25.7.15

Memorabilia: Revistas / Magazines / Fanzines (110) - Monitor #47


Monitor
Nº 47

Ano V
Julho de 98
III série

24 páginas - p/b - A5 landscape, papel fino tipo jornal

Assinaturas - 12 números - 2000$00


Editores
Rui Eduardo Paes
Paulo Somsen
Colaboradores neste número
Vasco Durão
Gonçalo Falcão
Jorge Mantas
Carlos B. Mendes
José António Moura
Pedro Santos
Jorge Saraiva

Arquitectura Paisagista
O ruído como matéria em bruto para uma nova música

por Jorge Mantas

Merzbow - «Scumtron» [CD Blast First, 1997]
Merzbow / Gore Beyond Necropsy - «Rectal Anarchy» [CD Release, 1997]
Mika Vainio - «Onko» [CD Touch, 1997]
Vários Artistas - «Antiphony: Interpretations Of Disinformation» [2CD Ash Internationl, 1997]
Vários Artistas - «Chiky(u)u» [CD Ash Internationl, 1997]
Ryoji Ikeda «+/-» [CD Touch, 1996]
Rehberg & Bauer - «Fasst» [CD Touch, 1997]
Vários Artistas - «Tulpas: Interpretations Of RLW» [5CD Selektion, 1997]
RLW - «Revue Et Corrigé» [CD Trente Oiseaux, 1995]


Não deixa de ser curioso como esse estranho elemento desestabilizador, adiante designado por ruído, tem funcionado como base musical de alguns dos mais surpreendentes e cativantes discos que ultimamente me
chegaram aos ouvidos. Uma sensibilidade auditiva mais apurada permite aos novos escultores sónicos integrar quase todos os barulhos do quotidiano (urbano / industrial / natural) num contexto de arte musical.
Quando o elegante silêncio (recordemos: veludo por fora, pesadelo por dentro) é perturbado, surge o ruído (o interior do silêncio): nasce do silêncio, tende para o silêncio, como uma entidade orgânica que escorre
secretamente na sombra da abstracção. O que se procura não é apenas a desconstrução musical (ou, se quisermos, uma redefinição radical do conceito de música) mas sim a busca da verdade e da pureza original
do som, sem olhar a qualquer tipo de concessão comercial ou cultural. É reconfortante concluir acerca da crescente disponibilidade de certas franjas do público consumidor mais esclarecido para este importante
género de experiências sensoriais, o que tem justificado o aparecimento de dezenas de editoras especializadas nas sonoridades noise: Alchemy, alien 8, Anomalous, Old Cafe Europa, Charnel Music, Complacency, Mego, Trente Oiseaux, Cheeses International, E(r)ostrate, Selektion, Release, Touch, Ash International, V2, VHF, Streamline... Eminências como Merzbow, Aube, Oval, Scanner, Bernard Günter, Ralf Wehowsky, Thomas Köner, Alan Lamb, Francisco López, Darrin Verhagen, François Tétaz, Christoph Charles, Masonna, K2, MSRR, Panjerk, Incapacitants, third Organ, Solmania, Pica, Haters, Macronympha, Crawl Unit, Daniel Menche, Namanax, entre outros artistas, abandonaram o conceito de ambientalismo enclausurado em igrejas, cavernas, criptas e matadouros industriais introduzido no início da década de 80 por Lustmord, optando antes por um abstraccionismo disfuncional de baixo índice de musicalidade.




Nesta óptica, já não faz sentido perguntarmos como encontrou Lamb nos fios telefónicos do deserto australiano a música das músicas ou porque encerra Merzbow no seu som uma poderosa carga erótica (a resvalar para a pornografia sadomasoquista: cf «Music For Bondage Perfomance» vol. 1/2). A economia de materiais optimiza muitas vezes a complexidade das estruturas de som geradas - como na Teoria do Caos,
pequenas entradas no sistema originam grandes resultados, por intermédio de uma misteriosa «black box», a operar nos limites do equilíbrio instável mas cujo conteúdo nunca conheceremos. No ruído enquanto arte
musical, o minimalismo e o maximalismo coexistem num só corpo, massa sonora construída por texturas e relevo (refere-se a superfícies rugosas, imperfeitas) que subitamente descreve inesperados cromatismos
tímbricos, raramente aproximando-se de um conceito musicalmente reconhecível. O diversificado conjunto de referências estéticas permite constantes rupturas, sobressaltos, ocasionais fragmentos de
contemplação abismal, reconfigurações de edifícios sónicos avassaladores.
«Scumtron», disco de remisturas de temas de Merzbow, apresenta-se-nos com um variado leque de interessantes propostas que, antes de mais, tem a virtude de nos mostrar como os grandes nomes do
experimentalismo contemporâneo abordam a música de outro grande expoente musical. Destaque imediato para os escandinavos Panasonic (escolheram o tema «Elephant Memory») que, através do seu techno
minimalista, mostram a transformação de ruído puro numa fria batida analógica sobreposta a um extenso manto de acontecimentos ruidosos.



Também Bernard Günter confirma o seu talento, já demonstrado em vários discos indefiníveis: a criação de ciclos temporais em continuum possibilita que o som - quase a um nível imperceptível ao ouvido humano:
fascinantes eventos em miniatura envolvidos num ambiente austero - apareça lentamente, apresentando-se, mudando, interagindo com outros sons, repetindo-se em diferentes configurações e finalmente
desaparecendo. Em «Music For Bondage Perfomance», tema escolhido pelo alemão, fica definitivamente instalada a sensação de perda de noção espaço-temporal do ouvinte. O naipe de artistas fica completo com
Jim O'Rourke (assaltos bruscos mais fortes do que é habitual no seu trabalho). Rehberg & Bauer (exploração nos limites dos sons agudos), Autechre (techno mais declarada) e Russell Haswell. Pelo meio, há ainda tempo para escutar duas faixas inéditas do próprio Masami Akita, mais terrorismo sónico brutal.
Brutal seria também a palavra certa para descrever «Rectal Anarchy», uma insana colaboração entre Merzbow e o grupo grindcore / punk / noise japonês Gore Beyond Necropsy. Como é habitual neste tipo de registo, os níveis exageradamente elevados de gravação, tornam os 31 temas dificilmente diferenciáveis entre si. Ondas massivas de ruído branco, gritos, grunhidos guturais, frequências abrasivas, guitarras
afundadas. A celebração abusiva da pura anarquia, disseminação do caos e da subversão psico-sexual até níveis próximos do humanamente insuportável. «Pussy Poking Disorder Chaos Anarchy Rectal Anarchy»,
«Tits 4 Chaos Rectal anarchy», «Release From Agony State Of Procession Rectal Anarchy», «Morbid Shit Confusion Anarchy Violent Rectal Anarchy», «Manta Size Shit Body Pollution Hate Rectal Anarchy», «Love
Me Suicidal Tendencies Rectal Anarchy» são apenas alguns dos títulos que poderão dar uma ideia daquilo a que me refiro. Mais um clássico...
Algo distantes dos exageros nipónicos estão Rehberg & Bauer; Ramon Bauer (também General Electric) e Peter Rehberg, ambos militantes activos da editora vienense Mego. «Fast», o mais recente registo do duo
para a britânica Touch (gravado em 8 bit, entre Janeiro e Agosto de 1996, em vários fins-de-semana e horas pós-laborais), representa uma corrosiva fábula em forma de som sobre a dependência humana da moderna tecnologia.
Como os próprios músicos indicam, «trata-se de injectar erro humano e irracionalidade no processo criativo da chamada "música feita por máquinas"». todas as fontes originais foram obtidas de erros humanos e
falhas tecnológicas (a dupla utiliza apenas, como instrumentação, um duplo deck de CD e um powerbook Mac): mais do que a óptima intenção teórica, os resultados obtidos revelam-se recompensadores. Avarias,
vírus, loops digitais infestados de um contagiante sentido rítmico (não demasiado evidente), texturas variadas, ruído ocasionalmente processado, dissolvido, distorcido até conseguir explorar satisfatoriamente a
imperfeição digital das supostas máquinas perfeitas (no tema «Supra Zwei 1-12» é possível escutar o equivalente digital do disco analógico riscado). Esta desconfortável sinfonia de erros poderia muito bem
representar o futuro da música industrial.
Mika Vainio, mentor do excelente projecto finlandês Panasonic, editou também na Touch o primeiro disco a solo, enveredando por uma veia marcadamente ambientalista mas não menos interessante. O irrepreensível
design gráfico da embalagem digipak (da autoria de Jon Wozencroft, músico e designer responsável por capas de discos da Touch e Sub Rosa, entre outras editoras) acompanha música da mais elevada qualidade.
Durante os quatro temas que compõem «Onko» aquilo que se pode ouvir é uma apurada sensibilidade experimentalista que fervilha no corpo e ressoa no cérebro do ouvinte. O tema título foi utilizado em 1996 como instalação sonora para um acontecimento artístico na Holanda. Se a electricidade fizesse barulho ao circular nos fios, possivelmente soaria assim...
O japonês experimentalista Ryoji Ikeda apresenta, provavelmente, o disco mais refinado e contido do lote em análise. «+/-» é uma invulgar abordagem científica que investiga em profundidade a correlação
estabelecida entre a linguagem binária de pulsações e a percepção do som. Composto por duas secções onde os extremos, inevitavelmente, se atraem, Ikeda desenha através das suas composições digitais um
ambientalismo estartosférico próximo daquilo que poderia designar-se por estado larvar semi-consciente. Na primeira parte - «Headphonics» - são construídas pulsações minimais, pequenos ritmos e frequências
perturbantes em constante mutação. A segunda peça, em seis partes, é dirigida para aspectos multidimensionais da batida mecãnica. A curiosa particularidade de «+/-» é a de que a qualidade de audição é determinada pela posição do ouvinte em relação às colunas de som, para além de ser possível experimentar uma diferença significativa entre a audição via colunas ou através de auscultadores.
Por outro lado, a faixa que encerra o disco apresenta um sinal sonoro de alta frequência, apenas perceptível quando desaparece.
A música do universo cósmico é o que nos propõe Joe C. Banks no seu projecto Disinformation. Um fascínio acumulado pelas mais inesperadas fontes sonoras: tempestades solares ou magnéticas, auroras boreais, chuvas de meteoritos, todo o tipo de perturbações e modificações electromagnéticas da ionosfera. Exploração profunda de uma vasta galeria de ultra-baixas frequências VLF ou ELF, captadas nas zonas mais obscuras do espectro rádio. Devidamente afastada qualquer possibilidade de musicalidade, o projecto hertziano Disinformation desconfigura um esoterismo sonoro perdido entre a arte e a ciência. O disco compilatório «Antiphony» (embalado numa carteira de plástico com postais ilustrados) surge como um conjunto de interpretações psicoacústicas do trabalho do radionauta Joe Banks, da autoria de alguns dos mais conceituados músicos pós-industriais: Bruce Gilbert (Wire), Chris Carter e Cosey Fanni Tutti (Throbbing Gristle), Mark Van Hoen (Locust), S.E.T.I., Zbigniew Karkowski (The Hafler Trio), John Duncan, Atom Heart, M. Behrens, People Like Us, Kapotte Muziek, RLW, entre outros. Ao longo dos mais de 120 minutos de duração de «Antiphony» (antifonia significa: 1 - canto antifonário de uma composição musical por dois coros; 2 - qualquer efeito musical ou sonoro que responde ou ecoa a aoutro), são geradas atmosferas que evoluem em tonalidades amorfas, fantásticas peças monolíticas apropriadas para excursões nocturnas em regime onírico. Os discos «Ghost Shells», «R&D» e «Stargate» (todos editados na Ash Internatinal), servem de ponto de partida para os convidados construírem pacientes analgésicos intergalácticos onde o ruído assume uma multiplicidade de significados, preferencialmente encarados como factor informativo e não tanto como entretenimento.
Ainda sem sairmos da essencial e hiper-selectiva Ash International, temos «Chiky(u)u» (designação japonesa para «Mãe Natureza»), compilação com artistas japoneses que representa uma aproximação bastante subtil à filosofia Zen e à arte da ressonância microtonal. A gravação ambiental de sons que ocorrem naturalmente indica-nos que estamos perante uma obra de pura topografia musical de elevado grau orgãnico: todas as peças são baseadas nos sons da natureza, electro-acusticamente processados, amplificados e reconfigurados. Terramotos, ventos ciclónicos, pedras no fundo de rios com eléctrodos incorporados, tempestades de areia, frequências de cristal, campos magnéticos, grutas e minas abandonadas são algumas das matérias-primas de um disco que não foi gravado para nos sentarmos no sofá e ouvirmos, devendo antes ser encarado como algo orgânico, um ser vivo plantado no leitor de CD, crescendo durante um longo período.
Por entre os nomes mais habituais - MSBR, Aube, Koji Marutani - aparecem ilustres desconhecidos: Hatohan, Utah Kawasaki, Akira Yamamichi, Toru Yamanaka, Tamaru, Tak++. De salientar ainda que «Chiky(u)u» é o primeiro de três discos, uma colecção importante de que também fazem parte «Scatter» (exclusivamente com artistas norte-americanos) e «Decay» (com músicos europeus).
«Bodhisattva é a base para inúmeras formas mágicas... Ele pode, ao mesmo tempo, mostrar um fantasma (tulpa) dele próprio em milhares de milhões de mundos... Não existe limite para o seu poder de criação de
fantasmas. O poder de produzir formações mágicas, tulkus, ou menos materializadas e duradouras tulpas, no entanto, pertence exclusivamente a tais seres místicos. Todo o humano... pode ser possuído por ele.»
[Alexandra David-Neel: With Mystics And Magicians in Tibet, Penguin 1936]. Na difícil tarefa que constitui a análise de qualquer disco de Ralf Wehowsky, aliás RLW, gostaria de pegar nas palavras de Bruce Russel
no texto de abertura de «Tulpas», ao considerar RLW um artista que atingiu tal estado de iluminação que já não necessita de produzir o seu próprio trabalho, antes produzindo um exército de fantasmas que o façam
por si. A função do tulpa seria precisamente levar outros seres à iluminação, após o que se procederia à sua desmaterialização. Metáforas à parte, «Tulpas», o imenso disco, regista em cinco CDs o trabalho de 50
dos mais conceituados músicos experimentalistas, que interpretam, reformulam e reestruturam a enigmática obra de RLW. Diria eu que constitui um incontornável documento de música electro-acústica (atrevo-me a
defender mesmo que se trata de um marco dificilmente ultrapassável, um dos registos mais importantes de sempre de música criativa), não só pelas quase seis horas de submersão sónica num universo estranho e
infinito (vantagens de um hermetismo sem necessidade de ser extrapolado cá para fora) mas também pelo rigor estético de uma embalagem de grande qualidade, formato livro pequeno, com enriquecedoras
participações através de textos e imagens dos artistas intervenientes. Em relação ao domínio terrestre, «Tulpas» pode funcionar como música estrangeira, ainda que de muito difícil digestão, porque resulta mais
facilmente adaptável a paisagens alienígenas não configuráveis pela mente humana. Durante alguns minutos, cada um dos 50 artistas que fazem parte deste exército consegue tornar-se tulpa/fantasma de RLW. Uma
espécie de possessão temporária em que uma certa projecção psíquica consegue fazer com que cada pessoa se torne em RLW, de uma forma subjectiva (sensação real de transcendência). Neste estádio, será mais acessível a emulação do trabalho musical de RLW, validando a questão da tentativa de reprodução do trabalho de outros. Num âmbito próximo, encontramos «Revue Et Corrigé» também de RLW. Aqui trata-se de adaptar uma obra demasiadamente datada com as insuficiências técnicas de equipamento e do suporte vinil, com as coordenadas que uma actualização tecnológica permite, sem perder ou camuflar o espírito
artístico original que primitivamente assistiu à sua concepção. Originalmente editado pela Selektion em 1986 no LP «Nichts Niemand Nirgends Nie!», ainda sob a designação dos míticos P16.D4 (formação da qual
fazia parte Ralf Wehowsky e Achim Wollscheid), o material surge agora com toda a qualidade devida e possível, desde o ponto de vista da actualidade. «Revu Et Corrigé» v~e a luz do dia pela mão da Trente Oiseaux, a editora de Bernard Günter que, conjuntamente com Jim O'Rourke e o próprio RLW, produz e assiste tecnicamente o disco. Musicalmente mais contido e linear que «Tulpas», o disco é constituído por estilhaços de objectos cortantes, sufocantes, ruídos não identificáveis, que caem do céu indefinido para logo de seguida ferirem os corpos anónimos que circulam e sangram. Depois de uma leitura teórica, que não se pretende exaustiva, importa ouvir a música realmente criativa em vias de excepção... sem medo de sermos salpicados pelo sangue da transgressão, próprio das minorias éticas em estado terminal.








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