23.12.16

Memorabilia: Revistas / Magazines / Fanzines (266) - Blitz - Jornal Musical


BLITZ 
(Jornal Musical)
Ano IX
Nº 417
27 de Outubro de 1992
Sai às Terças-Feiras
Director: Rui Monteiro
Preço: 100$00
32 páginas
Capa e algumas páginas interiores a 3 cores, outras a preto e branco.
Suplemento Manifesto (Mensal?) de 4 páginas. Ver abaixo autoria do mesmo, na ficha técnica


Ficha Técnica (parcial)
Redacção, administração e serviços comerciais: Av. Infante D. Henrique, 334, 1802 Lisboa
Director: Rui Monteiro
Chefe de Redacção: António Pires
Redacção:
Cristina Duarte
Miguel Francisco Cadete
Nuno Galopim
Raquel Pinheiro (Porto)
Rita Carmo (Fotografia)
Direcção Gráfica:
Cândida Teresa
Colaboradores:
Adágio Flor
Álvaro Romão
André Lepecki (Nova Iorque)
António Freitas
António Maninha
António Pedro Saraiva
Bruno Branco
Bruno Maçães
Diniz Conefrey (ilustração)
Fátima Castro Silva (Porto)
Fernando Santos Marques
Gimba
Hélder Moura Pereira
Hélder Salsinha (fotografia)
Hugo Moutinho (Porto)
Isabel Lucena (Londres)
João Correia
João Bugalho
José António Moura
José Antunes
Lili Wilde (Londres)
Luís Mateus
Luís Pinheiro de Almeida
Maria Ana Soromenho
Maria Baptista
Maria João Gouveia
Mário Correia
Miguel Cunha
Miss Ex
Monsieur Sardin
Paulo da Costa Domingos
Paulo Somsen
Pedro Esteves
Pedro Portela
Rafael Gouveia (Paris)
Rui Eduardo Paes
Sérgio Noronha
Sofia Louro
Teresa Barrau
Vítor Vasques (fotografia)

Manifesto (suplemento):
Ana Cristina
António Sérgio
Nuno Diniz
Jorge Lima Barreto
Manuel Dias

Tiragem média do mês anterior: 19 290 exemplares

Tal como disse aqui, este é um número de um período posterior em cerca de três anos e que cai naquela fase que então cataloguei como a segunda decadência, quicá o início dela, quiçá a última...
O Director continua a ser o mesmo (Rui Monteiro), alguns colaboradores são de qualidade (ver lista abaixo), mas já não era a mesma coisa. E fico-me por aqui.
Curiosamente, apesar da deriva mainstream a tiragem média decresceu.




COLECTÂNEAS 2
ARTE BRUTA

A música em estado bruto tem com a fórmula «compilação» um vínculo especial: vê-se impedida de ser Obra, produto acabado...

Uma das principais figuras do dadísmo, Hugo Ball, escreveu no princípio do século sobre a “Appassionata” de Beethoven aquilo que, afinal, pode ser dito em defesa de uma música verdadeiramente «intensa», embora, para melhor entendermos estes considerandos, seja aconselhável abstrairmo-nos de questões como a expressividade ou a mensagem, pois não é da transmissão de sentimentos e estados de espírito que se trata, mas da força intrínseca às construções sonoras: «Afecta os vossos nervos, faz com que vos apeteça dizer coisas bonitas e estúpidas e bater nas cabeças de quantos conseguem criar tamanha beleza apesar de viverem neste vil inferno. Será até melhor não bater na cabeça de ninguém, pois podem ficar com a mão dorida. É preciso, sim, explodir-lhes com as cabeças, sem qualquer piedade.» De facto, para o melómano sedento de intensidade, partidário das facções «hardcore» das músicas actualmente em jogo, do rock à electrónica dita «erudita», passando pela improvisação pós-jazzística, Beethoven será o melhor exemplo do que não é uma «arte bruta».
E para que os termos fiquem bem definidos, cite-se o que referiu nos anos 20 um outro autor Dada, Huelsenbeck: «A alma é por natureza vulcânica. Todo o movimento produz, naturalmente, ruído. Enquanto que o número, e por consequência a melodia, são símbolos pressupondo a faculdade da abstracção, o ruído é uma chamda directa à acção. A música de qualquer natureza é harmoniosa, artística, uma actividade da razão – o “bruitisme”, esse, é a própria vida, não pode ser julgado como um livro, é antes uma parte da nossa personalidade, que nos ataca, persegue e despedaça. O “bruitisme” é um modo de entender a vida que, por estranho que pareça, nos compele a tomar uma decisão absoluta (...)».
Desde então pouco mudou no entendimento deste domínio da intervenção musical – apenas se levaram as implicações inerentes um pouco mais longe. Percebe-o Greil Marcus no seu extenso e fascinante ensaio sobre o punk e os Sex Pistols, articulando o fenómeno que marcou a segunda metade da década de 70 e o percurso deste grupo em particular na linhagem que remonta, precisamente, ao famoso Cabaret Voltaire de Zurique e cuja última expressão foi protagonizada pela Internacional Situacionista por alturas do Maio de 68 francês. É do conjunto formado pela abstracção semântica, o transe das estruturas, os glissandos não-virtuosísticos, a harmonia «pré-histórica» ou os gritos «de dor e hilariedade» que se retira o significado profundo da música «bruta», tal como vem sugerido em “Lipstick Traces”.
Pois foi este tema que deu vida à compilação “Hardis Bruts – Hommage à l’Art Brut”, recentemente editada pela francesa AYAA e infelizmente sem distribuição portuguesa. Um disco curioso, até pelo mote que os diversos projectos ilustram, cada um a seu modo. O parágrafo que inspirou esta recolha foi retirado a Dubuffet e não podia ser mais apropriado: «A arte não dorme nas camas que lhe fazemos; escapa-se assim que pronunciamos o seu nome: o que ela ama é o anonimato. Os seus melhores momentos são aqueles em que se esquece como se chama». Na verdade, o que acontece, inevitavelmente, com toda e qualquer colectânea é o extremo relativismo derivado da coexistência dos vários participantes, ou pelo menos a desimportância dos seus nomes para o ouvinte, que é levado a centrar-se na sucessão das peças musicais e a não considerar as respectivas autorias. Num disco com tais características, a diversidade apresenta-se como uma exponenciação de possibilidades: pouco importa a identificação que determinada peça, se o que está em causa é a riqueza e frequência das mutações, a forma com que se processam, o efeito de vertigem obtido. «Jolifanto bambla ô falli bambla / Grossiga m’ pfa habla horem /  Égiga goramen / Higo bloiko russula huju / Hollaka hollala / Anlogo bung / Blago bung», recitavam os poetas Dada, impedindo a concretização e fixação de sentidos, pois era a exaltação do caos fundador aquilo que se buscava. Tencionam fazer isso mesmo, igualmente, as compilações “bruitistes”.



Em “Hardis Bruts” participam The Blech, Cedric Vuille, René Lussier, Danny Finney, Ferdinand Ricard, David Moss, The Work, L’Ensemble Raye, Klimperei, Toupidek Limonade, Look de Bouk e Lars Hollmer, e tanto melhor se grande parte desles desconhecemos totalmente. O CD caracteriza-se, acima de tudo, pelo seu irreverente hibridismo, cruzando-se, sem jamais se fundirem ou sequer se identificarem totalmente, o pop/rock, o jazz, a música contemporânea de câmara, os ritmos étnicos ou o mais que se ouve (em “Kaisermarsch” dos Blech, logo para começar), e sem que esses cruzamentos se «resolvam» seja como for, tudo ficando em estado de crueza e inacabamento gerais. Como se sabe, não há tipologia musical mais produzida e «acabada» do que a fusão – ora, o que vem contido nestas faixas é o inverso, nada cristalizando em formas definitivas. Alguns dos intervenientes chegam inclusivamente a «ideologizar» o seu posicionamento, como Richard, que justifica os ruídos de fundo, pouco «convenientes» neste tempo de gravações digitais, em «Pas mal à l’heure» com um simples argumento: «Si on les filtre, on perd la vie».
Inscreve-se nesta linha um vinil compilado por Eric Lanzillotta e intitulado “Perpetual State of Oracular Dream”, volume da Anomalous Records importado pela Ananana que junta momentos de alguns projectos conhecidos (de Asmus Tietchens, Cranioclast, Arcane Device, Haters e Mimir), a outros agrupamentos cuja origem e destino são uma deliciosa incógnita, como Debt of Nature, Genocide Organ, blackhumour (assim mesmo, sem maiúscula!), Crash Worship, Premature Ejaculation, Hirsch Quadrat e Plecid. O interesse do disco está em reunir contribuições não de música como tal entendida, seguindo os parâmetros comumente aceites, mas de uma «sound art» em que o uso das tecnologias electrónicas mais avançadas permite, por paradoxal que pareça, efabular a imperfeição.
É particularmente interessante, neste aspecto, o que fazem os blackhumour em “Tab to Block Bicuspid”, um «audio-work» inteiramente baseado em vozes, no caso captadas por telefone e que são tratadas de imediato no próprio gravador, com cortes e colagens não estranhos às técnicas do «cut-up» formuladas por Brion Gysin, o inventor da «dream machine». O curioso é que os criadores envolvidos mantêm-se a coberto do nome «blackhumour», nada se sabendo deles, e o resultado dessa escolha está patente na objectualização dos sons vocais conseguida, para todos os efeitos os mais básicos e imediatos que temos ao dispor. «É importante as pessoas compreenderem que este material destina-se a ser ouvido fora do contexto de qualquer diálogo musical», referiu um elemento do colectivo à “Vital”.
Para algo ser encarado como objecto, «ser objectivo», tem de ser representado, e é isso exactamente o que se passa com a voz quando trabalhada pelos blackhumour. A voz, no palco, e o cantor ou o actor que a profere; numa obra de poesia concreta como esta desloca-se, é a representação de um acto quando já este dissipou por inteiro o seu poder. Não é uma voz, mas o «clone» dessa voz. O sujeito perdeu-se algures no trajecto, fazendo jus à noção de que o objecto, afinal, não é determinável por ele. Pode falar-se, se se quiser, de desumanização, pois é isso o que está em causa na mutilação e fragmentação destas falas apanhadas no ar, aspectos do presente tráfico comunicacional tornados em arte, «arte bruta», aquela que acompanha o processo de cisão do homem contemporâneo, cada vez menos o sujeito dos seus actos, esquizóide e dividido.
Não é outra coisa o que realizam os Phauss numa colectânea sem título que os coloca a par e em colaboração com Zbigniew Karkowski e Ulf Bitting, um CD da Silent Records também comercializado entre nós pela Ananana. “Final Folklore” é apresentado ironicamente como um composto em que tomam parte o «lohengrin» de Wagner, a música joujouka de Marrocos ou o folclore sueco, tendo sido «gravado, regravado, equalizado, misturado e mutado» num estúdio electro-acústico de Gotemburgo, pelo que as notas incluídas indicam. O produto final é uma compacta massa de ruído, evoluindo por subtilezas mínimas (minimais, até) durante 24 exasperantes minutos. Esta é a arte dos sons possível, compreendemos, depois de desfeitas todas as tradições, uma (não)-música terminal, barroca ao nível do absurdo, criada sob as pulsões de thanatos, essas mesmas que nos ligam à terra, ao que é perene e mortal. Foi Richard Huelsenbeck, também, quem disse que o «bruitisme» é como que «um regresso à Natureza», «música construída por circuitos de átomos»...
Rui Eduardo Paes







MÚSICA & RÁDIO

Todas as extensões tecnológicas do homem (os «mass media», por exemplo) são subliminares, doutra forma não suportaríamos a acção que exercem sobre nós. Para McLuhan a rádio é uma extensão do sistema nervoso central só igualada pela própria fala humana.
A telecomunicação é um canal artificial e necessita dum sistema técnico, leva a uma experiência vicarial, de intercomunicação.
Brecht escreveu; «pequena caixinha que carreguei quando em fuga / para que as válvulas não pifassem / que levei de casa para o navio e o trem / para que os meus inimigos continuassem a falar-me / perto da minha cama e para minha angústia. As últimas palavras da noite e as primeiras da manhã / sobre as suas vitórias e sobre os meus problemas – promete-me que não ficas muda de repente.» (McLuhan, 1964, pg. 89).
No espaço acústico tudo é vazio, não há nada que ver. O público do concerto clássico, por isso mesmo, fecha os olhos. O espaço acústico não tem foco referente, é uma esfera sem fronteiras fixas, um espaço contido pela coisa em si – é dinheiro, fluente, cria as suas dimensões momento após momento. Analiza toda a gama de emoções (marcha, ópera...). A rádio restaurou a presença do som ausente – assim a rádio é a evocação duma imagem visual.
A rádio tem o poder de envolver as pessoas em profundidade proporcionando uma vivência musical particular.

Produção Radiofónica

No que respeita à programação radiofónica, a retórica da rádio pode ser construída de duas formas: verticalmente, um programa que é editado semanalmente e à mesma hora (ex. «os Musonautas, no «Correio da Manhã, terças, uma da madrugada). Ou horizontalmente, corresponde à sucessão horária dos diferentes programas a partir da grelha, ao seu alinhamento. Também programas de carácter bidireccional como «discos pedidos pelos ouvintes».
Na rádio distinguem-se três planos: grande, médio e panorâmica – são obtidos pela distância dos intérpretes (locutores, músicos, actores, convidados, etc...) em relação ao microfone.
Na rádio, cada voz, cada interpretação é submetida a filtragens, ampliações, enquadramentos. O editor é colocado em situações que melhoram, em geral, as suas exigências. A transmissão radiofónica da música adjectiva e qualifica a semiologia musical.
Os sons dos rádios transístores (dos pequenos e roufenhos aos grandes «mega bass» com baixos convincentes) dos aparelhos FM de alta fidelidade e ambiência, aos rádios «walkman» (intimidade exclusiva da fruição através de auscultadores).
Com todos estes tipos de aparelhos mais difundidos no mercado a rádio propicia a intimidade ao jovem, e o isolamento, mas, opostamente, revitaliza os laços tribais do mundo do mercado comum da canção como ressonância semiológica.
O ouvido é intolerante, fechado, exclusivo; esta completa clausura da acção envolve o ouvinte numa independência que o torna remoto e inacessível (maxime na audição via «walkman»).
A tela mística e sonora com que se revestem as auditórias da rádio fornece privacidade para o trabalho caseiro ou imuniza o ouvinte dos enredos sociais do trabalho.

Indústria Musical Na Rádio


As grandes editoras multinacionais discográficas dividem a música na rádio; por um lado a bagatela, o vulgar, o fenómeno do tubo, visando o espectro jovem do público consumista e, por outro lado, a música de arte ou a experimental, a culta, ou simplesmente aquela conotada como diferente, visando uma faixa restrita do auditório. Mesmo as rádios emissoras independentes, ou «alternativas», ou «livres», na impossibilidade económica de apoiarem a criação musical isenta do estigma do estereotipo e da estandardização ou do modernismo académico, são induzidas ao jogo concorrencial com a agravante de terem de suportar leis de consumo impostas pelas multinacionais do disco: identificando-se como signo de independência ou diferença os produtos economicamente pouco significativos das editoras ditas «independentes» tornam-se produtos residuais, despojos, ou restos que ficam dispensados pela procura e considerados disponíveis pela indústria do disco, muitas vezes com o nome de «música de prestígio», já que o lucro não justifica investimentos publicitários.
A rádio porém aponta para uma contradição: reforçando a alienação do consumismo (dos jovens compram de acordo com o efémero da moda «pop») o auditor mais consciente procura adquirir o disco que não pode ouvir na rádio.
in suplemento Manifesto
(Rui Eduardo Paes?)










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