Monitor
Nº 54
Ano V
Março de 99
III série
24 páginas - p/b - A5 landscape, papel fino tipo jornal
Assinaturas - 12 números - 2000$00
Editores
Rui Eduardo Paes
Paulo Somsen
Colaboradores neste número
Vasco Durão
Carlos Branco Mendes
Gonçalo Falcão
Pedro Santos
Vítor Rua
Jorge Saraiva
As profecias de Giovanni Freschi: O regresso ou a síndrome de uma Wire Culture
por Vítor Rua
É no final do filme «2010» (sequela da obra «2001 Odisseia no Espaço»), que HAL (o computador) transmite repetidamente uma importante mensagem para toda a Humanidade: todos estes planetas são vossos. excepto Europa: não tentem aterrar nunca aqui.
Uma ordem parecida tinha sido dada por Deus, no Paraíso, a Adão e Eva: tudo isto é vosso, mas não comam do fruto proibido.
Ao desrespeitarem esta ordem, Adão e Eva estavam de certa maneira a trocar o conhecimento pelo prazer.
Vem isto a propósito da revista «The Wire» e do tipo de informação por ela vinculada: uma informação que, quanto a mim troca a importãncia histórica do conhecimento pela mensagem fútil, massificada e filtrada de um pseudo-input musical, que em nada ajuda a situar (antes pelo contrário) certas ideias/teorias num saudável contexto histórico-musical.
A revista «The Wire», mostra-nos um mundo musical virtual, em que músicos, compositores, improvisadores, maestros, intérpretes, musicólogos nos aparecem mesclados / deturpados / distorcidos, numa enganosa sopa de pedra, dando-nos uma visão tipo história-da-música-pós-moderna, ou fique-a-saber-tudo-sobre-música-em-10-fascículos.
A «The Wire», numa atitude necrófaga, aproveita-se do aparente estado moribundo pós-modernista (em que se perderam todos os valores musicais) para nos impor, sem regras nem critérios, um cenário de cocktail musical psudo-intelectual, desprovido de qualquer contextualização histórico-musicológica: não se está aqui a pôr em causa a qualidade de alguns dos seus artigos, mas sim a forma travestida e por vezes simplificada para as massas com que nos são apresentados.
É desta forma que nos surgem conceitos por vezes altamente complexos, mesclados com bolinhas pop, ou teorias ridículas do género idiomático / não-idiomático na improvisação, em contraponto com outras não menos enganosas e irrisórias do tipo Webern era nazi. Ou seja, no fundo a «The Wire» aproveita esse pequeno mundo virtual, onde todos se andam a enganar a todos e não-músicos tentam enganar não-críticos e vice-versa; um mundo onde se atropelam as mais elementares noções de historicidade musical (que se lixe Beethoven se temos Zorn); um sítio onde pululam psudo-teorias revolucionárias sem qualquer sustentação musicológica, em que o conhecimento musical é desrespeitado a favor do prazer infantilóide de dizer disparates disfarçados de inentonas de uma nova verdade musical pela qual se iria hipoteticamente refazer a História.
É assim que encontramos um qualquer artigo sobre Milton Babbitt ao lado de outro sobre os U2; sobre Derek Bailey ao lado de Varése; Cage ao lado de DJ Spooky; Fátima Miranda ao lado de Morton Feldman; tudo sob o estandarte de um Admirável Mundo Novo Musicológico, onde tudo é permitido, em favor de uma nova maneira de interpretar a História.
Alguns dirão que esta é a maneira de um número grande de pessoas, de diferentes gostos e culturas, tomarem conhecimento de tipologias musicais que de outra forma não teriam acesso: um amante do rock fica assim a saber quem é Helmut Lachenmann; um estudioso da música clássica inteira-se do mundo de Eugene Chadbourne; o ouvinte de músicas etnográficas encanta-se com o mundo macabro de Diamanda Galàs. Só que o problema está na maneira deformada, impunemente acéfala, enganadoramente perversa, historicamente incorrecta, com que nos são transmitidas essas mensagens, servidas na bandeja do puro e verdadeiro usufruto musical, a única livre dos antiquados métodos com que observamos o devir ao longo dos tempos da música: ou seja, no fim trata-se tão somente do pôr de lado a incómoda História da Música.
Vem tudo isto a propósito de um artigo publicado na última «Monitor», de minha autoria, intitulado «As Profecias de Giovanni Freschi». Nesse artigo (vou tentar fazer um resumo para aqueles que não tiveram a oportunidade de o ler) apresentei um ensaio sobre a vida e a obra de um desconhecido compositor (Giovanni Freschi), descoberto ocasionalmente por um musicólogo (Robert Nestrovski), na biblioteca de um tal Duke Vincenzo, chefe da Corte de Gonzaga, em Mãntua. Esse desconhecido compositor teria escrito uma centena de obras, grande parte delas composta para uma inusitada instrumentação (pelo menos para aquela época), como sendo o caso de «Le Nozze», para 23 percussionistas; «Selva Sprrituale», onde era usado o instrumento turco zarib; mas acima de tudo um conjunto de peças intituladas «Extravaganzas» para gravecimbalo col piano forte, em que Freschi teria recorrido a utensílios de cozinha para preparar o piano forte de Bartolomeu Cristofori e o intéprete usaria baquetas de tímpano para percutir o interior do piano, antecipando assim em quase 300 anos o piano preaparado de Cage; teria também escrito vários ensaios sobre notação em que nos apresentava novos símbolos por ele inventados para descrever novos métodos e técnicas de composição. Freschi (aluno do mestre renascentista Marc'Antonio Cesti) teria vivido entre 1653 e 1739 e apresentava-se-nos, desta forma, como um visionário, um profeta, um Júlio Verne da música, que teria despertado o interesse dos mais consagrados intérpretes contemporâneos como Pierr Ives Artaud, as Percussões de Estrasburgo ou Irvini Arditti. E que magnífico seria se na realidade este revolucionário músico e a sua obra tivessem de verdade existido!!!; mas não, tudo se tratou de um ensaio de ficção, uma personagem por mim criada num mundo de semi-verdades (os nomes dos compositores, as datas, os locais, tudo verdade, mas truncados e mesclados de maneira a criarem um mundo onde esta personagem pudesse nascer, envolta num manto de realidade - o inventado musicólogo Nestrovski deu-nos o lado científico q.b. -, bem como o interesse manifestado por uma série de reputados intérpretes em gravar a obra de tão exótico compositor, para uma prestigiosa e bem real editora discográfica, a Col Legno.
Não quis com estes artigos ferir as sensibilidades de quem coordena, dirige ou colabora neste boletim (eu próprio já por várias vezes colaborei nele, e considero o «Monitor» uma importante arma independente capaz de divulgar uma mensagem inexistente de outra forma no panorama musical português), muito menos chocar ou enganar os leitores deste mesmo boletim, por quem tenho a máxima estima (uma vez que representam uma forma de contra-poder no mercado comercialista existente no mundo capitalista musical actual); pelo contrário, é o meu respeito por toda esta instituição que me fez escrever estes artigos, no sentido de alertar os perigos deste mundo virtual, onde tudo é possível e permissível, e aonde nos foi possível por momentos criar uma personagem virtual que de certa maneira nos ajudasse, desta forma, a desmascarar que a falta de uma sólida base histórica musical e um desejo libidinoso de querermos acreditar no Cálice Sagrado (que nos são vinculados pelos às vezes falsos e erróneos evangelhos como a «The Wire») nos pode transportar para a serpente do Paraíso que nos diz constantemente: comam esta maçã, ela é a Verdade.
Comecei o artigo com uma citação do filme «201», transmitida pelo HAL para toda a Humanidade; seria bom que alguém (de preferência de uma raça alienígena) nos viesse dizer, através de uma mensagem semelhante à dada pelo HAL, qualquer coisa como: Estudem e venerem a História da Música e todos os seus grandes criadores - Gesualdo, Palestrina, Monteverdi, Bach, Mozart, Beethoven, Wagner, Schoenberg, Stockhausen, Lachenmann; só com uma compreensão total dessa mesma história pode a Humanidade entender e interpretar os fenómenos musicais mais recentes - o rock, a pop, a electrónica, a concreta, a minimal, a improvisada, a dance music -, e dessa forma unir o conhecimento e o prazer musicais num todo.
Que a música esteja convosco!
P.S.: Pelo preço de duas «The Wire» já se compra uma boa História da Música!
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