3.9.15

Memorabilia: Revistas / Magazines / Fanzines (126) - Música & Som #71


Música & Som
Nº 71
Março de 1982
Publicação Mensal
Esc. 80$00

Música & Som publica-se à 5ª feira, de quinze em quinze dias.
Director: A. Duarte Ramos
Chefe de Redacção: Jaime Fernandes
Propriedade de: Diagrama - Centro de Estatística e Análise de Mercado, Lda.
Colaboradores:
Ana Rocha, Carlos Marinho Falcão, Célia Pedroso, Fernando Peres Rodrigues, Hermínio Duarte-Ramos, Humberto Boto, João David Nunes, João Freire de Oliveira, João Gobern, João de Menezes Ferreira, José Guerreiro, Miguel Esteves Cardoso, Nuno Infante do Carmo, Manuel Cadafaz de Matos, Pedro Ferreira, Raul Bernardo, Ricardo Camacho, Rui Monteiro,Trindade Santos.
Correspondentes:
França: José Oliveira
Holanda: Miguel Santos e João Victor Hugo
Inglaterra: Ray Bonici

Tiragem 16 000 exemplares
Porte Pago
56 páginas A4
capa de papel brilhante grosso a cores
interior com algumas páginas a cores e outras a p/b mas sempre com papel não brilhante de peso médio.

A Renovação da Música Popular Portuguesa (II), por António Candeias

O Rock Em Portugal

Penetrando na espiral de confusões, em que nos encontramos, estaremos nós a tentar separar coisa difíceis de separar, ou juntar coisas impossíveis de juntar?
Talvez a ideia que nós quiséssemos sublinhar e deixar bem claro, é que uma sociedade não pode existir como uma junção de bocados, estilos, culturas e ideias estanques entre si, sendo um dos aspectos mais importantes que definem a flexibilidade, maleabilidade e riqueza desta sociedade de que tanto se fala, o grau de permeabilidade e troca existente entre os diversos componentes que a definem.
A rotura entre determinados tipos de fenómenos sociais, culturais e políticos no seio de uma sociedade, existe e é por vezes, historicamente necessária.
Sem negar a especificidade, por exemplo, de um tipo de cultura, especificidade essa que se prende, entre outros aspectos e variáveis sociais etnológicas e de meio, será também necessário evidenciar o papel de combate político que a palavra «cultura» tem subjacente.
Esse papel é intensificado em tempos históricos determinados, em tempos históricos em que a palavra se vira para uma acção de combate, uma acção quase pedagógica, palavra extremamente dúbia e perigosa neste contexto. Mas é preciso compreender que fora destas alturas uma acção de combate cultural directa e imediatista, corre frequentemente o risco de se esvaziar em estereótipos que pouco t~em a ver com a realidade do dia-a-dia, num quotidiano em que a revolução imediata deixa de ter sentido, numa época em que a pausa e o questionamento crítico de um passado recente são tão necessários, como a tentativa de compreensão, de novos fenómenos sociais que crescem numa desordem para nós aparente e caótica.
Novas coisas, não previstas, tidas como ridiculamente proféticas e desprovidas, portanto, de um mínimo de credibilidade, acontecem e desabrocham rompendo tecidos e malhas de ideias ideológicas e esquemas, que, estafadamente, com a língua de fora tentam desesperadamente, integrá-las e assimilá-las, para talvez melhor as destruir.
Só que a realidade não é facilmente passível de ser destruída pelas ideias ao passo que o contrário talvez seja mais fácil, óbvio e necessário.
As pessoas que tinham dezoito anos no 25 de Abril, têm hoje 26, as pessoas que tinham 18 anos no Maio de 68 têm hoje 32 e as pessoas que hoje têm dezoito anos tinham 4 no Maio de 68 e 10 no 25 de Abril. Brinquemos! Brinquemos com números, datas, somas multiplicações e subtracções. Dividamos tudo isto por 0 (zero) e teremos um resultado inexistente e impossível.
0 (zero) foi o que muitos de nós tivemos mas sobretudo o que muitos de vós desta nossa querida terra tiveram, ao verem a Primavera de 68 por um binóculo censurado, ao som vago e distante do «Blonde on Blonde» e do «Sgt. Pepers Lonely Heart Club Band», tudo isto misturado com o ruído fragoso duma cadeira partida que determinou o começo do fim da pré-história das cerejas e das Cerejeiras.
Mas as palavras vêem, e a confusão parece instalar-se num artigo que tenta falar de música, e, que existe numa revista de divulgação musical. Sim, porque, que histórias são essas, de permeabilidade social, cultura de combate, roturas, torturas, números, idades, subtracções, divisões e cerejas?
É que isto é música! (É de mais!). Quer dizer, não é bem música, mas são coisas que aconteceram a muitas pessoas que fizeram, fazem, ouviram e ouvem música.
Questões como permeabilidade, troca, cultura e outras quejandas, podem começara a ser percebidas neste contexto, de uma forma muito simples. Por exemplo, através de uma conversa amena que fomos ouvindo, durante um não menos ameno jantar, em que havia músicos, críticos, amigos e outras coisas do género. Nesse jantar, às tantas o vocalista e compositor de um dos melhores grupos de Rock em Portugal, dizia o seguinte: «... Os músicos de rock, são os músicos que, hoje, em Portugal, ouvem mais tipos de música diferentes. Ouço os Telephone, os Clash, os Rolling Stones, a Brigada Victor Jara, os Trovante, o Sérgio Godinho; Zeca Afonso, Fausto, etc... Duvido muito que eles nos ouçam a nós...»
Pois é! É mesmo provável que os «outros» os não ouçam a eles! É mesmo provável que as pessoas que na década de 60-70, mais contribuíram para a renovação da música popular portuguesa, não ouçam alguns dos mais importantes compositores e eles próprios renovadores, da música portuguesa contemporânea, actual, de HOJE.
Mas como chamar música portuguesa a essa música que adopta a estrutura da música rock, estrutura essa, que como é óbvio, pouco tem a ver com a música portuguesa TRADICIONAL?
Bom, tenhamos um pouco de calma e sejamos realistas! Esta música que nos vem dos anglo-saxões lá de cima e dos seus descendentes e ex-escravos do lado de lá do Atlântico, é um tipo de música que existe em Portugal há já muitos anos, e que por cá deixou qualquer coisa, talvez não tanto como os romanos, mas... ainda assim, ficou cá qualquer coisa.
Talvez de uma forma algo confusa, que teve a ver com sentimentos ambíguos de identificação a uma realidade imaginada de liberdade e criação que se misturava a uma recusa difusa de ver e agir sobre o que à nossa volta se passava.
Quase que em determinada altura, em que o sectarismo cego face a outras formas musicais, era bem patente em muita gente, quase diríamos nós, que se poderia falar de uma subserviência colonial face ao que vinha cantando em língua inglesa.
Era, talvez, qualquer coisa do género da actual subserviência face àquela manta de retalhos em crise que insiste em chamar-se Comunidade Económica Europeia (C.E.E.).
Era tudo muito estranho e parecia existir em sonhos, visto que nessas produções se falavam de problemas que no nosso caso, aqui em Portugal, só poderiam existir ao nível do imaginário. Mas talvez o desejo de que existissem fosse tão grande, que valesse a pena alucinar. E creio que, a princípio, tratava-se de facto de uma alucinação, de uma miragem, de qualquer coisa bela e longínqua, de uma verdadeira e patológica alucinação. A princípio!
E talvez porque a alucinação e o imaginário são de facto necessários, o facto é que a música que era associada a essas alucinações, foi por cá ficando, continuando quase sempre, no entanto, a vir-nos de fora.
Os grupos de rock, vegetavam entre os concertos de finalistas onde tentavam reproduzir os «Rolling Stones» com fracos e patéticos resultados, mergulhados num amadorismo hesitante, com algumas pretensões a algo mais, sem no entanto se perceber bem em que é que consistia esse algo mais.
Que se passou para que isso se modificasse?
É difícil hoje, analisar esta questão sem nos arriscarmos a limitar e a deturpar os fenómenos sociais, que, na nossa opinião contribuíram para que esta situação se alterasse.
Apontemos, como pistas possíveis de trabalho, três tipos de questões a ter em conta, e que aparecem amplamente ligadas entre si.
A falência a nível de propostas políticas, sociais e culturais da esquerda portuguesa do 25 de Abril, que não soube dar vazão à generosidade e entusiasmo que a juventude lhe cedeu, o que acabou por se traduzir, entre outras coisas, pelo aparecimento em força do rock, apoiado na chuva de concertos de grupos estrangeiros. Lembremo-nos da avalanche de concertos dos anos 77/78/79, e os autênticos fenómenos de massas, que a nível da juventude, se deram, face a esses mesmos concertos.
A par de programas de Rádio (o «Rotação» da R.R., o «Soltem o Rock» e, mais tarde, o «Rock em Stock») cuja audiência e qualidade constituíram verdadeiras inovações, esses concertos, que deram á juventude portuguesa a sensação de que, finalmente, esse fenómeno que nos anos 60 se passava lá longe, lhes estava agora à mão de semear, foram extremamente importantes para que o rock, a nível musical e fenomenológico, fosse introjectado, adaptando-se a uma vivência extremamente problemática que «encaixava» perfeitamente com a violência das atitudes e sons que caracterizavam tal tipo de música.
E aqui, entramos no segundo aspecto que consideramos essencial para a compreensão desse fenómeno que foi a «instalação» do Rock em Portugal.
Do ponto de vista da evolução de uma estrutura social, um dos problemas mais graves que se põe, é a irrupção de um processo revolucionário que não consegue levar até ao fim a sua própria lógica e programa. Sem entrarmos em conta com apreciações sobre o próprio conteúdo desse programa, o facto, em si, de uma revolução inacabada, revela-se quase sempre catastrófico, face àqueles que não puderam acompanhar o aparecimento e evolução de tal fenómeno.
Ao ir suficientemente longe para destruir uma parte importante das estruturas do «Antigo Regime», faltando-lhe, no entanto, o «fôlego», a razão ou a força, para a construção do seu próprio programa, um processo deste tipo, acaba por dar origem a um vazio e a um impasse que se traduz a nível institucional, por uma confusão totalmente falha de coerência, cujas primeiras vítimas são precisamente as gerações que não puderam acompanhar, e portanto compreender a «Revolução».
E, uma das primeiras instituições a sentir o peso das ambiguidades e confusões que advêm deste tipo de situações, é sem dúvida a escola. A escola onde se encontra a maior parte da juventude deste País.
A escola deixa de ter saída para a Universidade, em que pouco se tocou, e o desemprego acentua-se, atingindo sobretudo os que ainda não estão a trabalhar, nem têm habilitações para ocupar cargos médios e superiores da estrutura social de um País.
Suportados financeiramente por famílias, que organizaram o seu pecúlio nos finais da década Marcelista e que com a revolução vêem o seu poder económico momentaneamente acrescido, esses jovens subsistem, com um vazio de perspectivas, mas com a necessidade de preencherem o seu futuro seja de que forma fôr, e quanto mais fácil e imediato, melhor: é aquilo que poderemos chamar necessidade de um escape, que a função, de início alienante, do rock, veio preencher.
De qualquer forma, como oposição a uma situação globalmente difícil e hostil, o jovem afirma-se filiando-se numa corrente de «atitudes» de contestação global, e por isso mesmo, de início, vaga, em que a identificação com os seus «pares» toma um papel de importância decisiva.
Essa identificação processa-se de diversas formas, tais como o tipo de indumentária adaptada, e, neste caso específico, a música que se ouve e que se discute. E essa música como atrás foi dito, adapta-se perfeitamente à vivência quotidiana da juventude dos nossos dias, e é por isso que ela a escolhe e integra. E uma das razões porque ela é escolhida, é pelo aspecto que ela toma, um aspecto de combate e luta que se traduz nas atitudes dos seus intérpretes e na violência mesmo a nível sonoro e de estrutura que a caracteriza. É portanto o começo de uma música de protesto. O começo, dizíamos nós. Porque, aqui vem o 3º componente de que atrás falávamos: as palavras.
Quando o Rui Veloso, autor que se considera apolítico, publica o seu primeiro álbum, onde retrata irónica mas «acidamente» o «freak da cantareira» e a «menina do shoping» e produz modelos de identificação, modelos esses que se caracterizam pela ambiguidade de sentimentos como o carinho implícito pelo «freak», e a descrição algo dura da «menina do shoping», ele produz uma revolução político-musical importante a nível de quem o ouve: As palavras são acessíveis, quanto mais não seja porque escritas em português, o texto tem uma certa qualidade, a realidade descrita nesses textos é uma realidade do quotidiano, e esses textos, quer o autor queira ou não, são tudo menos passivos.
Trata-se aqui, na nossa opinião, do primeiro passo para a construção de textos de combates, num combate que toma formas diferentes de combate tradicional, antigo e estafado, e que, por isso mesmo, se torna mais eficaz e importante.
E ao mesmo tempo que o Rui Veloso era ouvido na rádio, os UHF, insistindo na sua longa caminhada pelas estradas deste país, popularizavam esses históricos «Cavalos de Corrida», texto mais combativo e ácido, que se encaixava num grupo que se queria marginal, marginal face a tudo menos aos jovens que os ouviam; formavam-se os Salada de Frutas, e temas como o «Chui de Choque» e «Robot» eram assimilados e ouvidos por toda essa gente que queria ter entrada nos concertos de Cascais e que tinha levado com um chui de choque em cima para lhe mostrar que o rock também é político. Político, no sentido em que a juventude assusta e atemoriza os guardiões do Dogma (seja ele qual for) que não hesitam em lhe atirar com os seus cães de guarda para cima.
E os grupos formam-se, os textos desenham-se e a música rock, que nos anos 70, nada mais parecia senão um escape, vai-e de facto definindo como uma música de combate, dum novo, irónico e ácido combate que não perdoa instituições e guardiões das nossas queridas ideias e morais: os GNR aparecem, cáusticos, cínicos, com textos corrosivos, e a Guarda tenta boicotar-lhes os concertos. Tudo incomoda neste novo tipo de músicos: as atitudes provocatórias, a adesão que mostra que eles não estão sózinhos, a música algo violenta e que sempre provocou arrepios de cólera mal disfarçada por parte das cabeças bem pensantes que há muito que deixaram de pensar, e esses textos que não perdoam aquilo que nós sempre detestámos, e que melhor que nós, eles sabem denunciar, despir e ridicularizar.
Os G.N.R. atiram com o mito da C.E.E. para a lama, e deitam a língua de fora aos bonés salazaristas dos Guardas; os «Street Kids» fazem um realíssimo e desdenhoso manguito à tropa, e assim vai a música rock em Portugal, em gincanas bem humoradas e destrutivas, entre os escolhos das instituições, e os urros coléricos dos bastões da felicidade cobertos de flores sangrentas e podres dos que os empunham e impunemente os usam nas costas de quem não é (nem quer ser) como eles.
Portanto, claramente, e como é ÓBVIO, o chamado rock português, não é português visto que os seus textos se referem a países tal como o Burundi, Camarões, Filipinas e Madagáscar; é uma música alienante e reaccionária que tem como modelo o «Horst Wessel», o hino da Falange e canta loas ao Pinochet, ao Staline e aos outros todos; trata-se finalmente de uma importação do estrangeiro, tal como os Romanos, Cartagineses, Celtas e Árabes, que, como todos sabemos, nunca por cá estiveram, nem deixaram o que quer que seja em termos de produções e influências culturais e linguísticas; além do mais como ninguém ouvia rock cá em Portugal, antes destes estrangeirados pagos pela C.I.A. cá apareceram, torna-se óbvio que temos que recuar às músicas tocadas por Viriato e o seu alegre grupo e que para cúmulo e desgraça do nosso amor patriótico, está OH DESGRAÇA! sepultado em Espanha!
Portanto, e para acabar, resumamos e concluamos:
a) O «Rock» português, existe, é português, e é popular.
b) Nasce de uma série de influências musicais de origem anglo-saxona e os seus textos têm referências e ligações com a canção de protesto, de origem universal.
c) É um óptimo revelador social de uma parte viva e importante da população portuguesa: a juventude.
d) É uma das formas musicais mais actuantes, e renovadoras desse todo dividido em partes, que poderemos chamar de Música Popular Portuguesa.
Se este tipo de coisas o interessam, não perca, portanto a próxima provocação sobre a mundialmente famosa M.P.P.


Entrevista, por Pedro Ferreira
Raincoats
«A Música também Pode Provocar»




Encontrámo-las na casa do João, ali para o Bairro Alto. Na altura em que entrei na sala, deliciavam-se a ver os retratos que a Cristina tinha feito delas e da sua comitiva: a lápis de cera, traço incisivo e contínuo, cores fortes, contrastantes, colocadas sobre o branco do papel pelo seu puro valor visual. Uma sensibilidade despojada, sem terceira dimensão, mais sugestiva que descritiva. Uma actividade prolífica, a julgar pelo número de desenhos incluídos no bloco. Um talento imprevisto: estamos sempre a aprender.
A entrevista era o passatempo seguinte: Eu era «o banqueiro» deste monopólio desigual. À espera que eu distribuísse as primeiras cartas, a Shirley, a Vicky, a Ana e a Gina endireitavam-se nas cadeiras, desafiando-me.
- «Estamos prontas», avisavam. Eu só queria conversar. Que tal se começássemos pelos concertos havidos no Porto, Coimbra e na Festa da «Música & Som»?
- «No Porto foi melhor, havia um público misturado; em Coimbra eram só rapazes novos. Mas foi bom - batiam palmas ao mesmo tempo, é a maneira portuguesa de participar.»
É o pouco que sabemos fazer - bater palmas. Mas não acho que seja a melhor maneira de sentir a música das Raincoats. Terão elas a consciência das limitações do público na apreensão da sua mensagem?
- «A nossa música pode ser acessível, mas não é exigível que as pessoas gostem dela à primeira. Leva o seu tempo. Não temos uma atitude vanguardista, nem a nossa música é de vanguarda. Mas também não deixamos de seguir o nosso caminho, só para nos conformarmos aos cânones vigentes. Aliás, a reacção do público depende do contexto que acompanha a música, não depende só da música. E a música pode comunicar a vários níveis, não é necessário apreendê-la a um nível predominantemente intelectual, e por isso não pensamos que o nosso público seja necessariamente intelectual; o público tem diferentes maneiras de gozar o que fazemos. Mas, sem deixar de ser acessível, a música pode também ser provocante.»
Música provocante, sem deixar de ser acessível; uma música que provoca, também, reacções negativas de profissionais da música. O que têm elas a dizer da acusação de incompetência instrumental e musical?
- «Essa crítica provém de uma atitude académica e não democrática de abordar a música, porque pressupõe a necessidade de especialização, a primazia da técnica, a restrição da competência criativa. Para nós, o principal é comunicar o que se tem para comunicar, e isto tanto pode ser feito com uma técnica primitiva, como não.»
Mas talvez esta posição tenha telhados de vidro: elas sabem, ao menos, o que se entende por técnica e por formação musicais?
Sabem, já que Vicky é música profissional. A questão é outra: como transcender a aprendizagem dos clichés? Como fazer a música servir a criação? Como emancipar a técnica? Eu confesso-me perdido nesse labirinto de tradições, lacunas, (de)formações, urgências interiores, sedes de integração, ideias de som, dúvidas quanto ao sentido, a História e a Razão, a Vida e a Paixão, o caminhar e o ser, Monteverdi e a Mãe. ESTAR EM GRUPO: qual a importância do encontro na música das Raincoats? Sozinhas, teriam chegado aonde chegaram? Não teriam sido dominadas pela música institucional? Não teriam deixado de descobrir a Arte?
Vicky - «A Ana e a Gina aprenderam música a tocar no grupo, abordaram-na do lado dos sons e dos sentimentos, não passaram pela técnica - por isso, no seu caso, só podemos especular. Mas no meu, sucedeu o contrário: tive de aprender a não tocar demasiado. Este grupo tornou-o possível - já tinha tocado noutros grupos antes, e não tinha achado a maneira de me emancipar.»
Então há uma diferença entre este e os outros grupos. Talvez as Raincoats não sejam só um grupo de música...
- «Temos uma maneira unificada de trabalhar, mas que vai para além da música. Temos uma visão geral das coisas que é comum; é assim uma espécie de humanismo, que cada um de nós sente politicamente de forma diferente. Temos um horizonte e uma comum necessidade de trabalhar nessa direcção.»
Mas isso será assim tão simples? Em Portugal, depois do 25 de Abril, todo o peso da tradição cristã se fez sentir na maneira como as pessoas se deixavam, ou não, interagir: exigiu-se um ponto de referência estável - uma ideologia política, um Bíblia, um ideal de relacionamento humano, um ideal de alimentação - e, com o julgamento / reunião / autocrítica / revisão-de-vida assim fundado, explorou-se ao máximo a polaridade dever-culpa, em detrimento da natural assimetria, da natural não universalidade, das formas de relacionamento colectivo. Um grupo eras, assim, submetido a um esquema simplificador, pretensamente alternativo, desejavelmente multiplicável, concorrente do núcleo familiar, mas assumindo, ao contrário deste, uma autoridade abstracta, facilmente corporizável em directivas de aparelho.
Foram comunidades de base, foram células de partido, foram cooperativas, foram agregados informais.
Podiam ter sido grupos de rock.
Em Inglaterra não houve tanta urgência. Mas pululam ideologias. Como tem sido convosco?
- «A atitude é não ter UMA atitude. Temos códigos de valores pessoais, não um código de grupo. Não conversamos entre nós para satisfazer uma qualquer exigência moral exterior, fazêmo-lo voluntariamente, como parte do nosso processo. E não achamos que as coisas se devam conformar a um qualquer ideal apriorístico. Temos até consciência dos riscos que envolve querer romper, a todo o custo, com os habituais modelos de comportamento, com a família; há gente que anda perdida, confusa, e acaba por criar famílias alternativas, por sentir a falta da afecção e protecção familiares. O equilíbrio entre o individual e o social é difícil de conseguir.»
Esta ausência de PRECONCEITO estende-se também, à música: pode aprender-se com toda a gente, não é preciso, nem desejável cingir-se a uma só forma de música. Mas há Pré-conceito, e Pré-visão. Haverá total coincidência entre intenção e resultado musicais? Não existirão limites à vossa capacidade criativa, motivada precisamente pela dependência entre imaginação e concretização, entre intenção e técnica? Ou esta dificuldade não se faz sentir?
VICKY - Sim, eu sinto-a.
GINA - Eu não.
ANA (aceitando o jogo) - De vez em quando.
VICKY - Mas eu sinto que o que fazemos podia ser melhor, podia...
ANA - Não se pode isolar o resultado do processo de fazer as coisas. Eu não me sinto frustrada pelo que faço no grupo, sinto o processo não como uma limitação, mas como um estádio.
GINA - Mesmo que quisesse não conseguia imaginar um LP antes de ter começado a fazê-lo.
VICKY - Eu também não, mas mesmo assim há um fosso entre intenção e resultado... Sinto-me continuamente frustrada...
SHIRLEY, ANA e GINA, em coro - OOOHHH, coitadinha!
VICKY - É como numa conversa: nunca tenho uma conversa em que não sinta que podia ter comunicado melhor.
GINA - Precisamente, eu sinto isso na conversa, mas não na música.
VICKY - É verdade que se não procurássemos realizar uma ideia, as coisas não aconteceriam... mas podiam acontecer mais satisfatoriamente.
ANA - Mas eu não sinto isso como frustração: acho é que da próxima vez será melhor ainda.
M&S - Posso sugerir que a Vicky sente isso, e vocês outras não, porque tem treino musical? Como assimilou mais profundamente a linguagem musical, pode mais facilmente pensar a música, pode mais facilmente tencionar a música, porque a intenção é a projecção de uma possibilidade concreta dada pela linguagem. Talvez o que provoque o sentimento de Vicky seja a sua maior consciência do lugar que deviam ocupar, no sistema da linguagem musical utilizada, os acontecimentos sonoros a que vocês dão origem no vosso trabalho.
VICKY - Pode ser. Pode Ser. Mas também sou eu.
ANA - Não fiques deprimida. Qualquer dia aprendes. A gente ensina-te!



Alguns artigos interessantes, para futura transcrição:
. Barbaridades, Paixões e Ovnis, artigo de Célia Pedroso sobre os "The Passions"
. Discos em Análise:
.. Júlio Pereira - «Cavaquinho» [Diapasão DIAP 20001], por Carlos Marinho Falcão
. Siouxsie & The Banshees - «Juju» [Polydor 2383 610], por Ana Rocha
. Yes - «Yesshows» [Atlantic 60142], por José Ângelo Guerreiro
...&Som
. Princípios Dos Microfones
.. Microfone de carvão
.. Microfone electrodinâmico ou de bobina móvel
.. Microfone de fita ou de velocidade
.. Microfone piezoeléctrico ou de cristal
.. Microfone electrostático ou de condensador
.. Microfone de electreto





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