BLITZ
(Jornal Musical)
Ano IX
Nº 427
5 de Janeiro de 1993
Sai às Terças-Feiras
Director: Rui Monteiro
Preço: 100$00
32 páginas
Capa e algumas páginas interiores a 3 cores, outras a preto e branco.
Redacção, administração e serviços comerciais: Av. Infante D. Henrique, 334, 1802 Lisboa
Director: Rui Monteiro
Chefe de Redacção: António Pires
Redacção:
Cristina Duarte
Miguel Francisco Cadete
Nuno Galopim
Raquel Pinheiro (Porto)
Rita Carmo (Fotografia)
Direcção Gráfica:
Cândida Teresa
Colaboradores:
Adágio Flor
Álvaro Romão
André Lepecki (Nova Iorque)
António Freitas
António Maninha
António Pedro Saraiva
Bruno Branco
Bruno Maçães
Diniz Conefrey (ilustração)
Fátima Castro Silva (Porto)
Fernando Santos Marques
Gimba
Hélder Moura Pereira
Hélder Salsinha (fotografia)
Hugo Moutinho (Porto)
Isabel Lucena (Londres)
João Correia
João Bugalho
José António Moura
José Antunes
Lili Wilde (Londres)
Luís Mateus
Luís Pinheiro de Almeida
Maria Ana Soromenho
Maria Baptista
Maria João Gouveia
Mário Correia
Miguel Cunha
Miss Ex
Monsieur Sardin
Paulo da Costa Domingos
Paulo Somsen
Pedro Esteves
Pedro Portela
Rafael Gouveia (Paris)
Rui Eduardo Paes
Sérgio Noronha
Sofia Louro
Teresa Barrau
Vítor Vasques (fotografia)
Manifesto (suplemento):
Ana Cristina
António Sérgio
Nuno Diniz
Jorge Lima Barreto
Manuel Dias
Tiragem média do mês anterior: 19 290 exemplares
Tal como disse aqui, este é um número de um período posterior em cerca de três anos e que cai naquela fase que então cataloguei como a segunda decadência, quicá o início dela, quiçá a última...
O Director continua a ser o mesmo (Rui Monteiro), alguns colaboradores são de qualidade (ver lista abaixo), mas já não era a mesma coisa. E fico-me por aqui.
Curiosamente, apesar da deriva mainstream a tiragem média decresceu.
I N A – G R M
MÚSICA MISTA
Dois compactos com carimbo INA-GRM dão-nos uma
perspectiva ajustada do que é a electro-acústica. Quem não compreendia do que
se tratava fica agora a saber...
O facto de o INA-GRM produzir estes dois discos decorre,
por assim dizer, da ordem natural das coisas: o Groupe de Recherches Musicales,
fundado pelos pioneiros da música concreta Pierre Schaeffer e Pierre Henry, em
1958, está optimamente colocado para protagonizar algumas das mais
interessantes investigações em curso relativas à contribuição das tecnologias
de ponta para o alargamento das possibilidades acústicas, e consequente
enriquecimento da criação experimental. “Sax – Computer” (Musique Française d’Aujourd’hui),
do multi-saxofonista Daniel Kientzy com apoio de Daniel Teruggi, ou “Chatakoa /
And Around” (Celia Records), disco contendo duas composições de Jean Schwarz e
apresentando como solistas Michel Portal no clarinete baixo e o duo constituído
por Charles Austin (saxofones e flauta) e Joe Gallivan (percussão), com Teruggi
na mesa de operações do SYTER – Système Temps Rèel Audionumérique, são disso os
melhores exemplos que poderíamos encontrar.
Estão representadas em ambos os títulos as virtualidades
mais audaciosas da electro-acústica. O SYTER é um sofisticado processador, com
a propriedade de sintetizar, transformar e analisar os sons em tempo real e
capacidade para interagir com o agente que lhe fornece a matéria-prima sonora,
no caso cada um dos músicos indicados.
Como indica Philip de la Croix nas notas que acompanham o
primeiro CD, Kientzy pode mesmo ser considerado um «actor» e não apenas um
intérprete das peças escritas por Teruggi, especialista da acusmática e docente
de psicoacústica na Sorbonne, Jean-Claude Risset, um antigo aluno de Jolivet
que trabalhou com Max Matthews nos Bell Telephone Laboratoires, e Gilles Racot,
discípulo de Schaeffer (et pour cause...), investigador no IRCAM e ainda um
artista plástico de renome internacional. Em música, um actor, na decorrência,
é alguém que «comete actos sonoros», sendo surpreendente, na verdade, como
Daniel Kientzy explorando as diferentes qualidades tímbricas dos saxofones
soprano, tenor e contrabaixo, é capaz de gerir com parcimónia tão complexos jogos,
constantemente dialogando com o computador, ora lhe impondo orientações, ora de
imediato reagindo às suas respostas.
E tanto assim que muito dificilmente o ouvinte consegue
distrinçar o que é obra sua e aquilo que teremos de definir como uma projecção,
«imagem sonora computadorizada». Não é só de uma ilusão auditiva que se trata,
note-se: a distinção entre sons naturais e artificiais desfez-se, determinando
novos parâmetros para a percepção humana. Daí que se possa afirmar, como já tem
sido feito, ser esta uma prática musical «desterritorializante». A música
electro-acústica, ao contrário da ideia que dela habitualmente se faz, não
consiste apenas no tratamento electrónico da execução de um instrumento
acústico ou de sons ambientais registados previamente: permite, isso sim, a
integração de elementos de universos diferentes. Não se fica, pois, pela
transformação, ou pela «passagem». Em França, chamam-lhe música «mista», dado
que todos os reenvios são possíveis. É em consciência, e com uma sobriedade notável,
aliás, que Michel Portal separa as águas durante a sua intervenção em
“Chantakoa”. A condição que colocou a Schwarz para a sua participação
demosntra-o cabalmente. Interessou a este conceituado soprador de jazz,
considerado também como um dos melhores intérpretes do repertório clássico e
contemporâneo para clarinete, um factor em especial: que a dimensão electrónica
servisse, tão-somente, para «renovar o som acústico».
Processamentos de sinal como especialização, reinjecção,
filtragem, leitura invertida, harmonização e retardamento, proporcionados pelo
SYTER e próprios de uma tecnologia digital sofisticada, funcionam assim como um
enquadramento «humano» adverso à generalidade dos investimentos
músico-tecnológicos actuais. O que é importante se tivermos presente que o
equipamento escolhido para a concretização destas peças musicais não está
propriamente ao dispor do utilizador comum. Longe do cenário proporcionado
pelos «home studios» e da estética «hacker» dos «piratas» da computação, era de
supor que a música produzida em instituições ultra-especializadas como são o
GRM ou o IRCAM (é neste último, de resto, que Racot desenvolve as suas
pesquisas com um outro sistema de síntese em tempo real, o QUATRON) só poderia
contrariar a massificação técnica e processual a que somos constrangidos,
devido ao fabrico em série de máquinas com aplicação musical, por meio de uma
intervenção igualmente desajustada, porque demasiado selectiva. Os resultados
(estes resultados, pelo menos) não o confirmam, porém.
“Xatys”, a composição de Teruggi, é um encadeado de
cortes abruptos e ataques de rompante, entre a corporalidade e presença física
do saxofone e a sua fantasmização extrema. É, no entanto, com “Voilements” de
Risset e “Exultitudes” de Gilles Racot que ficamos cientes das motivações
básicas do Groupe de Recherches Musicales e isso devido à tónica dada à banda
magnética. A montagem, colagem e demais manipulação de fitas, em «contacto
directo com o sonoro», caracterizaram, como se sabe, os investimentos da
«musique concrète», e é esse o investimento aplicado nestes álbuns, ainda que
com a devida actualização ao nível dos procedimentos. No primeiro tema o
trabalho de esculturação sonora promovido pelo SYTER e as sínteses elaboradas
pelo programa Music V, ou no segundo os processamentos de estúdio, trazem
outras implicações mas preservam os princípios de sempre, como «realizar
deliberadamente todas as microestruturas acústicas que possam ser necessárias à
composição de uma obra musical de tipo novo», para citar Henri Pousseur. Não é
por acaso que Daniel Teruggi dedica grande parte da sua actividade à preparação
de bandas magnéticas, destacando-se “Eterea-Aquatica-Focolaria Terra”.
É sobre uma fita, também, que dialogam Austin e Gallivan
em “And Around”, de Jean Schwarz, remetendo-nos automaticamente para o
concretismo. Até nas definições dos materiais incluídos nos sete movimentos da
peça, constando uma «ruptura com apoio numa sinfonia ferroviária», um «jogo
entre gotas de água e elementos integrados» ou «um espaço imaginário com passos
sobre folhas secas, areia e sons indefiníveis». Para todos os efeitos, as
coisas são tal qual como verificaram Schaeffer e Henry: antes de tudo o mais
estão os objectos sonoros, ou seja, tudo aquilo que ouvimos, e entre estes só
achamos os objectos propriamente musicais quando (e se) lhes acrescentamos um
juízo de valor, bastando isso. O que, claro, não é fácil.
Rui Eduardo Paes
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