autor: Luís Jerónimo e Tiago Carvalho (compilação, introdução e prefácio)
título: Escritos de Fernando Magalhães - Volume III: 1995
editora: Lulu Publishing
nº de páginas: 336
isbn: none
data: 2016
prefácio: Luís Marvão
Texto/Citação na Contracapa (se fizerem o download vê-se bem, mas aqui fica):
Swing é palavra que não consta no vocabulário de Bill Frisell. Abstraccionista, falta-lhe a pulsão anarquista e convulsiva de um Elliott Sharp ou de um Christy Doran. Esteta, não tem a largueza de visão dos contemplativos da ECM como John Abercrombie ou Ralph Towner. Académico, embora encapotado, falta-lhe a polivalência de um Terje Rypdal ou de um Pat Metheny. “Live” poderia ser, ao menos, um espaço de comunicação e diálogo entre os três músicos, versão “power trio”, com o baixo de Driscoll e a bateria do pau para toda a obra que é Joey Baron, no contexto das “novas músicas”. Infelizmente, o estilo de Bill Frisell caracteriza-se pelo autismo. Os outros aguentam o barco, vão atrás e acrescentam os pormenores de esboços cuja articulação obedece, de forma absolutamente coerente, ao conceito “verbo de encher”. Frisell devia ter aprendido com Buster Keaton e passar a fazer música muda.
FM
Prefácio
"Felix Kubin vem ao Lux pôr discos. Pensou em
"heavy metal" coreano, só que "a organização não deixou". O
primeiro par a saltar para a pista ganha um crânio electrificado."
Fernando
Magalhães, PÚBLICO, 02-03-2000.
Escrever o prefácio de um livro
dedicado ao trabalho e obra do jornalista Fernando Magalhães não é tarefa fácil
para o autor destas linhas, voraz consumidor de músicas várias e cujo gosto foi
fortemente contaminado pelos textos do crítico com quem travou conhecimento e
desenvolveu amizade. Com a revisitação dos textos de Fernando Magalhães, vêm
recordações de momentos significantes do tempo passado, concertos, sessões de
músicas, jantares e outros episódios de confraternização cuja cronologia perdi
o rastro.
Conservo na
memória aquela noite de quinta-feira do ano 2000, em que o conheci.
Encontrava-me no Lux na companhia de dois amigos, o Mário e o Tiago, para
assistir à sessão musical de Felix Kubin, esteta das electrónicas, que nos
prometia levar em estranhas aventuras musicais até a "um saudável estado
de histeria". Tínhamos combinado via Fórum Sons encontrar-nos nessa noite
com o Fernando Magalhães, mas até então dele apenas conhecíamos a escrita, não
o homem. Nunca mais me esqueci da forma como nos interpelou quando nos
dirigimos ao bar: “Mário Z?”. O nome era indissociável do Fórum Sons do
PÚBLICO, comunidade imaterial onde a música era fonte de apaixonada discussão,
união e desunião.
Enquanto leitor
das críticas musicais do Fernando Magalhães, só o fui ao tempo dos suplementos Pop-Rock
e Sons, do PÚBLICO. Leitor tardio, porém não imune à escrita imagética,
cheia de bonomia, humor e por vezes também cruel. Deliciosamente cruel. Era
impelido ao consumo discográfico por causa daquelas críticas e esperava
ansiosamente pela Sexta-feira, dia em que saíam aqueles suplementos.
Como crítico de
música, o Fernando Magalhães denunciava um saudável ecletismo. Havia também
outros bons exemplos nas páginas do Pop-Rock e dos Sons que muitas saudades me deixaram.
Seria injusto não o reconhecer.
Do rock progressivo
à cena Canterbury, do Krautrock germânico às músicas electrónicas
contemporâneas, dos sons celtas e nórdicos às geografias do continente
africano, sem esquecer o jazz, eram muitas e multifacetadas as latitudes por
onde irrompia a escrita do Fernando Magalhães. Uma escrita que tinha o condão
de nos levar para territórios desconhecidos, alargando horizontes e desafiando
percepções. Recordo excertos do artigo Mercador
de Sonhos, dedicado ao álbum Shleep, de Robert Wyatt: “Shleep” é uma mistura de
'Sheep' com 'Sleep'. De massificação com dormência”... “O sono e o sonho, uma vez mais. A
comandarem o mundo, simultaneamente secreto e luminoso, esculpido em
cicatrizes, de Robert Wyatt".
Os elementos de contextualização das
obras discográficas e dos músicos, impregnados no corpo da crítica, como que em
grandes pinceladas impressionistas, eram também traço da sua escrita.
Contextualizações a partir de referências culturais, históricas ou filosóficas
vinham acrescentar sentido à reportagem ou ao texto crítico sem lhe retirar
aquilo que de mais essencial tinham: a singularidade do autor e da obra. E tudo
com uma grande fluidez e simplicidade. Ilustro-o com passagens do artigo sobre
a vinda a Portugal da cantora grega Savinna Yannatou: "Em torno do mediterrâneo, em viagem
com os judeus sefarditas, em transe num café de rebetika, em louvor da Virgem
Maria. Por aqui tem andado a voz sensual da cantora grega Savina Yannatou,
expoente das músicas do Sul. Esta noite, no Grande Auditório do CCB, em Lisboa,
poderá voar ainda mais longe. " [...] "É verdade que a voz e a presença física de Savina Yannatou nos
recordam que a ascese espiritual não dispensa um ou outro frémito do corpo. E
que na origem da música rebetika (na qual, aliás, Savina faz ocasionais
incursões) também estão umas boas cachimbadas de haxixe turco as quais, de
certa forma, ajudam a que soe ainda melhor. Mas nela o erotismo radica em
correntes mais profundas do ser, num veio de sol, a luz e mar que empurra
suave, mas firmemente, a alma para o êxtase. Coisa mística, enfim. Mas
deleitosa."
Havia algo
de lúdico nas suas críticas, talvez o Fernando se divertisse muito durante o
processo criativo de composição dos textos, sobretudo quando o alvo era algum
dos seus ódios de estimação, arrisco dizer.
Desfazer alguns dos nossos mitos musicais era uma especialidade
dele. Sempre com muito humor,
aquele humor desarmante que trazia
sempre consigo. Recordo a forma como classificou os Godspeed You Black Emperor
(GYBE), em jeito de desabafo meio divertido, no concerto do Paradise Garage, em
2002: "Isto é sempre o mesmo. É música do ora vai acima, ora vai
abaixo!".
Esse lado
lúdico estava presente no Fórum Sons, espaço virtual dedicado à música, criado
pelo jornal PÚBLICO e animado pelo Fernando Magalhães. Num tempo em que a
internet ainda se afirmava, ele abriu a
muitos de nós as portas da percepção para diferentes universos musicais. E deu
largas a muitas das suas paixões, como os Van Der Graaf Generator e Peter
Hammill ou os Can, entre outros nomes maiores da galáxia Kraut. Num olhar
reprospectivo sobre essa época, decorridos hoje mais de vinte anos, diria que
foi obra de serviço público o trabalho do jornalista e crítico musical no Fórum Sons. Musicalmente falando,
crescemos muito no seio daquela comunidade virtual. Incontáveis foram as listas de álbuns discográficos, as revisitações de
décadas da música e os escritos para atender aos pedidos dos cibernautas de
então.
Falar do
Fernando Magalhães é pois falar de generosidade, da vontade de partilhar com os
outros o conhecimento e a paixão pela música.
Um sentimento de liberdade criativa perpassa pelas suas críticas
musicais, algo que estou em crer não passará despercebido aos novos leitores,
tenham eles a curiosidade ou a audácia para adquirir este livro, o Volume III
de uma compilação de entrevistas, artigos e reportagens de concertos.
A presente
compilação de textos jornalísticas dá relevo à música portuguesa, quer à de
raiz popular, quer à de feição mais pop e rock, sem esquecer as
margens do experimentalismo. Desfilam nomes como os de José Mário Branco, de
Sérgio Godinho ou da Brigada Victor Jara, entre muitos outros, e são
revisitados álbuns intemporais da música popular portuguesa, como “Por este rio
acima”, de Fausto, ou “Coisas do Arco da Velha”, da Banda do Casaco,
para destacar apenas alguns. A par
destes, juntam-se objectos estranhos resgatados de um qualquer tempo perdido,
exemplos de “Plux Quba-Música para Setenta Serpentes”, de Nuno Canavarro, ou dos “Ocaso Épico”, de
Carlos Cordeiro (Farinha). Deveras rica
a complicação de textos dedicados à música portuguesa, bem merecedora do nosso
olhar. Já quanto à secção dedicada aos estrangeiros, reportagens de concertos,
de John Zorn, Laurie Anderson e Art Zyod, aliam-se a entrevistas e artigos
sobre gente que deu novos mundos à música, como o mexicano Jorge Reyes e o
americano Jon Hassell ou esses aventureiros alemães, os Embryo. A galeria de
nomes é infindável, dos Cluster a Eno, de Scott Walker a Marianne Faithful ou P
J Harvey, passando pelos Art Zoyd e os Area,
sem esquecer a Nico e o cinema de
Philippe Garrel. Muito há pois para descobrir ou revisitar em escritos que não
perderam actualidade e fazem prova do ecletismo que era apanágio do antigo
crítico do PÚBLICO.
Ao escrever
este breve prefácio, posso não ter ficado imune ao pecado do panegírico.
Pretendi tão-só exprimir a minha admiração pela obra e o homem. Quando recordo
os jantares com o Fernando Magalhães na Ribeirinha do Sado e as sessões
musicais que se seguiam no MARR, ou a eterna festa que era o Cantigas de
Maio, fica só a saudade.
Ao Fernando.
Luís Marvão
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