Mondo Bizarre
Publicação Trimestral
Distribuição Gratuita
Nº 4 - Agosto de 2000
40 páginas a p/b
Destruição: O Punk Edificado Em Guy Debord
Parte I
Talvez o vocábulo que melhor define uma paternidade musical para o Punk seja "inextricável". Um timbre com essas qualidades, ainda que os Sex Pistols não tivessem sido forjados e lucrado as maiores condecorações do levante, em 1977., inevitavelmente ter-se-ia imposto através do legado sónico de grupos seminais como os New York Dolls, The Kinks, The Stooges, The Who, Velvet Underground, etc. No plano da contestação de cânones artísticos e da retórica política, porém, a genealogia do Punk tem outra ascendência. Uma análise que remonta às primeiras vanguardas europeias de revolta contra a arte no século XX, os chamados "ismos": Futurismo, Dadaísmo e o obscuro, mas de significação estética decisiva, Situacionismo.
Na Itália, o Futurismo de Fellipo Marinetti desencadeia uma nova vanguarda de revolução contra os moldes impostos pela intelligentsia produtora de arte no início do século, fundindo, num só expediente, a dinâmica pintura-poesia-música-moda política e arquitectura. Entusiastas da publicidade, o Primeiro Manifesto, redigido por Marinetti, em 1909, louvava a juventude, as máquinas, o movimento, a energia, a guerra e a velocidade. Um incotestável pendor juvenil, que muito remete ao Punk pela semelhança de atitudes e o ímpeto de reinventar.
O elemento destruir é a amálgama entre Punk e Futurismo; a dicotomia está no "o que" destruir exactamente. O Futurismo almejava dizimar modelos artísticos senis, imbuído em uma rearquitectura da arte. Um dos núcleos da rebelião Punk é a insubordinação contra os estandartes que levaram o Rock à monotonia e à opulência semi-erudita, e conflagraram, in loco, o seu acontecimento.
Se o Futurismo se tinha maravilhado com a possibilidade estética da guerra (algo "ruidoso, veloz e teatral"), antes de ela ocorrer, o Dadaísmo insurgiu-se em oposição às fascinações desta ordem. Ainda que partilhassem a mesma revolta a determinado tipo de realização artística, os dadístas estavam em dissonância face à definição de arte. Surgido em 1916, em Zurique, na Suiça, ao inverso do Futurismo, o Dadaísmo não era um movimento propriamente artístico, sendo mais atitude do que estilo.
Erigido por uma linhagem de "artistas" avessos ao trabalho, que acreditavam estar alienados muito além das belas-artes, dos quais os mais loquazes expoentes são o poeta Tristan Tzara e o artista plástico Marcel Duchamp, o Dadá agiu com actos subconscientes e formulações extravagantes nas investidas de sua plataforma utópica. A arte, segundo o credo dadaísta, é mera falsificação imposta pela sociedade burguesa, uma válvula de segurança moral idêntica ao trabalho.
Duchamp, o qual se declarava antiartista, dizia que "aqueles que olham é que fzem os quadros". O seu próprio caso é bastante elucidativo nesse sentido. A contribuição de Duchamp para a dessacralização da aura de génio ostentada pelos artistas, uma reminiscência herdada do romantismo, ajudou a solucionar o enigma fantástico do átimo criativo. Ao utilizar em obras objectos manufacturados, modificados ou não, Duchamp inaugura os ready-made. A peça Fontaine, de sua autoria, um mictório elevado ao estatuto de arte, é exemplo dessa possibilidade.
Embora o street punk londrino tenha origens não-intelectuais, absorvidas de ferozes slogans de claques de futebol, como o Streetford End of Manchester United ("Nós Odiamos os Humanos!" era o grito de guerra entoado) e a literatura skinhead de Richard Allen, alguns protopunks politizados, oriundos das academias de arte britânicas, como os membros da banda The Clash e o empresário Malcolm McLaren, posteriormente retomaram doutrinas futuristas e dadaístas. A absorção do conteúdo anarquista das duas escolas, um dia vanguardas, talvez tenha ocorrido justamente pelo carácter monolítico dessas instituições de ensino. Nos anos sessenta, McLaren era estudante da Croydon Art Scholl, onde se tornou colega de Jamie Reid, futuro designer dos Sex Pistols que, entre outros garfismos, foi responsável pela capa do single anti-jubileu "God Save The Queen". "Eu aprendi política e entendi o mundo através da história da arte", rejubilava-se McLaren.
A temática antiarte, antilaboral dos dadístas é retomada de forma mais contundente na década de 50, em França, pela Internacional Situacionista, sob a luz de Guy Debord. O termo "situacionismo", que numa significação estrita remete a posições políticas reacionárias, conforme o panfleto número 9 da Internacional Situacionista, de 9 de Agosto de 1964, "é uma palavra que contém em si mesma a sua própria crítica; uma actividade que pretende fazer as situações e não as examina em função de um valor explicativo ou qualquer outro". Foi desse filão intelectual, na não reconhecida secção inglesa situacionista, intitulada King Wob, que Malcolm McLaren usurparia ideias e emblemáticos slogans para a Blank Generation em 1977 outro lampejo alheio, vislumbrado pelo protótipo punkster Richard Hell. Elementos visuais da cultura underground novaiorquina, a comitiva Pop Art reunida em torno de Andy Warhol na Factory e a banda New York Dolls, tiveram assimilação de natureza distinta nessa génese, assim como o extemporâneo crossover envolvendo Pop Music, Black Power, Motherfuckers, White Panthers e o grupo MC5. A filosofia professada por McLaren era mais ou menos a seguinte, "se não te apoderas das coisas que te rodeiam, só porque te servem de inspiração, és estúpido. O mundo é feito de plágios."
Guy Debrod, filósofo, agitador social, cineasta e autêntico misantropo de sua práxis, teve uma trajectória envolta em legítimos desastres do destino, o que torna a confrontação com Sid Vicious, baixista dos Sex Pistols, e o americano Larby Crash, vocalista do grupo The Germs (ambos mortos tragicamente em razão do Punk), uma extravagante coincidência. Autor da desdenhada obra "La Societé du Spectacle" (A Sociedade do Espectáculo), de 1967, mas de vital importância para as alas extremistas em Maio de 68, Debord viveu no auto-isolamento, sendo ignorado tanto pela imprensa quanto por lúmpen-intelectuais. Tal desprezo, talvez possa ser explicado pelo facto de ele mesmo se intitular "doutor em nada". Nunca frequentou bancos académicos, tão pouco abandonou as teorias que formulou. Retratos seus são raros e jamais concedeu uma entrevista sequer em toda a vida. Aumenta nele a mácula de maldito: o pai ter exaurido a fortuna da família, acumulada durante gerações, e ter sido implicado no assassinato do amigo e editor Gérard Lebovici, em 1984, em Paris, incidente que justifica como "uma emboscada não explicada".
Debord publicou "La Societé du Spectacle" com o objectivo de legar um apêndice teórico plausível aos situacionistas, até então ófãos de um, e obteve alguma repercussão nos métiers intelectuais e estudantis franceses. Através de uma aleatória compilação de conceitos de concisão aforística sobre a lógica de funcionamento do império mediático, o livro contém uma acurada análise acerca da moderna sociedade de consumo. O desdobramento de imagens manufacturadas, transmitidas no feitio de eventos reais palpáveis de política e cultura como substitutas da veemente acção criadora, é a principal insígnia situacionista contra a sociedade espectacular análoga à arte. Tal sociedade, no horizonte vislumbrado por Debord, fincada nos alicerces do espectáculo, é "o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem".
No artigo de 1989, "Comentários sobre a Sociedade do Espectáculo" (com dedicatória a Lebovici), Debord revela ter suprimido da "La Societé du Spectacle" inúmeras explanações relevantes. O intuito, segundo ele, foi privar os agentes do espectáculo de conhecerem detalhes sobre o organismo desta sociedade e gerar, deliberadamente, o ruído da desinformação. No mesmo ensaio, Debord acautela-se: "É preciso levar em consideração que, dessa elite que se vai interessar pelo texto, que metade é formada pelos que se esforçam para manter o sistema de dominação espectacular, e a outra metade por aqueles que se obstinam em agir em sentido oposto. Como devo levar em conta leitores muito atentos e de tendências diversas, é evidente que não posso falar com inteira liberdade. Devo ter cautela para não ensinar demais". Mas o proteccionismo de informação de Debord justifica-se, levando em conta que Malcolm McLaren certamente deveria ser um desses leitores bastante atentos.
O homem que "inventou o Punk", adepto da King Mob, abandonou a causa revolucionária situacionista e transformou a crítica anticapitalista e antiarte numa forma de encher os bolsos de dinheiro. A King Mob, na verdade, apesar da retórica situacionista, tinha a sua filiação noutros grupos. McLaren, por exemplo, vinha da cena freak anarquista em Notting Hill, oeste de Londres. "Não há limites à nossa total ausência de lei", promulgavam eles no panfleto impresso King Mob Echo.
Da King Mob, McLaren deu prosseguimento à farsa ao encampar frases de efeito da cartilha situacionista e aplicá-las aos Sex Pistols, dando-lhes semântica e alvos novos. "Fique Danado, Destrua!" (Get Pissed, Destroy!), de "Anarchy In the UK" (Anarquia no Reino Unido) (banida das rádios), ou "Sem Futuro!" (No Future!), da música homónima, epistemologicamente, muito traduzem o apocalipse situacionista da arte, a qual, para ser realizada, deve ser destruída. Debord e seu séquito, de qualquer maneira, não estavam muito interessados na representação da King Mob em solo britânico. Um comentário realizado na Internacional Situacionista 12 evidenciava a aversão dos debordistas à fracção britânica: "uma trupe chamada King Mob... passa-se, de maneira bastante errónea, por ligeiramente pró-situacionista".
Para Debord, o espectáculo é apenas o aspecto mais visível e superficial de uma verdadeira maquinaria de manipulação que fragmenta a vida quotidiana em imagens. Essa imagética, veiculada pelos mass media, induz os indivíduos a consumir, passivamente, tudo o que efectivamente lhes falta na vida real. Para Debord, o espectáculo é administrado pelo próprio espectáculo, uma entidade viva governando a sociedade. Esse fenómeno, fruto independente da sua cognição, é uma artimanha, espécie de conluio maligno engendrado pela sociedade capitalista, que tornaram a economia um fim e a alienação, subsidiada pelo espectáculo, uma forma de domínio. Debord critica até mesmo os metadebates realizados sobre o espectáculo, atribuindo-lhes o epíteto de "discussões vazias". As directrizes dessas discussões também são ditadas pelo espectáculo, a fim de não revelarem absolutamente nada sobre a sua pragmática.
Algumas teorizações envolvendo a Internacional Situacionista e o Punk, porém, estão inventariadas em análise de que se depreende um certo nonsense ao concatenar as duas unidades. O jornalista americano Greil Marcus, utilizando o método de livre associação no livro "Lipstick Traces" ("Traços de Baton"), de 1990, faz interligações genealógicas que culminam em factos referentes a ambos. Por exemplo: a semelhança fonética entre John of Leyden (pertencente à tradição do Livre Espírito das heresias medievais) e John Lydon (pseudónimo de Johnny Rotten, vocalista dos Sex Pistols), é encarada por Marcus como uma "releitura radical e extravagante da história". Marcus, entre outras considerações, postula que "a Internacional Situacionista foi uma bomba, que passou despercebida no seu tempo, e iria explodir décadas depois sob a forma de "Anarchy In the UK" e "Holyday In The Sun". O autor credita a McLaren a conexão entre os dois movimentos.
(Continua...)
Cristiano Bastos
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