Música & Som
Nº 70
Fevereiro de 1982
Publicação Mensal
Esc. 100$00
Especial 5º Aniversário
Música & Som publica-se à 5ª feira, de quinze em quinze dias.
Director: A. Duarte Ramos
Chefe de Redacção: Jaime Fernandes
Propriedade de: Diagrama - Centro de Estatística e Análise de Mercado, Lda.
Colaboradores:
Ana Rocha, Carlos Marinho Falcão, Célia Pedroso, Fernando Peres Rodrigues, Hermínio Duarte-Ramos, Humberto Boto, João David Nunes, João Freire de Oliveira, João Gobern, João de Menezes Ferreira, José Guerreiro, Miguel Esteves Cardoso, Nuno Infante do Carmo, Manuel Cadafaz de Matos, Pedro Ferreira, Raul Bernardo, Ricardo Camacho, Rui Monteiro,Trindade Santos.
Correspondentes:
França: José Oliveira
Holanda: Miguel Santos e João Victor Hugo
Inglaterra: Ray Bonici
Tiragem 16 000 exemplares
Porte Pago
72 páginas A4
capa de papel brilhante grosso a cores
interior com algumas páginas a cores e outras a p/b mas sempre com papel não brilhante de peso médio.
Nós,
Vistos Por... Nós
...
Calamity Mike, por Ana Rocha
Vistos Por... Nós
...
Calamity Mike, por Ana Rocha
Há pouco menos de dois anos, entrou uma criatura no camarim da Lene Lovich. Copinho de leite, de branco da cabeça aos pés, um cabelo cortado à escovinha, óculos de aros dourados pousados no topo de um grande apêndice nasal, em poucos segundos já estava a trocar impressões com a Lene. Essa cena ficou-me na memória. Não sabia quem era, nem donde tinha surgido. Passados meses, o João Gobern durante o concerto do Steve Harley apontou-me a mesma figura que, desta vez, ocupava um dos camarotes do Dramático de Cascais e informou-me de quem se tratava. Cruzávamo-nos em todos os concertos, enfardávamos a pastelada que nos punham à frente em cocktails para os órgãos de imprensa, sempre que se deslocava a Portugal alguma bandazinha da estranja, cumpríamos as tarefas de que éramos incumbidos (entrevistas e/ou reportagens). A dado momento, o MEC entrou para a M&S. De quando em vez via-o, no cinema, no teatro ou na revista, com uma pastazinha zelosamente transportada, circunspecto e delicado, de uma brancura imaculada, lábio grosso esboçando um sorriso aqui e ali, olho a brilhar por detrás da lente, algo macerado devido às vigílias, pensei eu.
O Chefe, entretanto, encomendou-me uma prosa sobre o MEC. Nessa noite, durante a reunião da redacção, eu sentia-me tão enevoada e ramelosa que não teria reconhecido o Mocas Jagger nú, do outro lado da porta. Daí que assenti, não disse nem ai nem ui, pensando que era apenas mais uma das brincadeiras do Big Brother & Holding Company. Não pensei mais no assunto, Passado este tempo todo, dizem-me que, afinal, era a sério. Eu comecei a consultar a minha memória e a de algumas pessoas que conhecem o MEC. Lembrei-me de uma bruta feijoada que dei há alguns meses chez moi onde compareceu a redacção em peso da M&S e onde o MEC, tal como os outros, se refastelou com o petisco. O Guilherme Valente dizia-me que o gajo era porreiro, muito competente e muito educado (Ó Mike por esta não esperavas tu!...). Nesse mesmo dia, o António Martinho dizia-me que tu dormias uma média de duas-três horas por noite. O Jaime, o Cowboy do Meio-Dia, contava-me que tu lhe aparecias lá na rádio com uns casacos indescritíveis, de xadrez, e com umas pantalonas igualmente excêntricas! E vinha-me à memória um artigo feito na altura da estada dos Police aqui em Lisboa no qual tu bramavas, todo escamado, por uma coisa que já não me recordo. Lembro-me que quando acabei de o ler, já estava com água pelos joelhos de tantas piadas...
Não sei mais que te diga. Até porque este tipo de prosas é sempre mais ou menos embaraçoso. Ou dizemos a mais, ou a menos, ou só dizemos aquilo que não era suposto dizer. Sei (e disso não tenho a mínima dúvida) é que, por detrás desse aspecto menineiro, esbranquiçado e imberbe, fervilha uma massa cinzenta que o está sempre a contrariar. Eh pá, scusa, porca miséria, a memória não dá para mais, também não queias mais nada, já agora era de uma cajadada, fazia-te o elogio assim do pé para a mão, e não falava da tua voracidade de pastéis e canapés, bolinhos e biscoitos, bem, não digo mais nada, arriverdecci...
Ana Rocha
...
Entrevista
Nós Estamos Muito Na Moda
Entrevista com Ana Da Silva (Raincoats)
por Ana Rocha
Foi num fim de tarde chuvoso que decorreu esta conversa com Ana da Silva, um dos elementos das Raincoats. Meditativa, pesando bem todas as palavras, escolhendo os termos que ia empregando, com um sotaque ilhéu, trigueira e risonha. Ana ia deixando cair as suas afirmações, sempre atenta e bem disposta. Na mesma mesa sentavam-se, de vez em quando, os dois responsáveis da Cliché, a editora do grupo aqui em Portugal.
M&S - A que se deve a tua estada aqui em Portugal?
Ana da Silva - Vim passar férias. A minha família é da Madeira. Estive cá a passar o Natal com ela. Venho cá pelo menos uma vez por ano. Além disso, tenho cá muitos amigos. Fiz amizades quando passei pela Faculdade de Letras.
M&S - Estiveste lá a fazer o quê?
Ana da Silva - Tirei o curso de Germânicas. Paguei o diploma, mas nunca o levantei!!! (risos).
M&S - Como é que se deu essa transição de licenciada em Germânicas para o campo da música?
AS - Sempre gostei de música. A certa altura resolvi ir viver para Inglaterra. Não tinha emprego... não havia aqui nada que me prendesse... Não podia fazer o que queria fazer. E como tinha lá amigos resolvi ir até Inglaterra para ver como era. Passada uma semana já estava instalada.
M&S - Isso foi há...
AS - Sete anos.
M&S - Estás então decidida a não regressar.
AS - Não tenciono vir para cá para Portugal. Lá faço aquilo que quero fazer. Encontro compensações. Tenho uma profissão de que gosto. Conheço pessoas do mesmo meio. Dou-me com elas. Com pessoas que fazem música.
M&S - Vives exclusivamente com o que te advém dessa actividade musical.
AS - Sim. Dá para viver. Não dá é para comprar carro (risos).
M&S - Passemos ao último trabalho das Raincoats. A pintura que vem na capa é do Malévitch. Como foi isso?
AS - Quer dizer... foi assim: no ano passado, durante a tournée que fizemos pela Europa, acontece que estava em Düsseldorf uma exposição do Malévitch. O poster era exactamente esse. Comprei-o e pu-lo na minha sala. Quando se chegou à altura de fazer a capa, nós tivemos grandes conversas sobre a capa. Que capa iríamos escolher? Pensámos que esa pintura talvez desse uma boa capa, pela sua simplicidade, pela força das cores alegres, pela combinação das cores... E depois, ela representava uma forma humana, nem declaradamente homem, nem declaradamente mulher. Era uma pessoa. Achámos que era giro. Não é muito costume a simplicidade ganhar uma força assim.
M&S - Então a escolha não teve nada a ver com o facto de Malévitch ser revolucionário...
AS - Bem, se o Malévitch fosse fascista não o teríamos escolhido por causa das conotações que isso teria!!
M&S - E o facto de ele ser russo disse-vos alguma coisa?
AS - Não. Nenhuma de nós é pró-russa. No primeiro disco pusemos uma pintura chinesa na capa. Poderíamos ter escolhido uma pintura de um americano ou de um francês...
M&S - O título do álbum, Odyshape, tem a ver com odisseia... forma...?
AS - A palavra não existe. Resulta de uma combinação de vários elementos: odd, que significa estranho, não aceite, body, que significa corpo e também tem a ver com odisseia... Forma de um corpo estranho... Odisseia de forma de corpo estranho... São jogos de palavras. Não é uma coisa consciente. Essa palavra era inicialmente o título de uma das músicas do álbum. Tirámos-lhe o título (ficaram só os bonequinhos a dar-lhe o nome) e pusemo-lo no álbum.
M&S - Alguém disse que tu eras uma espécie de Judy Collins desafinada. Que dizes a isto?
AS - Ah sim? Disseram isso da minha voz? (risos). Eu acho que não desafino! No disco parece-me que a minha voz não está lá muito desafinada!!!
M&S - Vocês têm uma intenção militante de carácter feminista nos vossos álbuns?
AS - Porque são mulheres a fazer uma coisa, as pessoas dizem logo que elas estão a fazer uma coisa feminista. As pessoas estão habituadas a que a mulher não faça outra coisa que não seja lavar pratos e tratar das crianças. Nós não tivemos a intenção de ser militantes quando iniciámos o grupo, mas acreditamos nas possibilidades da mulher de fazer outras coisas que não tenham a ver com o ser mãe. 'Tás a ver a diferença entre as palavras wife e woman?
M&S - Porque é que recorreram ao Charles Hayward dos This Heat e ao Robert Wyatt para as partes de bateria e percussão?
AS - A nossa baterista, a Ingrid Weiss, tinha saído do grupo. E como todas gostamos do Charles, resolvemos metê-lo no grupo. Ele fez uma tournée connosco em Inglaterra e na Europa. O Robert está mais ligado à percussão. Também gostamos muito dele.
M&S - Tem sido afirmado que vocês têm uns cheirinhos a Velvet Underground.
AS - Bem, talvez isso se deva ao facto do nosso som de violino. É um som hard. A palavra em português não seria duro... Emprega-se a mesma nota durante bastante tempo. Talvez isso dê uns ares do John Cale. Mas a nossa violinista nunca tinha ouvido os Velvet Underground. Da nossa baterista de outrora, a Palm Olive, falava-se das semelhanças entre ela e a Maureen Tucker, mas isso deve-se ao facto de serem ambas mulheres. Qualquer delas não toca na tradição masculina. São originais. Embora haja homens a tocar bateria de maneira original, o som delas é diferente. Também têm dito tanta coisa das Raincoats... Há quem encontre semelhanças entre o som das Raincoats e o da Incredible String Band! Outros dizem que o nosso som tem a ver com o reggae...
M&S - Há quem diga que a vossa música «Only Loved At Night» tem a ver com melodias dos Andes. Outros dizem que esse tema inspira-se em melodias dos Himalaias. É mesmo?
AS - Nenhuma de nós ouve música indiana. Portanto, não me parece acertado isso. Nem conhecemos a música dos Andes ou dos Himalaias. Não faz parte das nossas coisas favoritas.
M&S - E que música é que faz parte das vossas coisas favoritas?
AS - Cada uma de nós tem as suas preferências. Eu ouço os Velvet Underground, a Nico... Quando me apetece escolher discos além destes, também vou para os Beatles.
M&S - Ouviste este último álbum da Nico, Drama In Exile?
AS - Não. Há sempre tanta coisa para ouvir... Gosto muito de álbuns anteriores da Nico... Desertshore, The Marble Index, The End, Chelsea Girl...
M&S - Achas que a música das Raincoats poderia ser designada por primitiva? Primitiva no sentido de procurar partir da base, de regressar às origens... não no sentido de ser rudimentar...
AS - Talvez por ter partes étnicas. Talvez por utilizar instrumentos doutros países que não são instrumentos eléctricos. Instrumentos sul-americanos, africanos, indianos. As melodias soam diferentes. Cada instrumento está a tocar coisas diversas, mas todos se encontram.
M&S - O termo música experimental seria mais adequado?
AS - Não é bem esse o termo que eu gostaria que fosse aplicado. Gostaria que houvesse outra palavra para classificar a nossa música. Se uma pessoa está a fazer uma coisa original, até certo ponto está a a fazer algo experimental, porque está a fazer uma coisa que ninguém fez antes.
M&S - Portanto, sem ser o termo experimental...
AS - A música experimental tem a ver com esquemas. É uma música mais racional. A nossa música é racional e emotiva, também. Isso deve-se à energia que nós pomos na música.
M&S - Vocês revezam-se com os instrumentos. Porquê?
AS - Tocar guitarra a vida inteira seria muito aborrecido. Compreendo que haja aquelas pessoas que pensem que é esse o caminho para se aperfeiçoarem. Eu nunca fui uma pessoa disciplinada para ser só uma coisa... só pintora... só qualquer coisa... Gosto de escrever as letras, compor. Existe um Livrinho Verde sobre as Raincoats. Fui eu que o fiz. Fiz os desenhos, escrevi os textos à máquina, levei-os para serem impressos, fiz a promoção do Livro e vendi-o para pagar as despesas.
M&S - Esse livrinho verde é uma alternativa ao Livro Vermelho do Mao Tsé Tung?!!!
AS (risos) - Não! É verde porque eu gostei da cor da cartolina! Não tenciona ter tantas propostas de sociedade como o livro do Mao! Deu-me gozo fazer a parte artística. Fiz tudo. Dobrei as folhas, pus os agrafos. Acompanhei o Livrinho Verde do princípio ao fim. Há certos grupos que não se preocupam com as capas dos seus discos, estão-se nas tintas para as editoras, para a promoção... Nós não somos assim. Gostamos de nos dedicar a diferentes tarefas.
M&S - Dentro da cena musical inglesa, em que lugar é que vocês se colocam?
AS - Para dizer a verdade, nós estamos muito na moda!!! (risos). As pessoas gostam de nós por razões mais profundas do que seria de pensar. Isso não tem a ver exclusivamente com os discos, com a nossa música. Os discos, no fundo, ouvem-se duas ou três semanas e depois? O facto de as pessoas gostarem de nós tem a ver com o aspecto musical e com aquilo que apresentamos. Tem a ver com os nossos concertos, com tudo aquilo que fazemos. As modas vêm e vão. Agora são os Spandau Ballett e os Duran Duran... Mas nós não fazemos parte dos conjuntos comerciais.
M&S - Mas vocês gostavam de ter mais sucesso comercial ou não?
AS - Nós gostamos daquilo que estamos a fazer, embora, é claro, gostássemos de vender mais. Penso que, de qualquer maneira, conseguimos atingir o público.
M&S - Esperavam ter uma boa receptividade aqui em Portugal?
AS - Esperava um bocadinho.
M&S - Achas que essa receptividade se relaciona com o facto de haver uma portuguesa entre as Raincoats, ou seja, por seres uma portuguesa no meio de inglesas?
AS - Pode ser que isso tenha tido alguma influência. Os Young Marble Giants não têm nenhum elemento português e também têm tido um bom acolhimento. É claro que as pessoas pensam sempre: há um português lá, deve ser uma porcaria! Se é portuguesa, deve fazer só porcarias! Mas infelizmente as Raincoats têm tido sucesso em Inglaterra. Entre os conjuntos independentes, temos um bom lugar.
M&S - Vocês têm feito muitos concertos para promover o disco?
AS - Não só para promoção do disco. Nós gostamos de tocar ao vivo. O trabalho de estúdio é mais um trabalho de construção. O tocar ao vivo é mais aquela imediatez, aquele contacto directo.
M&S - Vocês estão a pensar vir até Portugal para um concerto?
AS - Em Fevereiro.
M&S - Vocês, ao que consta não tocam em salas muito grandes.
AS - Temos tocado em salas pequenas. Preferimos fazer vários concertos para um número reduzido de público do que tocar para 4000 pessoas numa grande sala.
M&S - Muitos meses decorreram entre o vosso primeiro álbum e este segundo, Odyshape. Bastante mais de um ano. Em relação ao próximo álbum, vai decorrer assim tanto tempo?
AS - Nós somos um bocado vagarosas. Este ano, entre Janeiro e Junho, a nossa viola esteve a acabar o curso de arte. Estivemos seis meses sem trabalhar. Temos andado a actuar em espectáculos ao vivo. Muitos dos temas tiveram de ser reescritos. As músicas que tinham sido escritas para o álbum tiveram de ser modificadas, porque não podíamos estar a tocar aqueles instrumentos todos ao mesmo tempo.
M&S - Há um outro conjunto feminino ao qual o vosso nome tem sido associado, as Slits. Vocês são amigas?
AS - (reticente) Nem por isso. Conhecemos as Slits. Tivemos uma baterista em comum. Elas vivem na mesma área que nós. Mas a música das Slits é diferente da nossa. Uma delas não fala com toda a gente... Mas isso é já entrar na coscuvilhice! (risos). A nossa violinista tocou numa ou duas músicas delas. Já tocámos no mesmo concerto aí umas três vezes juntas.
M&S - Ficamos a aguardar a vossa vinda a Portugal em Fevereiro.
AS - Bem, se o Malévitch fosse fascista não o teríamos escolhido por causa das conotações que isso teria!!
M&S - E o facto de ele ser russo disse-vos alguma coisa?
AS - Não. Nenhuma de nós é pró-russa. No primeiro disco pusemos uma pintura chinesa na capa. Poderíamos ter escolhido uma pintura de um americano ou de um francês...
M&S - O título do álbum, Odyshape, tem a ver com odisseia... forma...?
AS - A palavra não existe. Resulta de uma combinação de vários elementos: odd, que significa estranho, não aceite, body, que significa corpo e também tem a ver com odisseia... Forma de um corpo estranho... Odisseia de forma de corpo estranho... São jogos de palavras. Não é uma coisa consciente. Essa palavra era inicialmente o título de uma das músicas do álbum. Tirámos-lhe o título (ficaram só os bonequinhos a dar-lhe o nome) e pusemo-lo no álbum.
M&S - Alguém disse que tu eras uma espécie de Judy Collins desafinada. Que dizes a isto?
AS - Ah sim? Disseram isso da minha voz? (risos). Eu acho que não desafino! No disco parece-me que a minha voz não está lá muito desafinada!!!
M&S - Vocês têm uma intenção militante de carácter feminista nos vossos álbuns?
AS - Porque são mulheres a fazer uma coisa, as pessoas dizem logo que elas estão a fazer uma coisa feminista. As pessoas estão habituadas a que a mulher não faça outra coisa que não seja lavar pratos e tratar das crianças. Nós não tivemos a intenção de ser militantes quando iniciámos o grupo, mas acreditamos nas possibilidades da mulher de fazer outras coisas que não tenham a ver com o ser mãe. 'Tás a ver a diferença entre as palavras wife e woman?
M&S - Porque é que recorreram ao Charles Hayward dos This Heat e ao Robert Wyatt para as partes de bateria e percussão?
AS - A nossa baterista, a Ingrid Weiss, tinha saído do grupo. E como todas gostamos do Charles, resolvemos metê-lo no grupo. Ele fez uma tournée connosco em Inglaterra e na Europa. O Robert está mais ligado à percussão. Também gostamos muito dele.
M&S - Tem sido afirmado que vocês têm uns cheirinhos a Velvet Underground.
AS - Bem, talvez isso se deva ao facto do nosso som de violino. É um som hard. A palavra em português não seria duro... Emprega-se a mesma nota durante bastante tempo. Talvez isso dê uns ares do John Cale. Mas a nossa violinista nunca tinha ouvido os Velvet Underground. Da nossa baterista de outrora, a Palm Olive, falava-se das semelhanças entre ela e a Maureen Tucker, mas isso deve-se ao facto de serem ambas mulheres. Qualquer delas não toca na tradição masculina. São originais. Embora haja homens a tocar bateria de maneira original, o som delas é diferente. Também têm dito tanta coisa das Raincoats... Há quem encontre semelhanças entre o som das Raincoats e o da Incredible String Band! Outros dizem que o nosso som tem a ver com o reggae...
M&S - Há quem diga que a vossa música «Only Loved At Night» tem a ver com melodias dos Andes. Outros dizem que esse tema inspira-se em melodias dos Himalaias. É mesmo?
AS - Nenhuma de nós ouve música indiana. Portanto, não me parece acertado isso. Nem conhecemos a música dos Andes ou dos Himalaias. Não faz parte das nossas coisas favoritas.
M&S - E que música é que faz parte das vossas coisas favoritas?
AS - Cada uma de nós tem as suas preferências. Eu ouço os Velvet Underground, a Nico... Quando me apetece escolher discos além destes, também vou para os Beatles.
M&S - Ouviste este último álbum da Nico, Drama In Exile?
AS - Não. Há sempre tanta coisa para ouvir... Gosto muito de álbuns anteriores da Nico... Desertshore, The Marble Index, The End, Chelsea Girl...
M&S - Achas que a música das Raincoats poderia ser designada por primitiva? Primitiva no sentido de procurar partir da base, de regressar às origens... não no sentido de ser rudimentar...
AS - Talvez por ter partes étnicas. Talvez por utilizar instrumentos doutros países que não são instrumentos eléctricos. Instrumentos sul-americanos, africanos, indianos. As melodias soam diferentes. Cada instrumento está a tocar coisas diversas, mas todos se encontram.
M&S - O termo música experimental seria mais adequado?
AS - Não é bem esse o termo que eu gostaria que fosse aplicado. Gostaria que houvesse outra palavra para classificar a nossa música. Se uma pessoa está a fazer uma coisa original, até certo ponto está a a fazer algo experimental, porque está a fazer uma coisa que ninguém fez antes.
M&S - Portanto, sem ser o termo experimental...
AS - A música experimental tem a ver com esquemas. É uma música mais racional. A nossa música é racional e emotiva, também. Isso deve-se à energia que nós pomos na música.
M&S - Vocês revezam-se com os instrumentos. Porquê?
AS - Tocar guitarra a vida inteira seria muito aborrecido. Compreendo que haja aquelas pessoas que pensem que é esse o caminho para se aperfeiçoarem. Eu nunca fui uma pessoa disciplinada para ser só uma coisa... só pintora... só qualquer coisa... Gosto de escrever as letras, compor. Existe um Livrinho Verde sobre as Raincoats. Fui eu que o fiz. Fiz os desenhos, escrevi os textos à máquina, levei-os para serem impressos, fiz a promoção do Livro e vendi-o para pagar as despesas.
M&S - Esse livrinho verde é uma alternativa ao Livro Vermelho do Mao Tsé Tung?!!!
AS (risos) - Não! É verde porque eu gostei da cor da cartolina! Não tenciona ter tantas propostas de sociedade como o livro do Mao! Deu-me gozo fazer a parte artística. Fiz tudo. Dobrei as folhas, pus os agrafos. Acompanhei o Livrinho Verde do princípio ao fim. Há certos grupos que não se preocupam com as capas dos seus discos, estão-se nas tintas para as editoras, para a promoção... Nós não somos assim. Gostamos de nos dedicar a diferentes tarefas.
M&S - Dentro da cena musical inglesa, em que lugar é que vocês se colocam?
AS - Para dizer a verdade, nós estamos muito na moda!!! (risos). As pessoas gostam de nós por razões mais profundas do que seria de pensar. Isso não tem a ver exclusivamente com os discos, com a nossa música. Os discos, no fundo, ouvem-se duas ou três semanas e depois? O facto de as pessoas gostarem de nós tem a ver com o aspecto musical e com aquilo que apresentamos. Tem a ver com os nossos concertos, com tudo aquilo que fazemos. As modas vêm e vão. Agora são os Spandau Ballett e os Duran Duran... Mas nós não fazemos parte dos conjuntos comerciais.
M&S - Mas vocês gostavam de ter mais sucesso comercial ou não?
AS - Nós gostamos daquilo que estamos a fazer, embora, é claro, gostássemos de vender mais. Penso que, de qualquer maneira, conseguimos atingir o público.
M&S - Esperavam ter uma boa receptividade aqui em Portugal?
AS - Esperava um bocadinho.
M&S - Achas que essa receptividade se relaciona com o facto de haver uma portuguesa entre as Raincoats, ou seja, por seres uma portuguesa no meio de inglesas?
AS - Pode ser que isso tenha tido alguma influência. Os Young Marble Giants não têm nenhum elemento português e também têm tido um bom acolhimento. É claro que as pessoas pensam sempre: há um português lá, deve ser uma porcaria! Se é portuguesa, deve fazer só porcarias! Mas infelizmente as Raincoats têm tido sucesso em Inglaterra. Entre os conjuntos independentes, temos um bom lugar.
M&S - Vocês têm feito muitos concertos para promover o disco?
AS - Não só para promoção do disco. Nós gostamos de tocar ao vivo. O trabalho de estúdio é mais um trabalho de construção. O tocar ao vivo é mais aquela imediatez, aquele contacto directo.
M&S - Vocês estão a pensar vir até Portugal para um concerto?
AS - Em Fevereiro.
M&S - Vocês, ao que consta não tocam em salas muito grandes.
AS - Temos tocado em salas pequenas. Preferimos fazer vários concertos para um número reduzido de público do que tocar para 4000 pessoas numa grande sala.
M&S - Muitos meses decorreram entre o vosso primeiro álbum e este segundo, Odyshape. Bastante mais de um ano. Em relação ao próximo álbum, vai decorrer assim tanto tempo?
AS - Nós somos um bocado vagarosas. Este ano, entre Janeiro e Junho, a nossa viola esteve a acabar o curso de arte. Estivemos seis meses sem trabalhar. Temos andado a actuar em espectáculos ao vivo. Muitos dos temas tiveram de ser reescritos. As músicas que tinham sido escritas para o álbum tiveram de ser modificadas, porque não podíamos estar a tocar aqueles instrumentos todos ao mesmo tempo.
M&S - Há um outro conjunto feminino ao qual o vosso nome tem sido associado, as Slits. Vocês são amigas?
AS - (reticente) Nem por isso. Conhecemos as Slits. Tivemos uma baterista em comum. Elas vivem na mesma área que nós. Mas a música das Slits é diferente da nossa. Uma delas não fala com toda a gente... Mas isso é já entrar na coscuvilhice! (risos). A nossa violinista tocou numa ou duas músicas delas. Já tocámos no mesmo concerto aí umas três vezes juntas.
M&S - Ficamos a aguardar a vossa vinda a Portugal em Fevereiro.
Foi nestes termos cordiais que se desenrolou o encontro. A Ana da Silva é impec. (Impecável, ó manos!). As Raincoats são uma das bandas mais interessantes da secular Albion. Só nos resta contar ansiosamente os dias até à actuação delas aqui em Portugal.
Ana Rocha
Entrevista Exclusiva
Peter Hammill
"O Sobrevivente"
Texto e Fotos: Júlio Ferreira Antunes e Jean-Michel Dupont
Devemos sempre desconfiar dos «a priori».
Muitos jovens de hoje enviaram sem remissão um tipo como Peter Hammill na caravana sinistra dos velhos heróis caídos em desgraça.
No entanto, o nosso cientista não parou ainda de evoluir desde o dia em que - faz doze anos - se lançou na cena musical...
M&S - Poderás dar uma ideia de ti mesmo que seja ao mesmo tempo paralela a músicos da tua geração como por exemplo Peter Gabriel ou Robert Wyatt?
PH - Músicos como Gabriel, Wyatt ou ainda Bowie ou Fripp considero-os como sobreviventes e, por conseguinte, considero-me eu mesmo também um sobrevivente. Há dez anos que fazemos música e, creio, até hoje esse foi o nosso único objectivo. Fazer música, e não por exemplo transformar-se em estrelas.
M&S - Tenho a impressão que se todos vocês são sobreviventes é porque a um dado momento houve uma mudança na vossa carreira, uma evolução digamos...
PH - Mas justamente, a condição principal para ser um bom sobrevivente é ter um espírito aberto e em evolução perpétua.
M&S - É curioso constatar que Peter Gabriel, Fripp e tu mesmo que eram por assim dizer os leaders de grupos enormemente melódicos e com vastas influências de uma certa forma de classicismo tenham mudado subitamente, e procurado simultaneamente uma carreira a solo caracterizada ao mesmo tempo pelo carácter experimental e grandemente influenciada pela procura electroacústica...
PH - Divagar no clássico foi interessante, mas aconteceu que a um dado momento nos encontrámos com uma música exageradamente pomposa. Foi aí que realizámos que nos estávamos a afastar da nossa vocação de artista, do músico popular e da música do momento. É claro que podemos falar de coisas sérias como a emoção, o Mundo, a sociedade, mas é preciso saber ficar acessível.
M&S - O trabalho de Fripp está no entanto longe da chamada música popular...
PH - Para sobreviver é preciso guardar sempre um certo sentido de humor, e mesmo se o Robert parece muito sério, ele esconde no entanto um grande espírito humorístico.
M&S - O que é certo é que ele pratica humor a um grau de tal maneira elevado que acabamos obrigatoriamente por não saber muito bem onde estamos...
PH - Sim, é verdade que «a priori» ele não será dos mais acessíveis mas, quando me refiro a ele, a Gabriel, a Wyatt ou a mim mesmo na condição de músicos populares, refiro-me no entanto a uma música do futuro, uma música popular que eu desejo e que não é forçosamente aquela que escutamos actualmente nos charts e que é, essa sim, inteiramente imediata.
M&S - Como é que se passam as coisas quando escreves?
PH - O que me apaixona na poesia é a emoção que se liberta de repente, fortuitamente, quer a sensibilidade tenha sido provocada por uma situação normal quer por um filme ou um concerto...
Por exemplo «Strange Still» foi escrito uma manhã em Paris enquanto tomava o pequeno-almoço num café.
M&S - E como é a nível de sensibilidade? Segues uma certa linha ideológica ou pelo contrário generalizas essa mesma sensibilidade?
PH - Para quem escreve, mudar é absolutamente necessário. Ter diferentes experiências e encará-las cada dia de uma maneira diferente torna-se essencial.
M&S - Qual é a tua opinião em relação aos acontecimentos de 77?
PH - Em 77 chegou-se a qualquer coisa de académico. É fantástico ver que imensos grupos se puderam formar, as estruturas tornavam-se menos pesadas mas... ao mesmo tempo o «business» fica.
Houve uma revolução, novas caras apareceram, mas... o negócio continua.
M&S - Em relação às novas caras, quais as que mais aprecias? The Cure, UB40, The Beat, Specials... O que é que te seduz num grupo como The Cure por exemplo?
PH - Força, paixão, honestidade... Mas é difícil dizer verdadeiramente porque é que gostamos de um grupo.
M&S - Sabes que John Lyndon é um dos teus admiradores?
PH - Sei. Sobretudo dos últimos álbuns a solo. Há imensa gente em Inglaterra que nunca ouviu falar de Van Der Graaf. Creio que ele gosta dos meus álbuns por causa de uma certa honestidade e pureza existentes, e também pelo seu carácter experimental.
M&S - Qual é a tua opinião sobre o seu trabalho?
PH - Digamos que gosto mais ou menos de metade daquilo que Lyndon faz. Sabes, quando é músico, e conheces bem a maneira de como um disco é feito é difícil de dizer objectivamente o que pensas porque apesar de tudo e contra a tua vontade tens tendência a dar atenção aos detalhes técnicos.
M&S - O que pensas duma personagem como Johnny Rotten?
PH - Bem, como eu tenho uma vida privada bastante grande, tenho sempre uma enorme dificuldade em conceber que certos artistas possam viver quase eternamente sob o olhar do público. Não é por acaso que John mudou de repente e deu o nome de Public Image ao seu novo grupo.
Pessoalmente, no aspecto de vedetismo não tenho grande experiência, mas penso que se ao fim de doze anos passados posso continuar a dar concertos é porque em parte nunca tive uma verdadeira imagem pública.
M&S - Sei do teu projecto para a realização de uma ópera. Queres falar um pouco sobre ele?
PH - Bom, é um projecto que dura já há nove anos, que se vai concretizando de ano para ano e demorará ainda uns dois anos a ser terminado.
M&S - E fala de quê?
PH - Ah! Para falar disso prefiro esperar que esteja terminado.
M&S - E a instrumentalização utilizada será de que género?
PH - Actualmente ainda não sei. Neste momento ainda só as vozes e as partes de piano estão compostas. Quanto ao resto tanto poderá meter cordas, um grupo rock ou ainda música electrónica.
M&S - Para acabar, não achas que a tua música se «endureceu» um pouco neste último álbum?
PH - Sim, é verdade. Tentei também compor temas mais simples, quer dizer, temas que sem serem comerciais serão de maior impacte.
PH - Digamos que gosto mais ou menos de metade daquilo que Lyndon faz. Sabes, quando é músico, e conheces bem a maneira de como um disco é feito é difícil de dizer objectivamente o que pensas porque apesar de tudo e contra a tua vontade tens tendência a dar atenção aos detalhes técnicos.
M&S - O que pensas duma personagem como Johnny Rotten?
PH - Bem, como eu tenho uma vida privada bastante grande, tenho sempre uma enorme dificuldade em conceber que certos artistas possam viver quase eternamente sob o olhar do público. Não é por acaso que John mudou de repente e deu o nome de Public Image ao seu novo grupo.
Pessoalmente, no aspecto de vedetismo não tenho grande experiência, mas penso que se ao fim de doze anos passados posso continuar a dar concertos é porque em parte nunca tive uma verdadeira imagem pública.
M&S - Sei do teu projecto para a realização de uma ópera. Queres falar um pouco sobre ele?
PH - Bom, é um projecto que dura já há nove anos, que se vai concretizando de ano para ano e demorará ainda uns dois anos a ser terminado.
M&S - E fala de quê?
PH - Ah! Para falar disso prefiro esperar que esteja terminado.
M&S - E a instrumentalização utilizada será de que género?
PH - Actualmente ainda não sei. Neste momento ainda só as vozes e as partes de piano estão compostas. Quanto ao resto tanto poderá meter cordas, um grupo rock ou ainda música electrónica.
M&S - Para acabar, não achas que a tua música se «endureceu» um pouco neste último álbum?
PH - Sim, é verdade. Tentei também compor temas mais simples, quer dizer, temas que sem serem comerciais serão de maior impacte.
Alguns artigos interessantes, para futura transcrição:
. Nós, Vistos Por... Nós - artigo em que cada escriba da revista escreve sobre outro - excerto acima.
. Salada à la Tulipa (Segundo Lena dos Vinhos) - artigo sobre os Salada de Frutas, de Célia Pedroso
. Tom Robinson - Adoro o Amadorismo - entrevista por Fernanda Ribeiro
. Discos em Análise:
.. Led Zeppelin - «Physical Graffiti» [Swan Song Ss 89400], por Carlos Marinho Falcão
.. Klaus Doldinger Passport - «Oceanliner» [Rádio Triunfo ATL G 50688], por Fernanda Ribeiro
...&Som, por Hermínio Duarte-Ramos
- Reflexões Sonoras e Surdas
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