Público
Cultura
Terça-Feira, 17 de Maio de 2005
Morreu o crítico musical Fernando Magalhães
Fernando Magalhães, jornalista e crítico de música do
PÚBLICO, morreu anteontem em sua casa, no concelho de Loures, aos 50 anos, na
sequência de uma paragem cardíaca.
Nascido a 5 de Fevereiro de 1955, em Lisboa, licenciado
em Filosofia pela Universidade de Lisboa, Fernando Magalhães fazia crítica
musical no PÚBLICO desde a fundação do jornal (Março de 1990). Era ainda um
animador entusiasta de um site de discussão na Internet sobre música, o Fórum
Sons, e foi júri de vários concursos de atribuição de prémios de música, como o
Prémio José Afonso, da Câmara Municipal da Amadora, do qual fazia parte desde
1994.
Antes de integrar os quadros do jornal, colaborou com os
semanários Blitz e O Independente e foi professor de Filosofia em várias
escolas secundárias entre final dos anos 80 e início de 90, actividade da qual
falava regularmente com saudade. No final dos anos 80 teve um programa onde
divulgava música experimentalista na Rádio Universidade Tejo (RUT), ao mesmo
tempo que trabalhava na Contraverso, loja de discos que existia no Bairro Alto.
Como crítico musical Fernando Magalhães ajudou a dar
visibilidade à música rock dos anos 70, à música popular portuguesa, à
electrónica portuguesa, à world music, ao fado, à folk e ultimamente ao jazz.
Peter Hammill, o seu ídolo, Gaiteiros de Lisboa, Né Ladeiras, Nuno Rebelo, Nick
Drake, Nico, Carlos Paredes, Robert Fripp, Amália, Robert Wyatt, Diamanda
Galas, June Tabor, Brian Eno e Fátima Miranda eram alguns dos seus músicos de
eleição.
Fernando Magalhães tinha dois filhos, Sofia de 16 anos, e
João, de 12.
As datas do velório e funeral serão conhecidas hoje.
Vivo nas palavras
O Fernando pertencia, desde o início, à família que fez o
PÚBLICO nascer por entre resmungos e abraços. Ainda pertence, aliás. Trouxe até
nós o seu génio (nos dois sentidos), a sua arte de escrever, o seu conhecimento
vasto sobre as músicas que amava, a sua boa disposição temperada de ironia.
Quando ele começou a rarear na escrita – uma escrita que podia ser genial ou
desmesurada, mas nunca medíocre – esboçou-se diante de nós um vazio.
Porque ele revelava-se sobretudo nas palavras, perdia-se
nelas, perdia-se por elas: no jornal, nos suplementos, no universo transdimensional
da Internet. A 7 de Março de 1990, no número de estreia do VideoDiscos (pai e
avô dos posteriores PopRock, Sons e Y), o Fernando escrevia sobre Neil Young
mas também sobre a cantora indiana Najma ou sobre o panorama “confrangedor” das
videocassetes musicais (muito antes do agora banalizado DVD). Escrevia sobre o
que lhe interessava e sabia interessar-nos pelo que escrevia. Não são muitos os
que o conseguem e, por isso, nos temas onde era mestre, não terá verdadeiro
substituto. Na singularidade da sua escrita, viverá, sempre, a sua imagem
humana. E ele não desaparecerá enquanto ela durar.
NUNO PACHECO
Convicção filosófica
Se o Fernando escrevia sobre música era por convicção
filosófica. Era daí que ele vinha, era isso que o agarrava à música como expressão
superlativa da vida. Ele alcançou esse ponto (sem retorno?) em que se descobre
a transcendência, o para lá, a plenitude. Aprende-se, ou vislumbra-se nas
grandes narrativas, mas que está para além delas, uma experiência mística que
de modo algum cabe nos limites da... academia, ou sequer do quotidiano. Há
então que procurá-lo noutro lado, em dimensões mais próximas do sonho e da
fantasia e o Fernando reencontrou-a, ou melhor, reinventou-a onde menos se
poderia esperar: não na grande arte clássica, mas nas músicas populares e delas
decorrentes. Primeiro no rock conceptual e progressivo, depois na folk e
noutras músicas de raiz popular, finalmente no free jazz, num percurso de uma
coerência e originalidade raras no jornalismo musical português. Que é como
quem diz, fez carreira de filósofo escrevendo sobre artistas e idiomas
musicais, onde soube entrever a espiritualidade para além ou graças à conotação
popular, fazendo-nos do mesmo golpe ouvi-las de outro modo, dando-nos a
descobrir o barro místico em que se esculpiu alguma da mais inspirada música de
sempre. E também dizia muito mal, com a mesma clarividência e com um humor
devastador de toda a música demasiado medíocre, ou estritamente comercial. Para
ele não havia compromissos, nem sequer meios-termos, e esse radicalismo
frequentemente escandalizou e motivou veementes protestos. No final, podia
concordar-se ou não com as suas opiniões, mas uma coisa era segura: pouca gente
escrevia em Portugal sobre música de forma tão apaixonada, iluminada e visionária.
LUÍS MAIO
Fragmentos de textos no PÚBLICO
“As palavras, saídas da experiência ou arrancadas ao
inconsciente colectivo, que Hammill rompeu a golpes de uma introspecção
violenta, são arrebatadoras na exposição, por vezes trágica, do homem
apresentado na sua dimensão de divindade aprisionada. Pelo tempo, pela carne,
pelo pensamento, pelos outros, por si próprio.”
Sobre Peter Hammill, 19/06/92
“Os Pink Floyd da actualidade são do esterco mais fino e
sofisticado que há [...] Não chega a ser música. [...] O ácido esgotou a
validade. Lucy aposentou-se e faz tricô em pantufas frente à televisão.”
Sobre os Pink Floyd, 24/07/94
“Estados de alma que tanto exigem, para se fazerem ouvir,
do canto panfletário da Internacional Socialista, como se encolhem num
balbuciar triste e, por vezes, incoerente, de uma criança ferida. Ou de um
louco encarcerado na certeza das suas próprias convicções. De um poço como Rock
Bottom não se sai igual ao que se entrou.”
Sobre Robert Wyatt, 19/09/97
“A que dançou iluminada pelas fogueiras do flamenco e
separou a voz em dois no throat singing das altas montanhas da Mongólia. A que
meditou com os ragas indianos e fez soar os sinos num jardim da China. A que
sugou o sangue com um vampiro dos Balcãs e fez a corte ao amor, como o trovador
medieval. A que tem a voz das equilibristas e dos palhaços, dos animais e das
plantas.”
Sobre Fátima Miranda, 22/07/98
“Os subúrbios da capital inglesa na última década deste
século, com o cinzento do cimento polido pela chuva e a vida aprisionada nos
reflexos das poças de água das ruas.”
Sobre Richard Thompson, 10/09/99
“Amália possuía essa capacidade rara de se concentrar no
ponto exacto onde tudo conflui, se dilacera e floresce. O lugar da cruz.”
Sobre Amália, 07/10/99
“Meira Asher, como Diamanda Galas, é uma figura do
Inferno. Nela a Bíblia [...] transmuta-se num livro negro de pragas. Como
Diamanda Galas, a israelita profetiza a morte e o caos, revolvendo-se na
abordagem de temáticas como a sida, a masturbação feminina e o incesto. Mas
enquanto Galas encarcera a ópera, os blues e o gospel no quarto de lua do
Romantismo, Meira usa maquinaria electrónica pesada, desfaz-se na podridão e
clama que o Apocalipse é agora.”
Sobre Meira Asher, 29/09/00
“Metáfora da infiltração subterrânea, da vitória das
trevas sobre a luz, da noite sobre o dia, são obras-primas de pop electrónica,
loucura, método e paradoxo. E metem medo.”
Sobre os Residents, 28/09/01
“Ao escutarmos e, melhor ainda, ouvirmos O Mundo Segundo
Carlos Paredes sentimo-nos mais sãos e menos sós. Mas essa é a essência da
Saudade. Saudade do que somos.”
Sobre Carlos Paredes, 07/03/03
“A velha lua morreu ontem com a nova nos braços. June
Tabor traz a eternidade no seu canto. Curioso: a sua voz soa em An Echo of
Hooves menos grave. Como se tivesse subido um degrau das escadarias que
conduzem ao céu.”
Sobre June Tabor, 02/01/04
(DE ENTRE CENTENAS DE TEXTOS QUE FERNANDO MAGALHÃES
ASSINOU NO PÚBLICO AO LONGO DE 15 ANOS, ESTES FRAGMENTOS REFEREM-SE APENAS A
ALGUNS DOS MÚSICOS QUE OUVIU APAIXONADAMENTE E, NO CASO DOS PINK FLOYD, TAMBÉM
SOUBE DEMOLIR, QUANDO ENCONTROU RAZÕES PARA ISSO.)
leitores
excertos de mensagens colocadas, ontem, num fórum de
discussão da Internet em www.forumsons.com,
que Fernando Magalhães animava regularmente.
Graças ao Fernando tive a sorte de descobrir muita muita,
muita música nova – a sua lista dos melhores discos dos anos 80 acompanhou-me
durante anos a fio.
PEDRO SANTOS
[DISTRIBUIDORA FLUR]
Tinha pelo Fernando Magalhães enorme admiração. Adorava a
sua capacidade de ser corrosivo, fracturante e eficaz. Quando essas mesmas
características recaíam sobre um evento meu não conseguia disfarçar uma certa
irritação tal era o brilhantismo do seu texto.
VASCO SACRAMENTO
[SONS EM TRÂNSITO]
Sei que o primeiro texto que me marcou foi a reportagem
dele ao concerto-tributo a Feddie Mercury em Wembley. Uma prosa com um humor e
uma lata que me deixaram deliciado. Nunca mais perdi o rasto ao jornalista. JG
Era poético, delicado, cínico, corrosivo, delirante,
festivo, correndo o risco de ser incompreendido.
NUNO JORGE
Pelas imensas horas de prazer que tive a ler os seus
textos, críticas e sugestões (que tanta música me deu a conhecer, sobretudo nos
tempos loucos da faculdade) nunca o esquecerei.
FILIPE
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