BLITZ
(Jornal Musical)
Ano IX
Nº 417
27 de Outubro de 1992
Sai às Terças-Feiras
Director: Rui Monteiro
Preço: 100$00
32 páginas
Capa e algumas páginas interiores a 3 cores, outras a preto e branco.
Suplemento Manifesto (Mensal?) de 4 páginas. Ver abaixo autoria do mesmo, na ficha técnica
Redacção, administração e serviços comerciais: Av. Infante D. Henrique, 334, 1802 Lisboa
Director: Rui Monteiro
Chefe de Redacção: António Pires
Redacção:
Cristina Duarte
Miguel Francisco Cadete
Nuno Galopim
Raquel Pinheiro (Porto)
Rita Carmo (Fotografia)
Direcção Gráfica:
Cândida Teresa
Colaboradores:
Adágio Flor
Álvaro Romão
André Lepecki (Nova Iorque)
António Freitas
António Maninha
António Pedro Saraiva
Bruno Branco
Bruno Maçães
Diniz Conefrey (ilustração)
Fátima Castro Silva (Porto)
Fernando Santos Marques
Gimba
Hélder Moura Pereira
Hélder Salsinha (fotografia)
Hugo Moutinho (Porto)
Isabel Lucena (Londres)
João Correia
João Bugalho
José António Moura
José Antunes
Lili Wilde (Londres)
Luís Mateus
Luís Pinheiro de Almeida
Maria Ana Soromenho
Maria Baptista
Maria João Gouveia
Mário Correia
Miguel Cunha
Miss Ex
Monsieur Sardin
Paulo da Costa Domingos
Paulo Somsen
Pedro Esteves
Pedro Portela
Rafael Gouveia (Paris)
Rui Eduardo Paes
Sérgio Noronha
Sofia Louro
Teresa Barrau
Vítor Vasques (fotografia)
Manifesto (suplemento):
Ana Cristina
António Sérgio
Nuno Diniz
Jorge Lima Barreto
Manuel Dias
Tiragem média do mês anterior: 19 290 exemplares
Tal como disse aqui, este é um número de um período posterior em cerca de três anos e que cai naquela fase que então cataloguei como a segunda decadência, quicá o início dela, quiçá a última...
O Director continua a ser o mesmo (Rui Monteiro), alguns colaboradores são de qualidade (ver lista abaixo), mas já não era a mesma coisa. E fico-me por aqui.
Curiosamente, apesar da deriva mainstream a tiragem média decresceu.
COLECTÂNEAS 2
ARTE BRUTA
A música em estado bruto tem com a fórmula «compilação»
um vínculo especial: vê-se impedida de ser Obra, produto acabado...
Uma das principais figuras do dadísmo, Hugo Ball,
escreveu no princípio do século sobre a “Appassionata” de Beethoven aquilo que,
afinal, pode ser dito em defesa de uma música verdadeiramente «intensa»,
embora, para melhor entendermos estes considerandos, seja aconselhável
abstrairmo-nos de questões como a expressividade ou a mensagem, pois não é da
transmissão de sentimentos e estados de espírito que se trata, mas da força
intrínseca às construções sonoras: «Afecta os vossos nervos, faz com que vos
apeteça dizer coisas bonitas e estúpidas e bater nas cabeças de quantos
conseguem criar tamanha beleza apesar de viverem neste vil inferno. Será até
melhor não bater na cabeça de ninguém, pois podem ficar com a mão dorida. É
preciso, sim, explodir-lhes com as cabeças, sem qualquer piedade.» De facto,
para o melómano sedento de intensidade, partidário das facções «hardcore» das
músicas actualmente em jogo, do rock à electrónica dita «erudita», passando
pela improvisação pós-jazzística, Beethoven será o melhor exemplo do que não é
uma «arte bruta».
E para que os termos fiquem bem definidos, cite-se o que
referiu nos anos 20 um outro autor Dada, Huelsenbeck: «A alma é por natureza
vulcânica. Todo o movimento produz, naturalmente, ruído. Enquanto que o número,
e por consequência a melodia, são símbolos pressupondo a faculdade da
abstracção, o ruído é uma chamda directa à acção. A música de qualquer natureza
é harmoniosa, artística, uma actividade da razão – o “bruitisme”, esse, é a
própria vida, não pode ser julgado como um livro, é antes uma parte da nossa
personalidade, que nos ataca, persegue e despedaça. O “bruitisme” é um modo de
entender a vida que, por estranho que pareça, nos compele a tomar uma decisão
absoluta (...)».
Desde então pouco mudou no entendimento deste domínio da
intervenção musical – apenas se levaram as implicações inerentes um pouco mais
longe. Percebe-o Greil Marcus no seu extenso e fascinante ensaio sobre o punk e
os Sex Pistols, articulando o fenómeno que marcou a segunda metade da década de
70 e o percurso deste grupo em particular na linhagem que remonta,
precisamente, ao famoso Cabaret Voltaire de Zurique e cuja última expressão foi
protagonizada pela Internacional Situacionista por alturas do Maio de 68
francês. É do conjunto formado pela abstracção semântica, o transe das
estruturas, os glissandos não-virtuosísticos, a harmonia «pré-histórica» ou os
gritos «de dor e hilariedade» que se retira o significado profundo da música
«bruta», tal como vem sugerido em “Lipstick Traces”.
Pois foi este tema que deu vida à compilação “Hardis
Bruts – Hommage à l’Art Brut”, recentemente editada pela francesa AYAA e
infelizmente sem distribuição portuguesa. Um disco curioso, até pelo mote que
os diversos projectos ilustram, cada um a seu modo. O parágrafo que inspirou
esta recolha foi retirado a Dubuffet e não podia ser mais apropriado: «A arte
não dorme nas camas que lhe fazemos; escapa-se assim que pronunciamos o seu
nome: o que ela ama é o anonimato. Os seus melhores momentos são aqueles em que
se esquece como se chama». Na verdade, o que acontece, inevitavelmente, com
toda e qualquer colectânea é o extremo relativismo derivado da coexistência dos
vários participantes, ou pelo menos a desimportância dos seus nomes para o
ouvinte, que é levado a centrar-se na sucessão das peças musicais e a não
considerar as respectivas autorias. Num disco com tais características, a
diversidade apresenta-se como uma exponenciação de possibilidades: pouco importa
a identificação que determinada peça, se o que está em causa é a riqueza e
frequência das mutações, a forma com que se processam, o efeito de vertigem
obtido. «Jolifanto bambla ô falli bambla / Grossiga m’ pfa habla horem / Égiga goramen / Higo bloiko russula huju /
Hollaka hollala / Anlogo bung / Blago bung», recitavam os poetas Dada,
impedindo a concretização e fixação de sentidos, pois era a exaltação do caos
fundador aquilo que se buscava. Tencionam fazer isso mesmo, igualmente, as
compilações “bruitistes”.
Em “Hardis Bruts” participam The Blech, Cedric Vuille,
René Lussier, Danny Finney, Ferdinand Ricard, David Moss, The Work, L’Ensemble
Raye, Klimperei, Toupidek Limonade, Look de Bouk e Lars Hollmer, e tanto melhor
se grande parte desles desconhecemos totalmente. O CD caracteriza-se, acima de
tudo, pelo seu irreverente hibridismo, cruzando-se, sem jamais se fundirem ou
sequer se identificarem totalmente, o pop/rock, o jazz, a música contemporânea
de câmara, os ritmos étnicos ou o mais que se ouve (em “Kaisermarsch” dos
Blech, logo para começar), e sem que esses cruzamentos se «resolvam» seja como
for, tudo ficando em estado de crueza e inacabamento gerais. Como se sabe, não
há tipologia musical mais produzida e «acabada» do que a fusão – ora, o que vem
contido nestas faixas é o inverso, nada cristalizando em formas definitivas.
Alguns dos intervenientes chegam inclusivamente a «ideologizar» o seu
posicionamento, como Richard, que justifica os ruídos de fundo, pouco
«convenientes» neste tempo de gravações digitais, em «Pas mal à l’heure» com um
simples argumento: «Si on les filtre, on perd la vie».
Inscreve-se nesta linha um vinil compilado por Eric
Lanzillotta e intitulado “Perpetual State of Oracular Dream”, volume da
Anomalous Records importado pela Ananana que junta momentos de alguns projectos
conhecidos (de Asmus Tietchens, Cranioclast, Arcane Device, Haters e Mimir), a
outros agrupamentos cuja origem e destino são uma deliciosa incógnita, como
Debt of Nature, Genocide Organ, blackhumour (assim mesmo, sem maiúscula!),
Crash Worship, Premature Ejaculation, Hirsch Quadrat e Plecid. O interesse do
disco está em reunir contribuições não de música como tal entendida, seguindo
os parâmetros comumente aceites, mas de uma «sound art» em que o uso das tecnologias
electrónicas mais avançadas permite, por paradoxal que pareça, efabular a
imperfeição.
É particularmente interessante, neste aspecto, o que
fazem os blackhumour em “Tab to Block Bicuspid”, um «audio-work» inteiramente
baseado em vozes, no caso captadas por telefone e que são tratadas de imediato
no próprio gravador, com cortes e colagens não estranhos às técnicas do
«cut-up» formuladas por Brion Gysin, o inventor da «dream machine». O curioso é
que os criadores envolvidos mantêm-se a coberto do nome «blackhumour», nada se
sabendo deles, e o resultado dessa escolha está patente na objectualização dos
sons vocais conseguida, para todos os efeitos os mais básicos e imediatos que
temos ao dispor. «É importante as pessoas compreenderem que este material destina-se
a ser ouvido fora do contexto de qualquer diálogo musical», referiu um elemento
do colectivo à “Vital”.
Para algo ser encarado como objecto, «ser objectivo», tem
de ser representado, e é isso exactamente o que se passa com a voz quando
trabalhada pelos blackhumour. A voz, no palco, e o cantor ou o actor que a
profere; numa obra de poesia concreta como esta desloca-se, é a representação
de um acto quando já este dissipou por inteiro o seu poder. Não é uma voz, mas
o «clone» dessa voz. O sujeito perdeu-se algures no trajecto, fazendo jus à
noção de que o objecto, afinal, não é determinável por ele. Pode falar-se, se
se quiser, de desumanização, pois é isso o que está em causa na mutilação e
fragmentação destas falas apanhadas no ar, aspectos do presente tráfico
comunicacional tornados em arte, «arte bruta», aquela que acompanha o processo
de cisão do homem contemporâneo, cada vez menos o sujeito dos seus actos,
esquizóide e dividido.
Não é outra coisa o que realizam os Phauss numa
colectânea sem título que os coloca a par e em colaboração com Zbigniew
Karkowski e Ulf Bitting, um CD da Silent Records também comercializado entre
nós pela Ananana. “Final Folklore” é apresentado ironicamente como um composto
em que tomam parte o «lohengrin» de Wagner, a música joujouka de Marrocos ou o
folclore sueco, tendo sido «gravado, regravado, equalizado, misturado e mutado»
num estúdio electro-acústico de Gotemburgo, pelo que as notas incluídas
indicam. O produto final é uma compacta massa de ruído, evoluindo por subtilezas
mínimas (minimais, até) durante 24 exasperantes minutos. Esta é a arte dos sons
possível, compreendemos, depois de desfeitas todas as tradições, uma
(não)-música terminal, barroca ao nível do absurdo, criada sob as pulsões de
thanatos, essas mesmas que nos ligam à terra, ao que é perene e mortal. Foi
Richard Huelsenbeck, também, quem disse que o «bruitisme» é como que «um
regresso à Natureza», «música construída por circuitos de átomos»...
Rui Eduardo Paes
MÚSICA & RÁDIO
Todas as extensões tecnológicas do homem (os «mass
media», por exemplo) são subliminares, doutra forma não suportaríamos a acção
que exercem sobre nós. Para McLuhan a rádio é uma extensão do sistema nervoso
central só igualada pela própria fala humana.
A telecomunicação é um canal artificial e necessita dum
sistema técnico, leva a uma experiência vicarial, de intercomunicação.
Brecht escreveu; «pequena caixinha que carreguei quando
em fuga / para que as válvulas não pifassem / que levei de casa para o navio e
o trem / para que os meus inimigos continuassem a falar-me / perto da minha
cama e para minha angústia. As últimas palavras da noite e as primeiras da
manhã / sobre as suas vitórias e sobre os meus problemas – promete-me que não
ficas muda de repente.» (McLuhan, 1964, pg. 89).
No espaço acústico tudo é vazio, não há nada que ver. O
público do concerto clássico, por isso mesmo, fecha os olhos. O espaço acústico
não tem foco referente, é uma esfera sem fronteiras fixas, um espaço contido
pela coisa em si – é dinheiro, fluente, cria as suas dimensões momento após
momento. Analiza toda a gama de emoções (marcha, ópera...). A rádio restaurou a
presença do som ausente – assim a rádio é a evocação duma imagem visual.
A rádio tem o poder de envolver as pessoas em
profundidade proporcionando uma vivência musical particular.
Produção Radiofónica
No que respeita à programação radiofónica, a retórica da
rádio pode ser construída de duas formas: verticalmente, um programa que é
editado semanalmente e à mesma hora (ex. «os Musonautas, no «Correio da Manhã,
terças, uma da madrugada). Ou horizontalmente, corresponde à sucessão horária
dos diferentes programas a partir da grelha, ao seu alinhamento. Também
programas de carácter bidireccional como «discos pedidos pelos ouvintes».
Na rádio distinguem-se três planos: grande, médio e
panorâmica – são obtidos pela distância dos intérpretes (locutores, músicos,
actores, convidados, etc...) em relação ao microfone.
Na rádio, cada voz, cada interpretação é submetida a
filtragens, ampliações, enquadramentos. O editor é colocado em situações que
melhoram, em geral, as suas exigências. A transmissão radiofónica da música
adjectiva e qualifica a semiologia musical.
Os sons dos rádios transístores (dos pequenos e roufenhos
aos grandes «mega bass» com baixos convincentes) dos aparelhos FM de alta
fidelidade e ambiência, aos rádios «walkman» (intimidade exclusiva da fruição
através de auscultadores).
Com todos estes tipos de aparelhos mais difundidos no
mercado a rádio propicia a intimidade ao jovem, e o isolamento, mas,
opostamente, revitaliza os laços tribais do mundo do mercado comum da canção
como ressonância semiológica.
O ouvido é intolerante, fechado, exclusivo; esta completa
clausura da acção envolve o ouvinte numa independência que o torna remoto e
inacessível (maxime na audição via «walkman»).
A tela mística e sonora com que se revestem as auditórias
da rádio fornece privacidade para o trabalho caseiro ou imuniza o ouvinte dos
enredos sociais do trabalho.
Indústria Musical Na Rádio
As grandes editoras multinacionais discográficas dividem
a música na rádio; por um lado a bagatela, o vulgar, o fenómeno do tubo,
visando o espectro jovem do público consumista e, por outro lado, a música de
arte ou a experimental, a culta, ou simplesmente aquela conotada como
diferente, visando uma faixa restrita do auditório. Mesmo as rádios emissoras
independentes, ou «alternativas», ou «livres», na impossibilidade económica de
apoiarem a criação musical isenta do estigma do estereotipo e da estandardização
ou do modernismo académico, são induzidas ao jogo concorrencial com a agravante
de terem de suportar leis de consumo impostas pelas multinacionais do disco:
identificando-se como signo de independência ou diferença os produtos
economicamente pouco significativos das editoras ditas «independentes»
tornam-se produtos residuais, despojos, ou restos que ficam dispensados pela
procura e considerados disponíveis pela indústria do disco, muitas vezes com o
nome de «música de prestígio», já que o lucro não justifica investimentos
publicitários.
A rádio porém aponta para uma contradição: reforçando a
alienação do consumismo (dos jovens compram de acordo com o efémero da moda
«pop») o auditor mais consciente procura adquirir o disco que não pode ouvir na
rádio.
in suplemento Manifesto
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