22.4.17

Concerto Kraftwerk em Lisboa (IWT) - Abril de 2004 - mais Entrevista a Ralf Hutter


Blitz
6 Abril 2004

OLHÓS ROBÔ(S)

Kraftwerk, Coliseu dos Recreios (Lisboa), 2 de Abril



Texto: Catarina Sacramento
Foto: Rita Carmo

Apenas quatro focos iluminam as silhuetas em palco – quatro corpos idênticos, vestidos de negro, rígidos, cada um em frente do seu laptop. São eles Ralf Hütter, Florian Schneider, Emil Schult e Fritz Hilpert, formação actual dos Kraftwerk, mas a ideia é exactamente não saber que é quem; anular a identidade individual numa simulação robótica colectiva, concretizar o imaginário simbiótico entre o Homem e a máquina desenvolvido pela banda desde inícios de 70. O público, igualmente impávido (à parte das manifestações pontuais de emoção, autêntica, mas inibida pela não reacção intencional dos alvos de aplauso), não tira os olhos do palco.
Foi preciso esperar 30 anos por um concerto dos Kraftwerk em Portugal e as expectativas são mais que muitas. Felizmente, eles (cor)respondem com duas horas daquilo que lhes conferiu um estatuto pioneiro na história da música popular: os ritmos electro-qualquer-coisa, as vozes robóticas, o jogo de luzes e projecções de imagem e os clássicos absolutos da história da banda, que também são momentos-chave do séc. XX – tudo o que, em diferentes instantes presentes, constitui a ideia de futuro.
O tempo não fez dos Kraftwerk robôs da terceira idade e a prova é que esta histórica aparição em Lisboa não o foi apenas por ter revisitado temas incontornáveis, mas pela actualização rítmica a que os sujeitaram – reenquadrados em molduras house, tecno, breakbeat, hip hop (?) e crepitações várias, deixando mesmo a fronteira com o trance a escassos metros de distância -, sem, contudo, macular o espírito original. O segredo parece residir na exploração das mais diversas emoções por via electrónica sem nunca abandonar a experimentação. À medida que os temas se sucedem o apelo à dança acentua-se, em contraste absoluto com a postura hirta dos protagonistas: ambas são peças desta máquina criadora de sugestões e metáforas, alimentada pela aceleração até à meta de «Tour de France» (com a musculatura em evidência e a escalada da montanha a par com a escalada rítmica); pela invasão de comprimidos de todas as cores e feitios («Vitamin»); pela auto-estrada a aproximar locais até aí afastados (sons de buzinas, travagens a fundo e motas a passar a alta velocidade são integrados na melodia de «Autobahn»), pela memória do Moog a saltitar entre as teclas deliciosas de «The Model» e o cabelo armado das senhoras dos anos 40, pelas «Neon Lights» a piscar em fundo; ou ainda pela agressividade da voz que soletra Ra-di-o-Ac-ti-vi-ty como quem faz um inventário dos danos depois da catástrofe. E não tarda a partir da estação o «Trans-Europe Express», com toda a maquinaria de ruídos em movimento e a simbologia correspondente que as imagens tratam de fornecer.
Quinze minutos depois, fim da linha. Mas o público pede mais e uma voltinha e uma voz robótica (desta vez é amiga) abre o livro de matemática no capítulo «Numbers», «Computer World» e «Pocket Calculator» (num estilo de blips electro-tec-house). Mais dois regressos ao palco, com novos trajes verde fluorescente e «Elektro Kardiogramm» incluído, a terminar com a saída dos quatro, um a um, até ficar só o eco de «Musique Non-Stop» a preencher a atmosfera com solidão auto-referencial.
Ironia suprema seria mesmo «The Robots», no segundo encore: o Coliseu aplaude quatro robôs que surgem no lugar dos protagonistas e se movem, em gestos trôpegos, ao som da música pré-gravada. Um endeusamento proporcional à vontade de auto-anulação dos próprios autores...


RALF HUTTER, AQUELA MÁQUINA

P - Em vez da maquinaria antiga, os Kraftwerk levam agora para o palco computadores portáteis. Essa mudança é de alguma forma redutora do conceito geral dos espectáculos do grupo?
RH – Convertemos todo o material analógico para formato digital, mas o conceito é o mesmo. Até está mais perto da visão que tínhamos de um estúdio electrónico móvel, quando criámos o estúdio Kling Klang. Os nossos computadores estão todos ligados, sincronizados.
P – O facto de permanecerem quase imóveis em palco é uma forma de enfatizar a música e não aqueles que a fazem?
RH – Sim. Mas é sobretudo porque os computadores são muito sensíveis e exigem toda a nossa atenção e concentração. É um trabalho milimétrico.
P – O que sente quando os Kraftwerk são apontados como um marco decisivo na história da música popular? A presente digressão tem dado mostras da receptividade das novas gerações à música dos Kraftwerk?
RH – Absolutamente. É uma energia que recebemos e nos empurra para a frente, encorajando-nos a continuar. E as pessoas reconhecem mesmo as músicas e as pequenas alterações, captam as vibrações.
P – No último disco, Tour de France Soundtracks, a relação homem-máquina (abordada de difeentes formas nos álbuns anteriores) materializa-se na ideia de ciclismo. De que modo?
RH – Representa a simbiose perfeita entre o homem e a máquina, daí que seja um som mais circular. O Trans-Europe Express tinha aqueles sons metálicos, pesados, das engrenagens [dos comboios]. A bicicleta é um instrumento musical.
P – Mantém-se atento À música que se faz actualmente?
RH – Continuo a ouvir música, quando vou aos clubes. Mas a música vem de todo o lado: das máquinas, dos comboios, dos carros, da natureza. O bater do coração, a respiração... a minha maior influência é a vida diária.
P – Nos dias de hoje qualquer pessoa faz música sem sair do quarto, com um laptop. Essa banalização compromete a qualidade da música electrónica?
RH – Não, acho que a música está mais criativa. Antes era preciso trabalhar em laboratórios enormes, como aconteceu connosco nos anos 70. Por isso é que desenvolvemos o nosso próprio estúdio, despendemos imensa energia para criar a nossa primeira caixa de ritmos, depois os primeiros sintetizadores... O meu primeiro sintetizador custou o mesmo que o meu Volkswagen. Hoje os Instrumentos são cada vez mais acessíveis e isso é óptimo. Já não há limitações à criatividade, para compor, para concretizar o que temos em mente.
P – E o próximo disco de originais, já estão a trabalhar nele?
RH – Concluímos agora a digitalização do nosso catálogo. Juntámos os oitos álbuns numa caixa, em língua inglesa e alemã. Transformámos as cassetes antigas em formato digital, remasterizámo-las e o catálogo completo vai finalmente ser editado pela primeira vez, em todo o mundo. Daqui em diante estamos prontos para começar a trabalhar em novos temas. Este é apenas o início de uma nova fase digital.







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