DN - Diário de Notícias
09 Março 2002
Chamava-se Carlos Cordeiro, mas ficou por muitos
conhecido como Farinha Master, a voz e a alma dos Ocaso Épico. Morreu no
passado dia 17 de Fevereiro. E, sem querer fazer desta uma coluna de
necrologia, não podemos deixar de evocar «Muito Obrigado», um dos mais
interessantes e escandalosamente esquecidos dos álbuns portugueses da segunda
metade de 80. Um caso ímpar na história da família pop/rock lusitana.
Farinha Master era uma figura única, conhecida no eixo
dos acontecimentos da Lisboa «esclarecida» de meados de 80, figura sobretudo
regular nas melhores noites do Rock Rendez Vous. Tinha passado já pelos WC
quando lança as bases de um projecto que procura novas formas de explorar dados
«kitsch» em linguagens urbanas. Em busca de uma nova música «foleira», cria as
bases dos Ocaso Épico, colectivo musicalmente interventivo e esteticamente
desbragado pelo qual passaram nomes como os de Alberto Garci (baterista dos
Rádio Macau e Mler Ife Dada), Rui Fingers, Manuel Machado (Essa Entente) ou
Anabela Duarte (Mler Ife Dada).
De um desafio de Mário Guia (do Rock Rendez Vous), nasce
a proposta de gravação de um álbum, com edição garantida pela Dansa do Som, a
etiqueta ligada à mítica sala da Rua da Beneficência ao Rego.
Gravado «em prestações» (como se lê na capa interior)
entre 1987 e 88, o álbum representa uma das mais incríveis aventuras do
pop/rock português de então, num espaço que lança pistas tão díspares quanto
bases electropop, fraseados rítmicos beirões, teclas do melhor plástico-pop e
pontuais cenografias magrebinas (como em «Cortar Ou Cortar-se»)... Tudo isto
devidamente «arrumado» numa lógica quase conceptual que concentrou na face A do
vinil as canções do apregoado «neo-foleirismo» urbano e, na face B, três
suculentas fatias de curioso e cativante paisagismo ensaísta.
O disco é dominado por teias de programações, linhas
melódicas que nasceram de fragmentos e se foram juntando em momentos de ensaio
e erro... A ideia de experimentar terá certamente presidido a todos os
episódios de criação, conseguindo o disco um efeito de desafio à audição atenta
de cada um que, anos depois, se detenha atentamente frente aos muitos sons,
linhas e ideias que encerra. Nele participaram, além de Farinha Master, nomes
como os de Pedro Barrento (programações), Zé Nabo (baixo), Ricardo Camacho
(piano) e Rui Fingers (guitarra), entre outros.
Farinha Master e as suas palavras (sem travão nem filtro)
servem depois de lógica de unidade entre experiências lançadas em diversos
rumos estéticos. No todo, «Muito Obrigado» é um coeso manifesto de
versatilidade pop onde o «kitsch» deve ser entendido como mais que a mera
anedota para gargalhada imediata. O humor é franco e sólido, entendido
sobretudo como recurso de estilo numa linguagem que, mesmo tecnicamente
debilitada pelos recursos à sua disposição, não deixa de criar um pequeno
concentrado de ideias que cativaram um pequeno culto e garantiram aplausos a um
disco que, todavia, passou a Leste de muitas atenções.
Uma cassete, em 1989 («Desperdícios»), representou a
única sucessão registada de «Muito Obrigado», tendo o grupo desaparecido depois
de pontual actuação em 1993. Farinha formou, entretanto, os Angra do Budismo,
projecto através do qual gravou «Transformação», em 2001.
N.G.
OCASO ÉPICO
«Muito Obrigado»
Dansa do Som, 1988
Lado A: «Tinto If», «O Camelo», «Cafécucerto», «Da Beira
Baixa à Extrema-Dura»;
Lado B: «Adamastor», «Desoriental», «Cortar Ou
Cortar-se»
Produção: Zé Nabo e Mário Guia
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