Liquidação Total
Nº 0 - Agosto
60 esc
28 páginas a p/b
Índice
Lemmy, A Maldição do Hard - 3
Esoterik Satie - 6
Para Lá Da Estrada - 12
Sic Transit Gloria Pop - 14
Era Uma Vez (Para a Sara) - 16
Faces da Barbárie - 20
De Memória - 22
Palavras Novas Para Uma Literatura Secular - 24
Uivar À Lua - 26
Editorial
LIQUIDAÇÃO TOTAL. A parcialidade é ingénua e os movimentos que em torno da literatura se dissolvem em verborreias eternas, mais não são do que excrementos visíveis aos olhos de quem pode sexualmente profanar a eternidade do verbo e da qualidade de estar cá.
LIQUIDAÇÃO porque a morte mais não é do que a existência da literatura jornalística nacional - a tonalidade é, sem precisosismo, a finalidade última de dor de estar "Graffitado" numa das mais porcas paredes da capital onde o jornal se fixa sem memória em escadas sonolentas e impressoras sem sentido único que avançam e recuam como quem se deita com a mais preciosa das prostitutas.
O nosso império não é pretendido. A a firmação de uma vaga mais não é doq ue um sentimento próprio e a definição de uma LIQUIDAÇÃO TOTAL.
LIQUIDAÇÃO TOTAL é uma publicação periódica.
Coordenação de Edição: FERNANDO ALMEIDA SOBRAL e NUNO GARCIA LOPES
Coordenação Gráfica: RUI BRAZUNA (agradecimentos especiais a F. PERA)
COLABORADORES: ADOLFO M. DE MACEDO, AMÉLIA CABAÇA, ANTÓNIO DUARTE DE ALMEIDA, ARLINDO PINTO, FERNANDO SOBRAL, HELENA MORAIS, JOSÉ FAÍSCA, JORGE MARTINS, NUNO G. LOPES, RUI BRAZUNA, VASCO FERNANDES.
LIQUIDAÇÃO TOTAL é uma publicação periódica.
Propriedade do Grupo Lisboeta de Projectos Alternativos (Galpa)
Rua de S. Marçal, 48 2º-Dto. 1200 Lisboa
Sic Transit Gloria Pop
Toda a gente está convencida que com três guitarras, duas ideias e um nome imbecil se forma uma banda. A ideia não é exactamente original mas também não nos interessa aqui escrutinar a percentagem de corrupção que vai nos ouvidos dos músicos. Às vezes passamos semanas a fio - uma eternidade - a divagar sobre os acordes que convidam o corpo à dança e a alma à salvação. E, no fundo, que fica de tudo isso, já que todas as bandas pop acabarão por se sumir. e delas nem o pó trará notícias.
Foi esse o mais importante cartão de visita do Punk: as bandas não são para durar. Só os hippies (e os seus aparentados, como os Dire Straits) ainda supõem que uma banda é para durar uma eternidade.
Às vezes, é certo, ficam canções que assobiam a história de uma década - ou menos. Mas hoje chegámos a um beco - não há mais nada para ouvir (ou antes, há que buscar que novas coisas se devem ouvir). Como dizia Morrissey (dos Smiths) o problema é que existe um fosso de uma década entre cada boa canção.
Hoje apetece, cada vez menos, falar em LP's (um conceito sinfónico vulgarmente neo-hippie), mas sim em canções, em singles. São temas que tocam fundo a nossa alma e depois se esquecem, como se de antigos brinquedos se tratassem. E é essa a questão: o que é que a pop está fazendo de errado hoje em dia? Nada, é exactamente isso. E eles às vezes querem tão pouco: um carro novo e um disco no Top.
Mas nos confins do deserto há algumas bandas que vão desafiando o tempo: estão, claro, na Grã-Bretanha. A melhor banda da actualidade, as escocesas Shop Assistants (basta ouvir os singles 'All Day Long' e 'SafetyNet') são o exemplo da nova verdade no mundo da pop - o amadorismo. David das Shop Assistants diz: "Tentar fazer coisas diferentes? Nós estamos a fazer coisas diferentes". E a bela Alex não resiste: "Nós somos muito mais incompetentes que todos os outros". É isso o centro da nova dinâmica pop - a incompetência e o sangue na guelra. Porque é que falhou o Punk - porque os seus músicos se acomodaram à doce vida de serem Pop Stars. A acomodação é um sinal de doença hippie. A pop deve evitá-la.
As novas bandas (como as Shop Assistants ou os Soup Dragons - que todas as noites se ouvem no programa de John Peel na Radio 1) não recusam o comercialismo. Como dizia Nick Hobbe dos Shrubs (uma nova banda da ilha da pop): "Eu não sinto antagonismo face ao negócio musical - é grande negócio e não tenho pretensões que seja outra coisa", ou Ann das Shop Assistants: "grande parte das nossas canções são comerciais e pop".
A nova atitude das bandas é divertimento e infantilismo - não sabiam nada, tudo querem saber. Não tenho dúvidas: a música está hoje milhentas vezes melhor do que estava há 10 anos. Isso é bom? É sim, claro que é. É esse o melhor futuro para a pop? Óbvio. E se não for? Bem, então só nos resta chorar e deixar que uma outra verdade dignifique os nossos ouvidos.
Fernando A. Sobral
Era Uma Vez (Para A Sara)
Haverá canções de rock 'n' roll que eu te possa oferecer?
Era uma vez...
que ras; que és um óptimo estofo!
que és um óptimo sol queimando a auto-estrada!
um assassino que não se orgulha do seu crime,
mas de ter sido espezinhado!
Filho da puta de judeu!
Quando verterás lágrimas por mim?
quando?
quando conseguirás amar outro que não o teu povo?
Tão usurário nesse teu amor estéril.
Era uma vez...
Se tu e eu caminhássemos lestos ainda
apanharíamos a última canoa
ainda veríamos os últimos namorados
ainda veríamos as últimas lutas cruéis
no meio da ponte
mas tu queres
(maldita Sara, noutro dia, maldito judeu)
que passamos a noite
contando histórias bonitas um ao outro.
Se tu e eu chamássemos os países pelos nomes
iríamos sempre acordar no meio dum lago gelado
de jardim escuta! não seria a tua terra prometida aquela onde o Sol é mais forte
mais poderoso que a poeira e o vento
e houvesse vinho para os que passam
e pulseiras para os que dormem
e canções para as mãos decepadas...
as gloriosas galeras procuram este lago no fim da sua vida sem escravos no ventre
MAS LIVRES...
Era uma vez...
extra-texto, repito: tudo o que digo não é mediação para nada, não há metaalgo. A única coisa que se oculta por vezes é o esgoto debaixo da calçada. Não há agentes de revolução, não quero; esta é nesta, é esta, é.
Aliás, isto aqui nem trata disso.
Se eu digo
Poli vic vic allia
é só isso
imbecis
e a vontade foi só dizer isso
Era uma vez...
essa barba em que se envolve
o rosto turvo de rapaz espantado
com a beleza e a ligeireza da água, do sonho.
Como um cinzeiro quebrado e uma voz bonita
navegando num pântano azul
e não olvidar a receita:
se se matar um preto
um branco um
amarelo um
gato lilás uma
borboleta com pestanas
nunca os clamores
são tão indignados do que quando
se mata um judeu
o remorso da consciência anti-semita?
Atenção à desactualização histórica do texto!
a fogueira arde doce no acampamento
o turvo do calor adormece as pessoas
que umas sonham com amor
e outras com o suave local onde estão
Haverá canções de rock 'n' roll que eu te possa oferecer?
Sedalessa cobre os olhos.
Quase um golpe de peito aberto ao mar para ser génio!
Coração de papel que sangra, sol de lã com uns bonitos olhos
grandes!
Assassino por vezes!
Piedoso por vezes!
Esse que consegue o impossível pranto livre e sincero,
pelos outros, os que são de piedade.
A multidão existe para que o assassino não tenha vergonha de chorar!
Haverá canções de rock 'n' roll que eu te possa oferecer?
Sabes?
Jogava-se futebol nesse recreio em ruínas!
Tantos garotos, mudos, sem gritos ou algazarra.
Para eles havia um pianista de uma só mão.
Esse belo e puro pianista que assassinou tanto judeu!
essa fastidiosa lei de Talião
esse deus irado de um povo que se deixa maltratar.
Era uma vez...
esse mundo sem bosques de rios fecundos
onde são paridas as paredes azuis
com que construí meu leito
isso, aí,
aí bem perto da tua boca, oh povo perseguido,
aí bem perto do teu peito
o da ave-flauta, essa que encanta pontes
e os braços por baixo delas.
Os nazis eram loucos, mas não eram mesquinhos
e isso é grande
oh povo eternamente perseguido
vem seguir a linha deste dedo
vem seguir a linha desta mão
vem estilhaçá-la entre esta canção
entre essa dedicatória que te deixo
sobre o peito onde repousa um candeeiro morto
peito frio que abriga um rádio de seda
peito agonizante de sofrimento sujo
posso dedicar-te a canção?
Haverá canções de rock 'n' roll que eu te possa oferecer?
A imagem duma sujeira que sofre em surdina, não por sê-lo,
mas por não lhe ser permitido chorá-la.
Oh, ergue-te para além disso.
Chopin era nazi?
música perfeita para interlúdio num filme sobre a frieza do vosso assassinato
glória de leitos quebrados
glória de salas sulcadas por aves cremes
Era uma vez...
Sim, Sara! Soluçarei como a luz sobre o teu ombro, como o beijo
que ao te dar, me fez tremer. Como o teu repouso que se cobrirá, um
dia, de tanta flor, tanta flor...
Eu desejo que o holocausto não venha e eu te possa amar, ou ser guerreiro e regressar coberto de glória a teus braços, ou
ficar sempre aqui... Sara
um encontro entre tanto passado
um violoncelo esventrado por tanta
dentada furiosa
tanta harpa que as pedras encerram
tanat música, tanta traição.
Haverá canções de rock 'n' roll que eu te possa oferecer?
tanta fúria esquecida
tanta fúria esmagada
tanta paz que apodrece por dentro e que
cairá se alguma raiz, por algum véu, do seu
desejo se enunciar.
Quem compreende, viva
em dias de garganta douro, estilhaça
ou acaricia
ou olha muito devagar
olha para aquilo que eu poderia dedicar
Quem compreende, adora estrelas de cinema
belas
e imagina-as sózinhas
Quem compreende imagina
é impossível separar a imaginação da compreensão
Quem compreende, já parte
e em seu lugar, eu posso deixar uma gruta ou um rio subterrâneo
de água intensamente límpida
de água inimaginavelmente fria
Quem aceita, morre e tem destino
Quem aceita, não ama
Quem aceita, nunca mais possuirá olhos
em seu lugar virão alguns sóis
prestes a tornarem-se supernovas
sobre a imensidão do que poderias ver:
um trovador, se é que ainda será possível,
mesmo que impossível, ele pode existir, o
trovador
Quem aceita, é um prisioneiro
Quem compreende, nunca promete
nunca faz promessas
Olha! Sara! Eu sei, a Cabala é mágica!
Mas a magia é algo doente
tal como a poesia é um ser doente e epidémico, há que ignorá-lo
eu posso oferecer-te, em vez disso, um vestido,
ou arrancar-te os olhos:
Olha, Sara, deixa os brinquedos, deixa a poesia, deixa a vida, deixa
a morte, deixa tudo, para vires à janela e veres este céu coberto de tanta borboleta, de tanto aeroplano, de tanto insane acrobata,
eu gostaria de ser uma fotografia.
Sara?
Há alguma canção de rock 'n' roll que eu te possa oferecer?
Jorge Ferraz Martins
De Memória
Dia 10 JAN 86. Descemos à Ocarina para assistir ao espectáculo "Quinto Intádio" dos Ocaso Épico. Deparamos com uma sala ainda vazia, um palco atulhado de aparelhos, teclados, percussões e, ao fundo, uma bandeira nacional, murcha, emoldurada por dois candelabros que eram dois círculos enormes em cujos centros ardia uma vela. Enquanto a sala enchia projectavam-se na parede lateral diaporamas de cenas e caras nocturnas - noites de Lisboa, capital do Império.
A multidão entediada enchia já o espaço, rebanho sem chama na aventura programada do Bairro Alto, quando alguém, esfregando freneticamente a cara, louco enraivecido tentando dissipar o pesadelo, salta e pinoteia por entre ela, dando encontrões às pessoas, levando-as a perguntar o que era aquilo,, o que estava a acontecer, a interrogar-se. Dava-se início ao espectáculo.
A primeira parte intitulava-se "Contemplativa" - o Farinha subiu ao palco, sentou-se frente aos sintetizadores e demais teclados, e programou os primeiros ritmos enquanto bebericava uma mistela branca; o Zíngaro pegou no violino e sacou os primeiros acordes; de vez em quando Luís Casanova dedilhava uma guitarra portuguesa... A cave do Ocarina transformou-se num palácio de espelhos, fantasmas sobrevoando-nos as cabeças e aos ouvidos chegavam-nos ritmos e ruídos estranhos, discursos políticos ecoando ao infinito, repetidos até perderem a significação, orações religiosas a arrepiar-nos a infância, notas dissonantes, árabes da rádio marrocos com os seus cânticos prenhes de deserto e de sol...
De pés colados ao chão, peito parafora, barriga para dentro, os espíritos volteavam com a música - elevações ancestrais, símbolos pastando pelo palco; era o estremecimento das certezas...
Neste puzzle de sons e referências fazia-se o exorcismo do Império, a solene cerimónia do seu definitivo enterro, o espectáculo da sua ausência em que o observado era o espectador nos seus pensamentos mais íntimos - sessão espírita com o Farinha a servir de médium, num gozo não disfarçado de nos pôr a nu, o Farinha psicanalista exultava com a dúvida criada, quem é quem? quem v~e quem? Lisboa a espreitar da parede do seu stress quotidiano, barcos para o barreiro...
Reduzidos à auto-contemplação de ruína presente, o mal-estar instalado em tontura inebriante, salva-nos do abismo uma melodia do mais belo que nos fora dado a ouvir - seria aquele o canto das sereias? O descontentamento instalou-se entre o rebanho.
A segunda parte intitulava-se "Irónica" e começou com uma guitarra dum lirismo apaixonante interpretada por Luís Casanova. Depois aos músicos iniciais, Farinha e Zíngaro, junataram-se o baterista dos Sangue Civil e um elemento da primitiva formalção dos Ocaso Épico no acordeão e percussões várias, que em conjunto tocaram uma mão-cheia de temas trepidantes de ritmo e alegria. Afinal a glória do presente começa quando nos desamarramos da glória do passado - que ironia!
Com este concerto os Ocaso Épico provaram mais uma vez que são o grupo mais interessante e de lucidez mais exacerbada que nos é possível ver e ouvir em Portugal. Assim continuem.
Adolfo Morais de Macedo
Amélia Cabaça
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