autor: Luís Jerónimo e Tiago Carvalho (compilação, introdução e prefácio)
título: Escritos de Fernando Magalhães - Volume I: 1988/1991
editora: Lulu Publishing
nº de páginas: 288
isbn: 5-800107-609398
data: 2014
prefácio: Vítor Junqueira
sinopse:
Prefácio
Textos de autor
«Decerto repararão que
desta lista constam muitos nomes estranhos e desconhecidos. A culpa não é
minha. Procurem-nos e talvez cheguem à conclusão que nem sempre a melhor música
é a mais badalada.»
(in Blitz, 16 de janeiro de 1990, lista dos melhores discos
da década de 80)
Devo ter começado a ler o Fernando Magalhães na altura em
que os seus textos começaram a aparecer em jornais como o Blitz ou o LP, em
finais da década de 80, como aqueles que encontramos nesta coletânea. Mas julgo
que terei ainda deixado virar a década antes de começar a reparar com olhos de
ver no seu nome na assinatura – ou tão só a sigla «FM». Sei porém que desde
cedo aquela assinatura se tornaria para mim um selo de qualidade, uma garantia
de que ali iria encontrar uma abordagem profunda, incisiva, abrangente, ora
apaixonada, ora destrutiva, quase sempre divertida. Eram, se a expressão
existisse, verdadeiros «textos de autor».
Dizia que a abordagem era profunda, porque não se reduzia à identificação
do óbvio e do superficial. Ele encontrava os substratos que não se liam
habitualmente nas críticas assinadas por outros. Era incisiva, porque quase
sempre encontrava aquilo que realmente importava dizer, permitindo ir ao fundo do
tema mesmo quando tinha meia dúzia de linhas como limite. Era abrangente,
porque conseguia inserir o objeto de análise em vários planos contextuais, no
tempo, na história da música, nas artes em geral, no plano dos afetos, nos
diferentes terrenos culturais, na religião. O crítico que encontramos nestes
textos de 88 a 91 já era um nerd da música, perdão, das músicas, mas um nerd
com vistas muito largas. Coisa rara, pois.
Facilmente se vê – e podemos voltar a senti-lo nestes textos
iniciais – que o Fernando escrevia com paixão e boa disposição. Com o tempo,
creio que veio a sentir-se cada vez mais à vontade para impregnar os seus
escritos de humor e até de doses bastas de ironia e alguma malícia servida em
jogos de palavras que não raras vezes me deixavam de sorriso na cara, jornal
aberto à frente, mesmo quando não concordava. Poucos críticos conseguiam entrar
na graça sem se deixar cair em desgraça. Anos mais tarde, sempre que havia algo
em disputa nas nossas conversas infindáveis sobre música e sobre tudo o resto,
tentava desarmá-lo com argumentos que julgava fortes – nem sempre, admito – e o
Fernando, tranquilo, mandava-me ir ouvir um qualquer grupo obscuro dos anos 60
ou 70, trazia a filosofia à mesa ou ridicularizava o assunto em discussão de
tal maneira que acabávamos em gargalhadas e a pedir mais uma rodada de canecas.
Mistas. E, claro, ele até tinha a sua razão.
Não posso dizer que o Fernando fosse absolutamente único.
Nas páginas dos jornais ou nas ondas hertzianas havia mais um punhado de gente
boa e conhecedora a saber expressar-se, a saber motivar-nos, a saber
instigar-nos e guiar-nos para descobrir o que de mais interessante se fazia no
mundo da música. Ou o para o que havia sido feito naquelas décadas passadas que
não tinham chegado a nós ou aos nossos pais e irmãos mais velhos com o relevo
que mereciam. Os apaixonados pela música da minha geração, adolescentes à data
da publicação dos textos que compõem este volume, seguiam estas vozes públicas
com toda a atenção. As novas gerações terão que imaginar o que era um mundo
desprovido de informação imediata e à distância do visor dos apêndices
ciborgues que hoje são o telemóvel ou o computador.
Gosto de reconhecer o valor nos vários professores que tive
ao longo da vida, em diferentes áreas de conhecimento. E o Fernando foi um
desses pedagogos, mais do que um mero crítico. Pelo punho do Fernando, muitos
de nós terão entrado nas cenas folk portuguesa e europeia, terão aprendido o
que era o kraut rock e a kosmische muzik, ou quem eram Peter Hammill e os Van
Der Graaf Generator, seus velhos favoritos: «Hammill nunca alcançou a glória
que já há muito merece. A sua obra é conhecida apenas por um clube de
iniciados, felizmente com cada vez mais sócios.» (in Blitz, 21 de novembro de
1989). A propósito, oiço o “Pawn Hearts” enquanto escrevo isto. Descobri-o, e
lembro-me perfeitamente disso, através do Fernando.
Assim era. Leitores como eu tornavam-se sócios deste clube
de melómanos iniciados. Deve ser sublinhado que aquela era uma sociedade de
apreciação que não se fechava numa corrente ou numa cultura musical específica.
Habituei-me desde cedo – e acredito que o Fernando pode ter tido uma influência
marcante nisto – a não me satisfazer num género, não por regra, mas porque facilmente
ficava encantado na folk, no rock, na eletrónica, onde quer que alguém fosse
fiel à sua musa. Esta abertura de horizontes estava patente na coleção de
discos, nos textos e nas paixões musicais do Fernando. É fácil de reparar como
nesta compilação de textos, e citando apenas alguns casos, convivem nomes como
os de Tuxedomoon («esta ‘sonata fantasmagórica’ demonstra até que ponto os
Tuxedomoon são hoje dos grupos mais importantes da cena alternativa situada na
convergência do rock com a música erudita»), de Neil Young («Ouve-se ‘Weld’ com
a sensação de se assistir ao cataclismo iminente, à erupção de um vulcão, ao
colapso de qualquer coisa que não ousamos interiorizar»), de Legendary Pink
Dots («Herdeiros legítimos da música progressiva dos anos 70, os Legendary Pink
Dots representam uma das vertentes mais heterodoxas e estimulantes da cena
alternativa actual»), de R.E.M. («Com ‘Out of Time’ os R.E.M. tocam o céu da
perfeição»), de Negativland («são os maiores inimigos da Coca-Cola, da Levi’s e
dos mísseis Patriot. Só pelo nome se vê que são do contra. Vêm da contracosta
americana. Voltam tudo de pernas para o ar.»), de Naked City («Os cinco
intérpretes, não se duvide, são fabulosos, independentemente de conseguirem ou
não alguma vez condensar a história completa da música numa única espira») ou do
Grupo de Cantares de Manhouce.
Como se vê, o Fernando tinha sempre coisas interessantes
para dizer sobre gente tão díspar. Desde que estas (ou os seus trabalhos, para
ser mais rigoroso) o encantassem. Mas o Fernando não tinha também quaisquer papas
na língua para destilar críticas destruidoras a quem ou ao que o aborrecia. Acredito
que essa faceta, essencial a qualquer crítico que queira desempenhar o seu
papel em justiça para com o mundo que descreve e para consigo mesmo, lhe dava
um certo gozo (e aos seus leitores, pelo menos a mim). Descobri-lhe, anos
depois, que toda esta acutilância e este descaramento faziam afinal parte
essencial do seu próprio carácter divertido e irreverente, particularmente
notado na forma como se dava com as pessoas que conhecia e com as que não
conhecia, como daquela vez, em que à porta da ZDB dizia a quem passava pela rua
que ali ia tocar uma «banda pop francesa», os... Dat Politics. Tal como a
vontade de picar os que o ouviam. Uma vez, enquanto víamos a bola na cervejaria
onde nos encontrávamos regularmente, confessava-me: «sabes que às vezes penso
que sou mais anti-benfiquista do que sportinguista?». Talvez sirva de algum
propósito aqui dizer que, além da preferência clubística, ambos partilhávamos um
fascínio muito especial pela “How To Irritate People”, uma série televisiva diabólica
do John Cleese, precursora dos Monty Python (dos quais passávamos aliás noites
e noites a percorrer de memórias todos os sketches). O Fernando não tinha
quaisquer problemas em entrar neste jogo potencialmente perigoso nas críticas
que escrevia. Mesmo quando o artista ou grupo em causa fosse português, o que
também o distinguia face a outros críticos ou, em episódios decorridos
posteriormente às datas da presente coleção de textos, quando a editora de
alguns dos discos visados era importante para as receitas de publicidade do suplemento
em que escrevia.
Não resisto a citar alguns trechos de textos deste volume,
onde o Fernando já discorria alguma da sua, digamos, alegre truculência:
«Mas o pior de tudo foi o final, quando os Duplex se
afundaram no seu próprio pretensiosismo. Subiram ao palco uns instrumentistas ‘da
clássica’, com instrumentos ‘a sério’ como o violoncelo, a flauta e o trompete
e, finalmente, um coro de senhoras, todos juntos para um final pretensamente
grandioso. O resultado foi assistirmos a uma aula de alunos do Conservatório,
com todos os participantes desunhando-se para não desafinarem ou saírem do
compasso.» (In Blitz, 17.10.89, reportagem de concerto dos Duplex Longa)
«Chapéus há muitos. Bons músicos portugueses já há menos.
Bons músicos portugueses a trabalhar na área da música popular contam-se pelos
dedos. (...) Musicalmente são dados vários passos atrás, mais parecendo ter-se
voltado aos tempos de Pedro Homem de Mello e aos ranchinhos de acordeão e vozes
esganiçadas para turista ouvir e comprar.» (In Pop Rock, suplemento do Público,
1 de maio de 1991, crítica a álbum de Maio Moço, “Histórias de Portugal, de Dom
Afonso Henriques a Dom Sebastião”)
«Começa a fartar, a década de 60. Tudo o que é ‘Sixties’ é
bom. Nesse tempo é que era. Os ideais, a luta contra o ‘establishment’, gozar à
brava, enfim, a grande farra. A música desses anos conturbados reflecte a
confusão. Desde os percursores aos mártires, passando pelos oportunistas, há de
tudo um pouco.» (In Pop Rock, suplemento do Público, 29 de maio de 1991, crítica
às reedições dos Jefferson Airplane)
Os músicos continuavam a respeitá-lo, tanto quanto sei. Uma
vez, terá ido a casa de um músico com créditos firmados (e merecidos) na nossa
praça. Antes mesmo de passar a porta de entrada, se ainda me recordo da
história, terá exclamado “oh pá, este teu novo disco é uma merda!”.
Alegadamente, continuaram amigos.
Conheci, como se percebe de alguns parêntesis que não
consegui deixar de ir abrindo e fechando neste prefácio, o Fernando-crítico e o
Fernando-amigo. Tenho uma imensa saudade de ambos. Esta compilação de textos,
edição rara no panorama português, a que o Tiago e o Luís dedicaram tanto
trabalho de pesquisa e pelo qual aquele clube de melómanos de que o Fernando
falava a propósito do Hammill deve toda a gratidão, vai ajudar a matar saudades
do Fernando-crítico. Na maior parte dos casos, continuam a ser textos sem data,
válidos para as gerações daquela altura, para as novas e para as futuras. Venham
daí mais volumes.
Lisboa, 14 de dezembro de 2014
Vítor Junqueira
«Como certamente
repararam, estive ausente desta página a passada semana. Outros deveres
jornalísticos impuseram que me deslocasse à República do Alto Volta para fazer
a reportagem sobre os pequenos-almoços de Paul McCartney nessa mesma República.
«Mas eis que regresso
são e salvo, já refeito do choque McCartney e pronto para mais prosas sobre os
«Valores», talvez não tão interessantes como as refeições do ex-Beatle, mas
olhem, faz-se o que se pode.»
(in Blitz, 21 de novembro de 1989)
Outros textos de outros anos, no meu blogue: http://www.profelectro.info/fm/
Livro disponível em: http://www.lulu.com/shop/lu%C3%ADs-jer%C3%B3nimo/fm-volume-1-pb/paperback/product-21956790.html . Mas quem quiser o pdf free, basta solicitá-lo para o meu email.
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