28.7.15

Memorabilia: Revistas / Magazines / Fanzines (113) - Monitor #50


Monitor
Nº 50

Ano V
Outubro/Novembro de 98
III série

24 páginas - p/b - A5 landscape, papel fino tipo jornal

Assinaturas - 12 números - 2000$00


Editores
Rui Eduardo Paes
Paulo Somsen
Colaboradores neste número
Victor Afonso
Gonçalo Falcão
Jorge Saraiva

Eliane Radigue - «Trilogie de la Mort» [3xCD XI Records, 1998]

Annea Lockwood & Ruth Anderson - «Sinopah» [CD XI Records, 1998]


Ainda que a nós, europeus, estas distinções sexistas nos façam confusão, a verdade é que os norte-americanos levam-nas muito a sério, uns porque as acham «politicamente correctas», outros (ou melhor, outras) porque entendem a afirmação criativa das mulheres como uma vitória feminista contra a dominação masculina, pensando no plural e não na singularidade artística de cada uma. Na Europa, mãe dos princípios igualitários, a música de homens e mulheres é publicada consoante a sua pertinência e sem outros juízos de valor à mistura, já bastando que haja mais compositores e instrumentistas do sexo masculino para haver desiguladade. Será esse o muito americano prurido, inevitavelmente, das duas últimas edições da nova-iorquina Experimental Intermedia Foundation, uma assinada por Eliane Radigue, a outra por Annea Lockwood e Ruth Anderson. Se o responsável desta etiqueta, Phil Niblock, achou por bem ser socialmente «conveniente» na altura de lançar novos títulos (há mais de dois anos que não saía nada com o selo XI Records), então ainda bem que o fez, porque se trata de grande música aquela que encontramos aqui.
À partida, Radigue não teria nada a ver com estas questões, porque é francesa. Mas tem, na medida em que os americanos acham que o que é bom para eles é bom para todos os demais. No caso em apreço, não os critico. Oito anos levou a autora de «Trilogie de la Mort» a completá-la - «Kyema», a primeira parte, já tinha sido lançada pela mesma editora, totalmente inéditas são as que compõem os discos dois e tr~es deste triplo álbum, «Kailasha» e «Koumé» respectivamente.
A fonte de inspiração é o Livro dos Mortos Tibetano, designadamente os textos de Bardo-Thodol sobre os seis estados intermédios que constituem a «continuidade existencial do ser», indo da morte para a vida e inversamente, numa viagem cíclica que é muito bem ilustrada pelos «drones» e percursos espiralados da música que a budista Eliane Radigue, crente na trasnmigração das almas, constrói com recurso exclusivo a sintetizadores analógicos. Outro factor que contribuiu para esta obra de fôlego que ficará como a mais importante da sua carreira, apesar de pessoalmente, preferir «Mila's Journey Inspired By A Dream» e o modo como homenageia Milarepa, mestre tibetano do século XI: a morte do seu filho.
Nada há de gótico ou deprimente neste trabalho. A música é suspensiva e quase hipnótica, fluindo com uma leveza que parece constantemente desmentida pelo carácter orgâncio dos sons criados por síntese, o que é apenas um de vários paradoxos. Outro é a impressão de simplicidade que esta trilogia, na verdade extremamente complexa na forma como se estrutura, transmite ao seu auditor. Nada obscura, também, é «World Rhythms», a composição que abre «Sinopah» com assinatura da neo-zelandesa radicada nos EUA Annea Lockwood, feita a partir dos sons de erupções vulcânicas, terramotos, ondas radiofónicas e géisers, entre outros. É intenção da autora chamar-nos a atenção para a «manifestação física de energias que moldam o nosso ambiente e que nos moldam a nós próprios, energias de que não estamos conscientes mas que nos influenciam fortemente e interagem com os ritmos dos nossos corpos».
Depois do pouco entusiasmante «The Sound Map of the Hudson River», esta peça concretista, ainda que acústica (as manipulações tecnológicas limitam-se quase só a baixar ou subir frequ~encias e a montar materiais de diferente proveniência), é bem o exemplo de que é possível fazer música com a nossa paisagem sonora natural.
Outra via bem diferente, ainda que nos mesmos domínios da «sound art», escolheu Ruth Anderson com o seu «I Come Out of Your Sleep», seguindo a tradição da poesia fonética que vai de Kurt Schwitters a Jackson MacLow. A peça é baseada nas vogais do poema «Little Lobelia» de Louise Bogan, vogais essas que são murmuradas e alongadas de modo a transformarem-se no que poderia chamar de fantasmas tonais, fragmentos de melodia que, encadeados, têm curiosos efeitos ao nível da percepção auditiva. Parece estranha, à primeira abordagem, mas depressa nos prende devido à «humanidade» emprestada pelas respirações e pelo sopro «subterrâneos» a estes sons que julgaríamos electrónicos mas não o são. Se por aí houver alguém que ainda acredita na possibilidade de se poder distinguir uma música indubitavelmente feminina e quiser saber se estamos perante dois exemplos disso, só tenho uma resposta: «Trilogie de la Mort» e «Sinopah» podiam ter saído da imaginação dos homens.
[REP] - Rui Eduardo Paes









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