Diário de Notícias
suplemento dnmais
Nº 207
Sábado 20 de Abril de 2002
POP DELL'ARTE
SONHOS POP
Entrevista – Pop Dell’Arte
Eh Pá Estamos Vivos!
Os Pop Dell’Arte regressam com «So Goodnight», um
magnífico CD de seis temas que não descrevem como EP nem mini LP... É um «Eh
Pá», como explicam em entrevista ao DNmais
Numa tarde de sábado, juntámo-nos numa das salas da
redacção do DN, João Peste e José Pedro Moura (um fundador, agora regressado a
«casa») representaram o grupo para contar histórias de outros tempos, comentar
o presente e explicar, afinal, o que isso de um «Eh Pá»...
+ Nos primeiros dias dos Pop Dell’Arte diz que que o
maior desafio que sentiu foi o da escrita de letras. Mas acabou por desenvolver
um hábito de escrita muito pessoal...
João Peste – Tive de arranjar maneira de superar isso.
Mas não me considero, de modo algum, alguém que escreva bem ou que tenha algo
de interessante neste domínio a fazer. Fui convidado para uma sessão com o
Mário Cesariny e no Al Berto em 1989... Era um conjunto de recitais e
puseram-nos aos três na mesma noite. Mais tarde, o Al Berto referiu esse
momento como um encontro histórico entre três gerações. E disse ao Al Berto que
isso era um autêntico disparate. Não sou um escritor! Sou cantor, nem sequer
sou um músico, e às vezes tenho de escrevinhar umas coisas para cantar.
+ Uma escrita funcional?
JP – Não. É passional.
+ E serve a música?
JP – Ou vice versa. Depende dos espaços e depende das
paixões.
+ A dada altura começou, todavia, a escrever uma
autobiografia...
JP – Há anos atrás escrevi algumas memórias...
+ Coisas como...
JP – Escrevi coisas como quando conheci este caramelo
(José Pedro Moura), no concerto dos Chameleons, no Rock Rendez Vous. Lembro-me,
quando tinha dez anos, do 25 de Abril. Do telefone ter tocado às seis e meia da
manhã... O telefone ficava ao lado do meu quarto e o meu pai dizia que a Emissora
Nacional tinha perdido o pio... Fiquei muito baralhado sem saber o que era
perder o pio, e levantei-me.
+ E porque escreveu memórias?
JP – Não tinha nada para fazer... Estava num período
complicado, com drogas, e achei que se calhar não ia durar muito tempo e que
seria interessante deixar um testemunho. Não eram só coisas pessoais, mas
outras que também podem ser interessantes sobre a sociedade portuguesa e o meio
artístico português. Afinal, conheci muitas pessoas, desde políticos (uns de
uma forma mais íntima, outros menos íntima)... Até ao período do PREC, as
discussões académicas que havia, porque a sociologia estava ainda numa fase
embrionária.
+ Uma pessoa escreve memórias por temer o esquecimento?
JP – Não. É deixar um testemunho. Eu nunca quis dinheiro.
É claro que faz falta, mas nunca foi o que me moveu. Também nunca quis poder,
mas sempre me fascinou a ideia de ficar na história, nem que num cantinho da
música. A minha única vaidade é essa.
+ E não sente que os Pop Dell’Arte são já uma referência
na história pop portuguesa?
JP – Desde que não se torne numa coisa como aquelas
cerimónias do 5 de Outubro...
+ Como é que lhe parece que a maior parte das pessoas
reconhece hoje os Pop Dell’Arte?
JP – Os Pop Dell’Arte não são reconhecidos pela maior
parte das pessoas, nem sequer são conhecidos.
+ São um espaço de culto mais escondido ainda que nos
dias do Rock Rendez Vous (RRV)?
JP – Talvez... Mas não tenho dados sobre isso. Saiu agora
um disco, e não sei que impacte é que vai ter.
José Pedro Moura – Eu acho que a urgência de ter uns Pop
Dell’Arte em 1985 é a mesma neste momento. Surgiu um montão de bandas, umas
melhores, outras piores, mas o espaço dos Pop Dell’Arte continua sempre aberto.
Nunca houve ninguém que o ocupasse ou a ter uma agenda política e cultural que
sempre tivemos por bandeira. Esse espaço continua a haver para nós.
JP – O Nuno Rebelo disse numa entrevista que os Pop
Dell’Arte ficariam ao centro, os Mão Morta à esquerda e os Mler Ife Dada à
direita. Tudo muito relativo, claro. E isso não tem a ver com alguém ser de
direita ou de esquerda. Evoluindo de uma forma de pop mais acessível e
melodioso (Mler Ife Dada) para uma coisa mais agressiva e industrial, como os
Mão Morta, os Pop Dell’Arte tinham um pé num lado e outro noutro. Essa
«trindade» Mler Ife Dada – Mão Morta – Pop Dell’Arte nunca foi combinada,
apesar das boas relações e promiscuidade de circulação de músicos, no bom
sentido do termo...
+ Desses três nomes os Mler Ife Dada foram os primeiros a
acabar...
JP – Tenho ouvido muito Mler Ife Dada e cada vez mais
acho que a Anabela Duarte é uma cantora excepcional... O Nuno Rebelo é um génio
em termos de música pop e de composição. Mas mais para a música pop, que para
as outras coisas que às vezes ele quer fazer. E devia perder o preconceito em
tentar fazer uma música que seria alta cultura e não cultura pop, como se
houvesse um «versus» entre alta cultura e cultura pop. A minha tese de
mestrado, de resto, vai ter muito a ver com a ideia da criação de uma cultura
pop e, consequentemente, da música pop, e a análise disso em termos
sociológicos.
+ Os Mão Morta, dadas as pausas na carreira dos Pop
Dell’Arte são hoje a banda mais conhecida dessa «trindade». Graças à presente
exposição?
JPM – Naturalmente! Nunca deixaram de editar discos, com
mais ou menos frequência.E a nível de actuações ao vivo foram anos e anos... E
continua. Ao princípio partíamos todos com o mesmo nível de hipóteses. O Nuno
Rebelo dedicou-se, depois, a outras coisas. O João e o Luía Sampayo, durante o
tempo em que não estive nos Pop Dell’Arte, foram quem aguentou o barco. Mas
terá sido por haver um contacto mais rotineiro com o público que os Mão Morta
se tornaram conhecidos. Chegaram a mais gente. Não será por mais ou menos
acessibilidade. Hoje já é bem falar de Mão Morta, mas ao princípio falava-se do
Adolfo e dizia-se o que se dizia... Neste momento é uma instituição.
JP – Tenho todo o respeito pelos Mão Morta, mas a verdade
é que são um projecto que parte do industrial, partem de uma cidade bastante
católica. São as sete pragas do Nilo em Braga. Os Pop Dell’Arte são um grupo de
Lisboa da alta classe média e definem-se, à partida, como um grupo de «free
pop». Os Mão Morta são um grupo rock. Não são um grupo «free», mas opressivo.
JPM – A razão pela qual, a dada altura, saí dos Pop
Dell’Arte foi porque na altura interessava-me mais compor para guitarras. Agora
interessa-me mais trabalhar com a forma de composição dos Pop Dell’Arte... Uma
colagem de referências. Mas logo à partida os Mão Morta serão mais tradicionais
até pela forma como compõem, apesar das recentes aproximações às electrónicas.
+ Que tipo de banda são hoje os Pop Dell’Arte?
JP – Assumimo-nos como uma banda «free pop»... Não sei
porque estão à espera que nos auto-censuremos... Podemos ir em todos os
sentidos que quisermos, um pouco como aquela colagem no início do «Sonhos Pop»
em que aparecem as nossas vozes numa entrevista ao Aníbal Cabrita em que ele
diz «os Pop Dell’Arte avançam em círculo», isto é, avançamos em várias
direcções ao mesmo tempo. Reservamo-nos ao direito de, usando o termo de «Free
Pop», fazermos o que entendemos, e quem quiser gosta, quem quiser vai dar uma
curva. Mas já agora, já que se fala desta «trindade», queria falar de uma outra
pessoa: o Jorge Ferraz. A primeira experiência que tive a cantar com ele foi
com os Ezra Pound, durante dois meses, e houve logo guerra de egos. E trabalhou
com mais vocalistas que tiveram impacte no meio musical... Por questões que têm
a ver com a personalidade dele, acaba por ser um «outsider»...
JPM – Mas ninguém se deu ainda ao trabalho de reconhecer
o que ele fez.
+ Os silêncios na obra dos Pop Dell’Arte são
frequentes...
JP – Prefiro chamar-lhe pausas. E a pausa é uma peça
fundamental na música. Compor sem pausas é impossível. Pode parecer retórico,
mas não! Usamos a pausa na existência do grupo.
+ Esta última foi particularmente longa. Chegou a pensar
que o grupo poderia desaparecer?
JP – Não. Em 1995 apareceu um «Sex Symbol». A actividade
do «sex symbol» foi muito grande e não deu tempo para fazer música...
Aproveitou a pausa para fazer outras coisas.
+ Foi difícil viver numa multinacional na etapa «Sex
Symbol»?
JP – Andava demasiado drogado para pensar nessas coisas.
+ O regresso faz-se com um EP que cheira a sucessão
próxima num LP?
JP – É um bocadinho mais do que um EP, porque tem mais de
quatro temas.
+ Um mini LP, então?
JP – Não... É um Eh Pá!
+ Um Eh Pá?
JP – A pausa do «Sex Symbol» já tinha dado para
extroverter a sua energia sexual ao máximo. As drogas depois também deixam de
ter piada... E isto agora é um Eh Pá... Um «Eh Pá, ainda estamos aqui!».
+ Apesar de sempre ter havido uma relação com as
electrónicas, nunca antes estas desempenharam uma presença tão fundamental.
JP – O «Ready Made» é o álbum mais electrónico mas, em
termos ideológicos, é um disco fundamentalista junkie.
+ E este?
JP – É um apanhado do que os Pop Dell’Arte fizeram nos
três últimos anos, e é um «Eh Pá, nós estamos vivos»!
+ Alguns destes temas foram experimentados em concertos
ao longo destes mesmos três últimos anos. Foram oportunidades de teste às
canções?
JP – Sim. Tocámos o «So Goodnight» uma ou duas vezes e,
nos concertos a seguir já havia gente a pedi-los. O «Mrs Tyler» tocámos em
Vilar de Mouros...
Depois tocámos em Lisboa e houve quem os pedisse.
+ Não sentem a falta, em Lisboa, de um local onde
pudessem actuar mais frequentemente? E lá voltamos a falar na Rua da
Beneficência (onde estava sediado o RRV)...
JP – A Rua da Beneficência era apenas o local onde as
bandas tocavam. Mas havia um núcleo de bandas em Alvalade. E nós aparecemos em
Campo de Ourique. Curiosamente, o Adolfo Luxúria Canibal, apesar de ser de
Braga, também estava em Campo de Ourique. A sede da Ama Romanta era na Rua
Coelho da Rocha e a primeira maquete dos Pop Dell’Arte foi gravada num estúdio
na mesma rua, que é onde eu moro desde que nasci... Havia ainda em Campo de
Ourique os Essa Entente, os Enapá 2000...
+ No concurso do RRV em 1985 ganharam o prémio de
originalidade. Para vós era o mais importante?
JP – Era, porque os critérios eram outros. O «Bladin» não
perdeu nada nestes 17 anos, mas o Rui Veloso, que fazia parte do júri, deu aos
Pop Dell’Arte zero pontos em musicalidade, zero em visual (como se ele fosse
mais bonito do que nós...) e também nos deu zero em relação às letras... Qual
era a sua legitimidade para nos dar zero em termos de letra. Como os critérios
para os prémios de originalidade não passavam por este júri, esse era o prémio
que as bandas mais interessantes acabavam por vencer. O outro concurso estava
viciado à partida... Tirando o caso dos Mler Ife Dada, que deram um espectáculo
tão bom que seria escandaloso não ficarem em primeiro lugar. No nosso ano à
final foram os THC, Linha Geral, Essa Entente, os Linha Geral... as votações
eram distintas entre quem nos desse zero, cinco e dez... Quando saiu o «Free
Pop» as opiniões radicalizaram-se mais. O Viriato Teles escreveu, então, que tinha
decidido não fazer uma crítica ao disco «porque não merece»... E avançou
explicando que era um exemplo de como se não deveria tocar, não se deve cantar,
não se deve produzir um disco, escrever a letra ou sequer fazer uma capa.
+ Por alturas do «Sex Symbol» as reacções já foram
diferentes...
JP – Até por alturas do «Illogik Plastik» já foi assim.
Já tinha aparecido o «LP» e já não era só o António Sérgio o único a fazer um
programa alternativo.
+ Ou seja, essa mudança de atitude tem a ver com uma
abertura de espaços e consequente criação de uma cultura alternativa?
JP – Era a globalização, não mundial, mas sim uma
globalização portuguesa, interna, que também serviu para que tivéssemos de
levar certas coisas em doses maciças, umas boas outras más, seja a Ágata, os
Madredeus, o Pedro Abrunhosa e o Emanuel. Mas houve espaços para outras coisas
menos mediáticas poderem aparecer.
+ Alguma vez equacionou a questão da língua a usar numa
canção?
JP – Eu questiono a utilização da língua numa canção e
não só...
+ Como é que se opta?
JP – Sei lá...
+ No «Poppa Mundi», por exemplo, usam diversas línguas...
JP – Sim, fizémos muito isso também no «Illogik Plastik»,
no «Avanti Marinaio»... Eu acho que os Pop Dell’Arte já tinham uma consciência
da globalização cultural. Ela já existia mas ainda não tinha tomado a forma nem
era tão notada como começou a ser a partir dos anos 90, sobretudo depois da
Guerra do Golfo e o aparecimento da internet. Os Mler Ife Dada e os Pop
Dell’Arte já tinham essa ideia de globalização, do não fechamento. Podiam
cantar, usar fonemas, misturar línguas, criar uma linguagem nova. E por isso
digo, subtilmente, que os Pop Dell’Arte eram mais perversos ou subversivos que
os Mão Morta. Essa destruturação dos textos, a promiscuidade de línguas, o
«nonsense», o optar por significantes sem significado... Por tudo isso estava a
ser muito mais rebelde e era mais contra o sistema vigente do que se espetasse
uma faca na perna.
+ Há pouca rebeldia na música portuguesa?
JP – Acho que praticamente há falta de rebeldia em tudo o
que se faz neste país. Em Portugal e não só, e não é só na música. Na política
também, a nível europeu e mundial. Como é que Israel, que é um país mais
pequeno que Portugal, e tem uma população menos numerosa consegue estar a
provocar uma quase terceira guerra mundial, que está latente. Como o poder
financeiro judeu consegue dominar o sistema global! Gostava de ver o Ariel
Sharon a responder no tribunal de Haia. Não que o Milosevic não mereça lá
estar, mas ele merece muito mais.
JPM – Eu acho que o problema é que os putos consomem as
coisas conforme as servem. Vai tudo ver as bandas de nu-metal a Paredes de
Coura como se estivesse a fazer uma revolução. Mas aquilo é feito como as boy
bands, no forno. O pessoal que tem a mania que é alternativo ouve aquelas
coisas sempre naquelas rádios. Servem-lhes um padrão, e pronto! O pessoal da
música de dança acha que é tudo muito práfrentex porque tem a última palavra no
que se faz em termos de música, e não quer explorar mais nada. E depois as
bandas, que são constituídas por essas pessoas, acabam por reflectir isso,
tirando honrosas excepções, como é o caso dos Da Weasel. Não é preconceito, mas
procuramos e é um deserto! Lá fora aparecem coisas como os White Stripes ou
Basement jaxx... Por cá toda a gente tem o seu padrãozinho. As pessoas estão,
de facto, mais preocupadas com os copos do dia anterior que em fazer música. Ao
fim ao cabo fazemos isto por amor, senão estávamos a vender peixe ou pão num
sítio qualquer. Eu não gosto dos The Gift, mas eles têm o mérito de acreditarem
naquilo que fazem e levam aquilo contra tudo e contra todos. O resto das coisas
não batem.
JP – Para mim há excepções nos Da Weasel, Três Tristes
Tigres, Belle Chase Hotel, Rádio Macau... Os Silence 4 são simpáticos e uma boa
banda, mas não é o meu estilo de música.
+ Sentiram os Pop Dell’Arte desacompanhados de outras
bandas na mesma «família estética»?
JP – Quando formei a Ama Romanta a minha intenção era
essa. Tinha a consciência que sozinhos não íamos longe. O Lopes Graça escreveu,
uma vez, que os maiores inimigos da cultura em Portugal são a inveja, a intriga
e a mesquinhez. E a Ama Romanta foi vítima disso. Cheguei a estar a dar aulas e
gastar todo o ordenado para pagar dívidas da Ama Romanta. E houve bandas que
tinham editado pela Ama Romanta a cuspir no prato que lhes tinha dado de comer.
Em termos de meio musical sentíamo-nos realmente sós.
+ Hoje sentem-se ainda desacompanhados?
JP – Neste momento em Portugal há uma polarização
cultural cada vez maior. No «Divergências» o Paquete de Oliveira dizia que o
fosso entre os que sabem e os que não sabem é cada vez maior. Quem tem acesso
ao saber e ao espírito crítico é, cada vez mais, uma elite, enquanto o resto da
população se torna em hordas cada vez mais selvagens e analfabetas. A internet
e a globalização poderão ser maneiras de travar essa diferença entre os que
podem consumir criticamente e os que só podem consumir passivamente. A internet
talvez possa travar o pesadelo do homem unidimensional.
DISCOGRAFIA
1987. «Free Pop». Álbum de estreia e um dos mais
inesperados registos de libertação pop do Portugal de 80. Cultura pop e
personalidade no seu melhor.
1990. «Arriba Avanti!». Compilação, recolhe temas editados em single e máxi nos primeiros anos de vida do grupo e junta uma «demo» da primeira sessão de estúdio.
1993. «Ready Made» Conduzido por um conceito artístico, ilustra uma etapa de convívio com electrónicas, mas não perde a costela rock e «free».
1995. «Sex Symbol». Um dos melhores discos portugueses de 90 e a marca da maioridade criativa e interpretativa dos Pop Dell’Arte, editado por uma multinacional (então Polygram).
2002. «So Goodnight». Reunião num «Eh Pá» (ver entrevista) das criações dos últimos três anos. Prenúncio para um novo álbum?
Para quem chegou aqui...
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