Blitz
6 Abril 2004
OLHÓS ROBÔ(S)
Kraftwerk, Coliseu dos Recreios (Lisboa), 2 de Abril
Texto: Catarina Sacramento
Foto: Rita Carmo
Apenas quatro focos iluminam as silhuetas em palco –
quatro corpos idênticos, vestidos de negro, rígidos, cada um em frente do seu
laptop. São eles Ralf Hütter, Florian Schneider, Emil Schult e Fritz Hilpert,
formação actual dos Kraftwerk, mas a ideia é exactamente não saber que é quem;
anular a identidade individual numa simulação robótica colectiva, concretizar o
imaginário simbiótico entre o Homem e a máquina desenvolvido pela banda desde
inícios de 70. O público, igualmente impávido (à parte das manifestações
pontuais de emoção, autêntica, mas inibida pela não reacção intencional dos
alvos de aplauso), não tira os olhos do palco.
Foi preciso esperar 30 anos por um concerto dos Kraftwerk
em Portugal e as expectativas são mais que muitas. Felizmente, eles
(cor)respondem com duas horas daquilo que lhes conferiu um estatuto pioneiro na
história da música popular: os ritmos electro-qualquer-coisa, as vozes
robóticas, o jogo de luzes e projecções de imagem e os clássicos absolutos da
história da banda, que também são momentos-chave do séc. XX – tudo o que, em
diferentes instantes presentes, constitui a ideia de futuro.
O tempo não fez dos Kraftwerk robôs da terceira idade e a
prova é que esta histórica aparição em Lisboa não o foi apenas por ter
revisitado temas incontornáveis, mas pela actualização rítmica a que os
sujeitaram – reenquadrados em molduras house, tecno, breakbeat, hip hop (?) e crepitações
várias, deixando mesmo a fronteira com o trance a escassos metros de distância
-, sem, contudo, macular o espírito original. O segredo parece residir na
exploração das mais diversas emoções por via electrónica sem nunca abandonar a
experimentação. À medida que os temas se sucedem o apelo à dança acentua-se, em
contraste absoluto com a postura hirta dos protagonistas: ambas são peças desta
máquina criadora de sugestões e metáforas, alimentada pela aceleração até à
meta de «Tour de France» (com a musculatura em evidência e a escalada da
montanha a par com a escalada rítmica); pela invasão de comprimidos de todas as
cores e feitios («Vitamin»); pela auto-estrada a aproximar locais até aí
afastados (sons de buzinas, travagens a fundo e motas a passar a alta
velocidade são integrados na melodia de «Autobahn»), pela memória do Moog a
saltitar entre as teclas deliciosas de «The Model» e o cabelo armado das
senhoras dos anos 40, pelas «Neon Lights» a piscar em fundo; ou ainda pela
agressividade da voz que soletra Ra-di-o-Ac-ti-vi-ty como quem faz um
inventário dos danos depois da catástrofe. E não tarda a partir da estação o
«Trans-Europe Express», com toda a maquinaria de ruídos em movimento e a
simbologia correspondente que as imagens tratam de fornecer.
Quinze minutos depois, fim da linha. Mas o público pede
mais e uma voltinha e uma voz robótica (desta vez é amiga) abre o livro de
matemática no capítulo «Numbers», «Computer World» e «Pocket Calculator» (num
estilo de blips electro-tec-house). Mais dois regressos ao palco, com novos
trajes verde fluorescente e «Elektro Kardiogramm» incluído, a terminar com a
saída dos quatro, um a um, até ficar só o eco de «Musique Non-Stop» a preencher
a atmosfera com solidão auto-referencial.
Ironia suprema seria mesmo «The Robots», no segundo
encore: o Coliseu aplaude quatro robôs que surgem no lugar dos protagonistas e
se movem, em gestos trôpegos, ao som da música pré-gravada. Um endeusamento
proporcional à vontade de auto-anulação dos próprios autores...
RALF HUTTER, AQUELA MÁQUINA
P - Em vez da maquinaria antiga, os Kraftwerk levam agora
para o palco computadores portáteis. Essa mudança é de alguma forma redutora do
conceito geral dos espectáculos do grupo?
RH – Convertemos todo o material analógico para formato
digital, mas o conceito é o mesmo. Até está mais perto da visão que tínhamos de
um estúdio electrónico móvel, quando criámos o estúdio Kling Klang. Os nossos
computadores estão todos ligados, sincronizados.
P – O facto de permanecerem quase imóveis em palco é uma
forma de enfatizar a música e não aqueles que a fazem?
RH – Sim. Mas é sobretudo porque os computadores são
muito sensíveis e exigem toda a nossa atenção e concentração. É um trabalho
milimétrico.
P – O que sente quando os Kraftwerk são apontados como um
marco decisivo na história da música popular? A presente digressão tem dado
mostras da receptividade das novas gerações à música dos Kraftwerk?
RH – Absolutamente. É uma energia que recebemos e nos
empurra para a frente, encorajando-nos a continuar. E as pessoas reconhecem
mesmo as músicas e as pequenas alterações, captam as vibrações.
P – No último disco, Tour de France Soundtracks, a
relação homem-máquina (abordada de difeentes formas nos álbuns anteriores)
materializa-se na ideia de ciclismo. De que modo?
RH – Representa a simbiose perfeita entre o homem e a
máquina, daí que seja um som mais circular. O Trans-Europe Express tinha
aqueles sons metálicos, pesados, das engrenagens [dos comboios]. A bicicleta é
um instrumento musical.
P – Mantém-se atento À música que se faz actualmente?
RH – Continuo a ouvir música, quando vou aos clubes. Mas
a música vem de todo o lado: das máquinas, dos comboios, dos carros, da
natureza. O bater do coração, a respiração... a minha maior influência é a vida
diária.
P – Nos dias de hoje qualquer pessoa faz música sem sair
do quarto, com um laptop. Essa banalização compromete a qualidade da música
electrónica?
RH – Não, acho que a música está mais criativa. Antes era
preciso trabalhar em laboratórios enormes, como aconteceu connosco nos anos 70.
Por isso é que desenvolvemos o nosso próprio estúdio, despendemos imensa
energia para criar a nossa primeira caixa de ritmos, depois os primeiros
sintetizadores... O meu primeiro sintetizador custou o mesmo que o meu
Volkswagen. Hoje os Instrumentos são cada vez mais acessíveis e isso é óptimo.
Já não há limitações à criatividade, para compor, para concretizar o que temos
em mente.
P – E o próximo disco de originais, já estão a trabalhar
nele?
RH – Concluímos agora a digitalização do nosso catálogo.
Juntámos os oitos álbuns numa caixa, em língua inglesa e alemã. Transformámos
as cassetes antigas em formato digital, remasterizámo-las e o catálogo completo
vai finalmente ser editado pela primeira vez, em todo o mundo. Daqui em diante
estamos prontos para começar a trabalhar em novos temas. Este é apenas o início
de uma nova fase digital.
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