Música & Som
Nº 97
Novembro de 1984
Publicação Mensal
Esc. 150$00
Director: A. Duarte Ramos
Chefe de Redacção: Jaime Fernandes
Propriedade de: Diagrama - Centro de Estatística e Análise de Mercado, Lda.
Colaboradores:
Amílcar Fidélis, Ana Rocha, Carlos Marinho Falcão, Célia Pedroso, Fernando Matos, Fernando Peres Rodrigues, Hermínio Duarte-Ramos, João Gobern, José Guerreiro, José Tavares, Manuel José Portela, Manuela Paraíso, Nuno Infante do Carmo, Pedro Ferreira, Rui Monteiro,Trindade Santos.
Correspondentes:
França: José Oliveira
Inglaterra: Ray Bonici
Tiragem 16 000 exemplares
Porte Pago
56 páginas A4
capa de papel brilhante grosso a cores
interior com algumas páginas a cores e outras a p/b mas sempre com papel não brilhante de peso médio.
Os Cure E O Universo Emocional
por Luís Maio
Trata-se aqui de levar a efeito uma abordagem da produção musical dos Cure a partir da consideração retrospectiva dos seis trabalhos de longa duração até agora editados pelo agrupamento. A tematização desses trabalhos incidirá principalmente sobre um tópico que procuraremos salientar como uma das suas linhas de força. A saber, a emoção tomada como objecto essencial de expressão na música dos Cure. Haverá que começar por esclarecer a significação desta ideia de base.
De um modo geral, uma análise discográfica entra em linha de conta com o alcance emotivo da obra analisada. Mas quando este aspecto é tomado em atenção, tende-se a pensá-lo como acessório sugestivo da expressão musical propriamente dita, acentuando-se a diversidade do expresso e do sugerido. Mais concretamente, considera-se que aquilo que se sugere, a emoção, é uma espécie de recurso persuasivo daquilo que se expressa, um meio de sedução visando a aceitação de conteúdos de teor sócio-político ou outros. Como é óbvio, isto implica ver na emoção algo que a música provoca como efeito, logo, que está para lá dela, no plano das consequências impressivas que é capaz de provocar no auditor.
A adopção desta perspectiva implica a subestimação de um vasto grupo de obras musicais centradas na expressão ou exposição do universo emocional. Com efeito, há toda uma série de criações em que a emoção não é pretexto, mas a própria essência do texto musical - uma emoção, a tristeza, por exemplo, não é então um atributo da experiência auditiva do receptor, mas um predicado da própria música. É no conjunto das produções musicais detentoras desta qualidade que consideramos integrados os Cure.
I. «Three Imaginary Boys [UK] / Boys Don't Cry [US] (1979)
É um dado adquirido para a psicologia do comportamento e para a filosofia do espírito, que a emoção é uma representação interior ou subjectiva, com uma contrapartida emocional ou objectiva. Deste ponto de vista, a expressão da emoção através da obra, nomeadamente de ordem musical, consiste na «encenação» da sua contrapartida exterior. Naturalmente, o valor de uma tal criação depende da maior ou menor capacidade de induzir o receptor a reconhecer o estado de espírito que intenta representar. Partindo destas premissas, consideremos o LP de estreia dos Cure. Saído num momento em que o movimento punk é ainda predominante, o disco traz a marca nítida dessa fonte de inspiração. Ora, ao nível das emoções, o punk tece-se no enredo dialéctico de duas famílias de sentimentos, nem sempre dissociáveis: uma mais passiva (frustração / angústia / desespero); outra mais activa (fúria / ódio / revolta). Precisamente, são essas áreas emotivas que nos reaparecem sabiamente articuladas no primeiro álbum do agrupamento liderado por Robert Smith.
Ele não copia, o turbilhão sonoro do punk, analisa-o e decompõe-no nos seus elementos basilares, cofere-lhes uma tonalidade mais sóbria e agreste; é o caso, por exemplo, de «Accuracy» e «Glinding Halt». Ele não repete o fraseado grosseiro dos punks, antes recupera poeticamente o seu núcleo ideológico; aqui, há que referir títulos como «Boys Don't Cry» e «Subway Station». Desta forma, o primeiro Cure produz-se na fecunda recuperação da carga emotiva inerente ao punk, possuindo uma autenticidade e imediatez que o grupo raramente voltaria a igualar.
II. «Seventeen Seconds» (1980)
«Seventeen Seconds» não é o disco que mais se esperaria depois de «Three Imaginary Boys», pouco ou nada explorando as criativas pistas musicais por ele lançadas. Todavia, também se pode dizer que aquele é uma consequência previsível deste, ainda que menos directa; assim, se o primeiro Lp dos Cure se produzia como reacção emotiva ao mundo exterior, o segundo surge como reacção a essa reacção. Procuremos explicar-nos: «Three Imaginary Boys» desembocava na revolta contra o outro do sujeito que é o mundo exterior; a revolta, regra geral, é um caminho que não conduz onde se quer chegar, neste caso à reconciliação positiva do eu com o outro; assim, o eu chega à aniquilação do não-eu, ao desencantamento e à solidão - é esse mesmo o estado emotivo que se faz sentir em «Seventeen Seconds». Na verdade, este disco representa uma aposta de Smith na distância. Virando costas ao domínio da acção e da realidade concreta, refugia-se numa interioridade lúdica mas apática, quase destituída de vida, como em «In Your House» e «At Night»; dela só desperta por instantes breves, caso de «Play For Today», a excepção que confirma a regra.
O problema deste «Seventeen Seconds» consiste em o novo teatro de emoções apresentado pela companhia Cure ser, por assim dizer, mal montado, havendo um enorme desfasamento entre aquilo que representa e aquilo que se propõe representar. Smith deseja mostrar distanciamento face ao outro na pessoa do estado actual das coisas - mas, o seu intento sai fracassado, a música que quer exprimir distância, destituída de capacidade para o fazer, acaba por se tornar ela mesmo distante e desinteressante. As letras triviais, os ritmos arrastados, as melodias ociosas de «Seventeen Seconds» fazem fazem do disco qualquer coisa que se ouve, mas que não se escuta verdadeiramente.
III. «Faith» (1981)
Tal como o seu predecessor, o terceiro Lp dos Cure representa um forte investimento na interioridade, revertendo num hermetismo individualista oposto à relação com o outro que é o mundo, instância perversora da integridade pessoal. Mas, apesar da similitude, «Faith» inscreve-se num nível de interioridade bastante diverso. Como dissemos, «Seventeen Seconds» era um testemunho de desilusão e renúncia perante a impossibilidade de transformar a realidade. Era, portanto, uma obra em que a relação ao outro era ainda tomada por referência, em que a expressão emocional emergia como forma reactiva à realidade. Agora, «Faith» é já o mergulho integral no oceano da interioridade emocional, o disco em que o domínio das emoções é retratado despido de qualquer carga reactiva. Abstraídas do contacto com o plano do concreto, as emoções surgem como instâncias espirituais autónomas, que fluem pela vontade exclusiva de quem as desencadeia. E o que se entrevê na música de Robert Smith é uma franca atracção para a dor, para o culto da autopunição tida por espécie de via ascética e emotiva para a fé (a fé salvífica como sentimento isolado de um objecto exterior e concreto).
A impressão musical deste modo de estar é superiormente concretizada em «Faith». Desde o início de cada composição, o baixo e a bateria são cadenciados, de uma regularidade quase maquinal; sob este fundo rítmico, as teclas entram em cena no desenvolvimento de harmonias suaves envolventes. Assim se criam atmosferas musicais que convidam à intimidade, finalmente introduzida pela voz ou pela guitarra que nelas deambulam, como as emoções no interior do nosso espírito. Os casos mais brilhantes desta combinação de elementos musicais são «Funeral Party» e «Faith».
IV. «Pornography» (1982)
Se a emotividade está presente em todos os discos dos Cure, em «Pornography» está-o de modo mais extremado. Neste quarto trabalho do agrupamento, todo o recurso ao plano da objectividade é banido - do real, como do pensamento, só fica o espectro sombrio ao nível emocional. Mesmo no plano das emoções, nada se pode discernir de nítido ou de definido, mas encontra-se no seu lugar uma turbamulta de sensações que nos instalam no mais completo vazio. «Pornography» é, acima de tudo, um disco niilista, em que Robert Smith se empenha em levar até às últimas consequências a sua experiência de autodestruição emocional.
Mais uma vez, a representação musical dessa experiência de ser é perfeita. As letras são sequências de frases confusas, sem sentido, vomitadas por uma voz visceral, impregnada de pérfido tormento; por sua vez, o som instrumental é o rigoroso complemento desses elementos: não há ritmos, não há trechos melódicos distintos e autonomamente prosseguidos, mas uma contínua avalanche de sons caóticos. A consequência desta estratégia compositiva adequada ao objecto representado é, todavia, desastrosa para o auditor: «Pornography» é um disco cansativo e ensurdecedor que, excluindo uma ou outra faixa, como «The Hanging Garden», é praticamente inaudível.
V. «Japanese Whispers» (1983)
Depois da tournée de «Pornography», em virtude do estado de tensão e violência que a música dos Cure exercia sobre os seus próprios criadores, o grupo desmembra-se e cada qual segue o seu próprio caminho. Pelo seu lado, Robert Smith intensifica o trabalho de guitarrista dos Siouxsie, o qual vinha a desenvolver desde 79 e, com o baixista desse agrupamento, Severin, inicia uma experiência sonora com o título de The Glove. Estas actividades parecem ter insuflado uma nova vida ao moribundo arquitecto de «Pornography» e, quando volta a gravar com Lol Torhurst sob o nome de The Cure, é já com outro espírito, menos tenebroso e vazio.
Em 83, sai «Japanese Whispers», uma colectânea dos singles lançados nesse e no ano precedente. Embora sem a homogeneidade emocional dos álbuns precedentes, este é ainda um disco em que é possível notar uma certa continuidade de sentimentos. Smith mudou: perdeu um pouco da sua obsessão interiorista que o conduzira ao mais negativo vazio, voltou-se para o mundo exterior que, se não pode louvar, tem de tolerar como um mal menor. Assim, assume perante o outro uma atitude de indulgência mesclada de cinismo.
Isso está bem patente nas letras de «Japanese Whispers», mais superficiais e menos personalizadas, tomando a forma de registos da vida vulgar apresentados no espírito de esplendor e miséria que só a negligência sabe tecer: os exemplos mais flagrantes são «The Love Cats» e «Let's Go To Bed». A voz que canta essas palavras, a música que a acompanha, não são menos significativas, fazendo apelo a géneros musicais do passado, tal como o swing, recuperando um tom de falseto que provoca o riso e convida à dança; a este respeito além das faixas já mencionadas, é também de referir «The Walk». Em suma, em «Japanese Whispers» sopram os ventos da mudança e da invenção que reanima a alma Cure.
VI. «The Top» (1984)
«The Top» é, de alguma forma, uma solução de compromisso entre a interioridade assumida no passado e a alternativa de reabertura ao outro presente em «Japanese Whispers». Com efeito, por um lado, nota-se a recuperação do desejo de se sentir a si, como se mais nada houvera no mundo, desejo de isolamento e dor; por exemplo, em «The Empty World» e «The Top». Por outro lado, assinala-se o regresso à atitude de negligência irónica que aceita, escarnando, a realidade tal como ela aparece; ilustram esta vertente de «The Top» títulos como «Birdman Girl» e «Caterpillar».
O jogo entre as duas coordenadas do trabalho dos Cure é, todavia, pouco feliz. e isto porque, em primeiro lugar, as palavras cantadas em «The Top», além de nada trazerem de novo, denotam uma dificuldade de expressão que nos leva a supor a exaustão das faculdades criativas de Smith - para o constatar, oiça-se, principalmente, «Dressing Up» e «Piggy In The Mirror». Depois, em segundo lugar, a necessidade de inovação inerente à música pop leva Smith a recorrer desastrosamente a géneros musicais completamente estranhos à «personalidade» Cure, como o hard-rock - ouça-se (mas pouco) essa aberração intitulada «Shake Dog Shake».
Vivendo de interdições, num espaço emocional que vai da negação do outro à recusa de si, a música dos Cure encontra-se num impasse. Que se decida, ou por si, ou pelo outro.
Alguns artigos interessantes, para futura transcrição:
. Siouxsie And The Banshees - State Of Shock, por Célia Pedroso
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