3.6.22

A História Do Disco de Vinyl - "O Disco - 75 Anos Bem Conservados"


 Bom, agora metam-lhe mais 48 em cima...

O DISCO

 

75 ANOS BEM CONSERVADOS


 

Rezam as crónicas que de há muito tempo o homem se preocupa com a resolução do problema da conservação da sua voz e dos sons artificiais, com o sentido de os reproduzir quando e onde lhe apetecesse ou conviesse. É um desejo tão velho como o da pedra filosofal para os alquimistas ou o do voo para Ícaro: já dois séculos antes de Cristo, um conto chinês relatava que um imperador surdo-mudo recebera como presente de um dos seus súbditos uma pequena caixa, dentro da qual a sua voz estaria encerrada até ao dia em que, uma vez aberta por um processo muito engenhoso, lhe seria finalmente restituída a sua capacidade oratória. Muito mais recentemente, no século XVI, num dos muitos capítulos dos Feitos e Proezas do Famosíssimo Pantagruel, Rabelais volta a referir essa velha aspiração do homem: «… Quem me dera poder fazer conserva de umas palavrinhas da gorja dentro de óleo, como se faz com a neve e com o gelo…»

No século seguinte, em 1632, uma gazeta de Amsterdão publicava trechos de um diário de um capitão dos mares – o navegador Vosterlock – contando que, em paragens americanas, certas tribos índias comunicavam entre si, falando para «umas esponjas» que, espremidas depois, lhes tornavam a dar as palavras…

Também Cyrano de Bergerac, pouco tempo depois, na História Cómica dos Estados e Impérios da Lua, falava de uma tal caixa dos selenitas que permitia ler com os ouvidos. No século XVIII mais histórias fantásticas, mais casos evidentes, revelando o verdadeiro fascínio que o assunto suscitava em certas cabeças. E começam as experiências práticas: o barão de Kempelen, celebérrimo fabricante de autómatos, consegue construir o admirável Turco Falante, que servirá de motivo inspirador a Hoffmann – o autor dos Contos – para o seu Vendedor de Areia. Ainda nos finais do século XVIII as histórias aventureiras do barão de Munchausen, amplamente divulgadas nos salões da época, nos dão conta da esperança que o homem tinha em poder vir a conservar a sua voz em instrumentos artificiais.

 

A MEMBRANA E O ESTILETE

 

Com o advento do século XIX, entramos na época das realizações paracientíficas. Após ver frustrarem-se algumas das suas primeiras e aturadas experiências, o físico Young consegue fazer inscrever as vibrações de um corpo sonoro num cilindro coberto por uma camada de fumo e animado de movimento rotativo – é assim que se descobre que o som se pode traduzir em imagem e que, portanto, é possível registá-lo de maneira visível. Com base nesta importante invenção de Young, L. S. de Martinville cria, em 1857, o fonoautógrafo – aparelho destinado a registar as vibrações sonoras e que terá sido o primeiro aferidor, de tipo universal, para a intensidade do som. Pouco tempo depois, em 1876, Bell e Manuel constroem os primeiros microfones, que, diga-se de passagem, antes de serem utilizados no campo da reprodução sonora foram aplicados pelos seus próprios inventores nas experiências com o telefone.

É ao poeta Charles Cros, membro do grupo Hydropathes, que se deve a invenção da reprodução do som. No relatório por ele enviado à Academia das Ciências de Paris, em 30 de Abril de 1977, lia-se que: «… Se uma membrana, equipada de um estilete, traça um sulco fará vibrar a membrana sempre que o estilete tornar a passar por ele, reencontrando-se então o som original.» Diz-se que ninguém terá ligado meia a essa comunicação de Cros, que ainda assim conseguiu construir um protótipo da sua invenção – o paleófono – para, diante de um grupo de amigos, reproduzir uma expressão muito breve e enfática, que, segundo a História, horas antes, um dos generais de Napoleão tinha descarregado para cima do extravagante zingarelho… Resta dizer que é ao padre-cura Lenoir que se atribui a designação de phonographe, quando em termos exaltados, descrevia a invenção de Charles Cros, no número 10 de Outubro de 1877 da Semaine du Clergé. Quase ao mesmo tempo, do outro lado do Atlântico, um Edison menos azarento e mais bem equipado do que Cros inscrevia a patente do seu fonógrafo nos Estados Unidos, em 19 de Dezembro de 1877, preparando já a sua apresentação à Academia Americana, que viria a fazer só em Março do ano seguinte, perante o cepticismo e o gozo desconfiado dos reaccionários académicos.

Nos anos imediatos, algumas transformações introduzidas à recente invenção melhoraram consideravelmente o processo de registo: citem-se, entre outros, os trabalhos de Bell e Tainter.

 

BERLINER OU A VELHA HISTÓRIA DOS INVENTORES «TESOS»


 

Aperfeiçoado o método, tornava-se necessário simplifica-lo. Os raios cilíndricos utilizados até então não ofereciam nem qualidade nem fácil manejo a um sistema para o qual, passados os primeiros tempos de incerteza e incredibilidade, se augurou desde muito cedo um vasto campo de aplicação futura.

Ora é aqui que surge o herói da nossa história: Emil Berliner. Este foi certamente o homem que mais cedo acreditou e soube prever um futuro esplendoroso para os aparelhos fonográficos e que, segundo ele próprio um investigador dedicado, soube jogar a parada decisiva que muitos outros temiam.

Nascido na Alemanha, em Hanôver, em 20 de Maio de 1851, filho de um pequeno industrial que via nele um continuador para o seu trabalho, Emil (que na América passaria a escrever Emile) foi aliciado por um amigo dos pais a ajudá-lo num negócio que este iria montar em Washington. Tinha então 19 anos.

Seis anos depois de ter abalado para a América, já Berliner seguia com toda a atenção as experiências públicas que Alexander G. Bell fazia com o seu telefone, na exposição universal de Filadélfia, em 1876. Pouco tempo depois, entusiasmado com um projecto seu que decidira pôr em prática e apresentar ao próprio Bell, vê o seu esforço recompensado quando este decide comprar-lhe a patente de um novo tipo de microfone. Com o dinheiro ganho decide vir à Europa e, em 1881, convence o seu irmão Joseph a fundar, em Hanôver, a primeira fábrica e comercializar o telefone, na Europa.



De novo na América, Berliner não pára. Mas, desta vez, as coisas não irão correr-lhe tão bem: debruçado sobre o fonógrafo de Thomas A. Edison, e depois de descobrir um novo tipo de cabeça de leitura, inventa seguidamente aquilo que deve considerar-se o mais revolucionário aperfeiçoamento técnico jamais sofrido pela indústria da reprodução sonoro: o disco de zinco revestido por cera e de gravura lateral. Pouco depois e ainda não satisfeito com as condições de leitura, Berliner iria aperfeiçoar de novo o gramophone. A respeito do que se passou logo após este fértil período de invenções de Emile Berliner, a História não é suficientemente esclarecedora e de tudo quanto se sabe o que se infere é que ele sofreu injustiças, vexames e invejas, até mesmo quando, em 1888, volta a propor a grandes empresas norte-americanas, um novo e genial processo de fabrico que permitia, finalmente, a duplicação a partir do disco original de zinco, com várias matrizes assim obtidas por galvanoplastia, a servirem de moldes para a produção em massa.

Tem de voltar à Europa para ver devidamente reconhecido o seu esforço. É em 1889 que, em Berlim, o industrial Werner von Siemens lhe dá a mão ao abrir-lhe as portas da sua Sociedade Electrotécnica. Ainda nesse mesmo ano um outro alemão, fabricante de brinquedos, lança no mercado pequenos gramofones, que, acompanhados dos discos respectivos, obtêm um sucesso comercial inesperado.

Entusiasmado e com novo alento, Berliner insiste na América. Em 1893 funda na cidade de Washington a United States Gramophone Co., que, ao fim de oito anos de actividade um tanto penosa, lhe viria a causar novos dissabores. Em 1896, associa-se, em Nova Iorque, a um especialista de publicidade, para uma outra empresa de distribuição e venda. Com as coisas a correrem-lhe de novo pelo melhor, não perde a oportunidade de abrir uma representação dos sues negócios em Londres e de voltar à Alemanha, para se dedicar por fim à produção de registos sonoros que alimentassem a crescente procura de equipamentos.

É assim que funda em Hanôver, em 6 de Dezembro de 1898, a Deutsch Grammophon Gesellschaft, dirigida pelos irmãos Emile e Joseph Berliner – a primeira companhia em todo o mundo cuja actividade primordial era a produção de discos em série.

 

RECORD INDUSTRY: UMA INDÚSTRIA CONSERVEIRA


 

Daí para cá é o que se sabe.

Uma espantosa divulgação do disco como produto de consumo cultural e alienatório (tantas vezes…), servido por uma evolução técnica admirável, em que etapas tão importantes como a normalização das dimensões, a estandardização das velocidades de registo e de leitura, o registo eléctrico, a introdução do micro-sulco, a prensagem estéreo e quadrifónica rapidamente são esquecidas em favor de novos «apports», cada vez mais divulgados. O disco (que McLuhan e Quentin Fiore entendem estar para o som como outrora a Imprensa de Gutenberg estava para a escrita) é hoje, de facto, aos 75 anos, um material tão divulgado e tão consumido que nem sequer estranhamos já o quase desprezo a que é votado sistematicamente pelos mais destacados teorizadores das ciências da comunicação. Constatar, como Masson-Forestier, que «o disco nos leva para lá das fronteiras onde o texto impresso nos deixara»; afirmar, como Jack Bornoff (retomando o Musée Imaginaire de Malraux), que, «em relação à obra-prima musical, o disco é um prolongamento da existência artística do original» não chega. Agora (mesmo agora que outros processos de registo e reprodução sonora se impõem, galopantemente) é tempo de atribuirmos ao disco o estatuto, a condição que lhe é devida; meditarmos (num bom sentido, é claro…) no que de admirável, como de perigoso, existe num processo de conserva cultural – o termo é de Jacob Moreno – que é afinal o disco. Impõe-se repensar a maneira como o disco more tão subitamente nos gira-discos de cada ouvinte, para dar vida (triste vida!) a significados tão ambíguos e perniciosos, como a mais despersonalizante idolatria ou a seráfica contemplação parva do basbaque.

 

NUNO MARTINS

(Janeiro de 1974)

 

Elementos informativos e ilustrações da Polydor Internacional GMBH e de Centre d’Information et de Documentation du Disque.









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