude expressa no conceito e textos de
apresentação, manifestam-se claramente já intenções, caminhos poéticos e
ideários que tomariam forma, pouco depois, nos Madredeus. As fotos eram de
Pedro Ayres e Miguel Esteves Cardoso; o design, de Jorge Colombo.
O «Ocidente Infernal», mesmo longe de representar o
melhor de Pedro Ayres Magalhães, é uma peça de inegável valor histórico e, como
muitos outros momentos registados pela Fundação Atlântica, justifica que a
ideia de uma reedição em CD do acervo da editora, que já tarda.
Nuno Galopim
PEDRO AYRES MAGALHÃES «O Ocidente Infernal» Máxi-single,
Fundação Atlântica / EMI, 1985 Lado A: «O Ocidente Infernal»; Lado B: «Adeus
Torre de Belém» Produção: Pedro Ayres de Magalhães.
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