Underworld - Entulho Informativo
Nº 18
Distribuição Gratuita
48 páginas, cores (8 primeiras páginas e 8 últimas), resto a p/b
Tiragem: 9000 exemplares
Editor: Joaquim Pedro
Editor Redactorial: Ricardo Amorim
Colaboradores: Afonso Cortez, a-morais, Ana Brasil, David Soares, Luís Oliveira, Lurker, Marte, Mauamor, Miguel Arsénio, Nuno Martins, Pedro Ahmed, Pedro Nunes, Ricardo Martins, Rick Thor, Rodrigo Pereira.
Lightning Bolt
A Mimese Contra-Natura
Um raio nunca atinge o mesmo lugar duas vezes. Provoca algum pavor esse dizer que atribui rédea solta à imprevisibilidade da natureza. A civilização desenvolveu para si recipientes onde o meio é exposto de forma ordeira e domesticada, como se tal servisse de antídoto aos receios provocados pelo ímpeto descontrolado da natureza. O Underworld convidou até ao seu domínio o exército dos doze macacos comandado por Brian Chippendale, metade dos Lightning Bolt.
Por Miguel Arsénio | Ilustrações de Brian Chippendale.
- Fala-me um pouco do percurso que separou o "Wonderful Rainbow" de "Hypermagic Mountain". Podemos estabelecer "Mountain" como o pote de ouro (na extremidade do arco-irís)? É um daqueles discos a que só chegariam após atravessar os três anteriores?
. Cada disco representa o produto de tudo o que lhe é anterior... Em muitos aspectos, este poderá ter sido uma reacção aos últimos dois, "Ride The Skies" e "Wonderful Rainbow". Discos esses que não captavam a nossa vivacidade e rapidez tal como queríamos... O "Mountain" demonstra que estamos mais calibrados e rápidos que nunca, após centenas de concertos. Os primeiros álbuns nem precisam de ser necessariamente equacionados, mas os anos de trabalho conjunto sim. Pode ser o tal pote de ouro, a conferir um sentido de oclusão a tudo o que fizemos. Retira elementos a todo o nosso percurso, sem os adulterar, mas apurando e domindando-os. Espero eu.
- A natureza parece ser um tema recorrente em "Rainbow" e agora em "Mountain". Quão próximos se sentem da natureza e da sua imprevisibilidade e tragédia?
. Enquanto ser humano, tenho uma sola de borracha, um chão emadeirado e uma fronteira de betão que me separa da terra. A montanha mais próxima fica a duas horas daqui, mas o oceano fica próximo. Somos uma banda de cidade. Uma pequena cidade, mas ainda assim urbana. Mas creio que ao sonharmos, o façamos projectando a vastidão, e a natureza é vasta. Ao tocarmos, esforçamo-nos para que isso resulte num sonho. Almejamos a algo que ultrapasse a condição humana. Quando referes a imprevisibilidade e tragédia, isso aponta para tsunamis na Ásia ou terramotos em Caxemira. Tenho medo do poder da natureza, mas nem tudo nela é morte. É também vida, e é pura.
- Atendendo a que "Hypermagic Mountain" foi praticamente elaborado a partir de improvisações, acreditas que o disco possa constituir um passo em frente na emulação da experiência ao vivo ou tal contacto directo será impossível de encapsular em disco?
. O "Mountain" é o disco que mais se aproxima da experiência ao vivo. Podíamos ter feito melhor, mas o melhor será sempre uma gravação do que se tinha passado. São para mim circunstãncias distintas, mas esse foi um dos objectivos: alcançar a energia de um concerto.
- Haverá hipótese de um dia virmos a escutar as demos de duas pistas?
. Referes-te às improvisações que gravámos há um ou dois anos? Acho que já deixámos empoeirar esse material!... Creio que o Brian Gibson [a outra metade dos LB] usou apenas uma ideia dessa pilha de 12 horas de fita, tendo-a aplicado à conclusão de "Dead Cowboy" [de "Hypermagic Mountain"]. Ainda existe uma série de grandes momentos nessas gravações que um dia conhecerão a luz do dia!
- O que vos levou a optar novamente por Daven Auchenbach como produtor do disco?
. O Dave é impecável, na medida em que nos escuta com a devida atenção e tenta arduamente reflectir sobre o nosso som. O gozo das improvisações conduziu-nos a um novo processo que acabou por resultar no novo disco. Metade de "Mountain" foi composto através desse modo: apenas duas pistas e faixas, como "Bizarre Bike", em que o Dave misturava o material ao vivo. Foi divertido. É difícil julgar todo o nosso material e decidir se a relação LB/Auchenback é perfeita, já que os últimos três discos soam tão díspares entre si. foram gravados em estúdios de qualidades diversas e todos pintam um retrato diferente da banda, mas o Dave é flexível e está sempre à altura do desafio (volume, abordagem e temperamento que lhe apresentamos). Além disso, ele persegue-nos por todo o lado. Não conseguimos evitá-lo!
- Partilha connosco alguns detalhes relativos a títulos provisórios como "Scribblemania 2" e "Frenzy" [ambos referentes a "Hypermagic Mountain"]. São da vossa autoria? Ou constituem apenas termos aleatórios para "trabalho em progresso"?
. "Scribblemania 2" provém do uso que a cultura pop faz do termos "mania" (seja "wrestlemania" ou outra palavra qualquer). "Triple Mania 2" é o título de um disco de Crash Worship (uma das minhas bandas favoritas), mas nem me recordei disso até adicionar o 2 ao nosso título. O outro motivo prende-se a um comentário feito por um colega de quarto após ter escutado a primeira sessão de estúdio: "Tocam tão depressa que quase parecem estar a arabiscar por tudo o que é sítio...". É uma palabra engraçada (n.r._ o "scribble" tal como o "rabiscar"), mas obviamente não o suficiente. Por isso, rejeitámo-la. "Frenzy" foi o título provisório que atribuímos ao material improvisado. Existe sempre um conjunto de secções de algumas composições ou sets em que tentamos atingir o "frenesim". Ou seja, ser tão dementes quanto possível.
- Sentes que a aclamação generalizada de que "Wonderful Rainbow" foi alvo poderá ter suavizado, nem que sej apor um pouco, o vosso núcleo?
. A aclamação deixa-me louco. É agradável ser elogiado, mas isso não nos leva a tocar ou a sentir melhor após o breve momento de contacto com o texto ou verbalização. Sem dares por isso, encontras-te a competir com uma irrealidade escrita acerca do que estás a fazer. Posto isto, estou certo de que, se toda a gente odiasse o que fazemos desde o início, sentir-me-ia desmotivado. A aclamação é uma espada de dois gumes. Pode até ser que tenha suavizado um pouco o nosso núcleo, mas não me parece que "Mountain" seja um disco mais suave. Daí que acredite que não. O mundo está mais difícil do que nunca, com ou sem "Wonderful Rainbow"...
- Sentes que o abismo entre mainstream e underground pode aguçar a vossa convicção? A apreciação dos fãs permite-vos uma auto-suficiência de acordo com os vossos próprios termos?
. Por cada pessoa que acha que devíamos tocar num palco, duas alegam que nos devemos manter ao nível do solo [um concerto tradicional dos LB tem lugar ao nível do público que rodeia os músicos], mas acho que o nosso apego ao underground se deve essencialmente ao facto de que aderir ao mainstream implica abrir mão do ritmo que achas melhor para ti. Não consigo conceber uma label mais descontraída que a Load, e muitas vezes já motiva a demasiadas preocupações. Tens razão, existe um abismo negro entre os ícones de mainstream que cumprem a carreira à sua maneira, e os Lightning Bolt, que têm total poder sobre as decisões de carreira. O mergulho que conduz ao lado negro é demasiado perigoso. Mas que sei eu? O próprio Yoda, o mais sábio dos seres do sistema solar, participou num anúncio ao refrigerante Mountain Dew. Acho que o mainstream comporta um maior número de lementos destabilizantes que estabilizantes.
- A Load Records opera como uma família disfuncional? Quão próximos se sentem da teatralidade de uma banda como os White Mice?
. Os White Mice são nossos amigos, mas, ao mesmo tempo, tão diferentes de nós... A Load é uma família disfuncional, que inclui todo o tipo de "esquizóides" que nada têm comum além da inadptação em relação ao resto do mundo.
- Na digressão partilhada com os Locust e Arab on Radar, alguma vez sentiste que as bandas se alimentavam da tensão acumulada entre si? Como se um qualquer tipo de competição auxiliasse a atingir novos extremos...
. Referes-te à Oops Tour. Estávamos tão empenhados nessa digressão que cheguei a alinhar em brincadeiras para poder aprender algo. É óbvio que assitir ao Gabe [baterista dos Locust] a tocar todas as noites levou-me a tocar mais rapidamente. Ele é imparável! Os Arab on Radar caminharam na direcção oposta e abrandavam o ritmo noite após noite. Se acho que os Locusto podem ser ainda mais extremos? Teria de escutar as gravações dos concertos para responder a isso. Todas as bandas incluídas na digressão estavam tão concentradas numa determinação específica, que duvido que alguém tenha prestado muita atenção aos parceiros.
- Li acerca da possibilidade do Ryan Adams convidar-vos para uma digressão. Devo entender isso como uma piada ou existe alguma veracidade nisso? Achas que se adaptariam à realidade da audiência típica do Ryan?
- Acho que isso era verdade, mas nunca ouvi Ryan Adams e não faço ideia de qual será a dimensão da sua audiência... Presumo que seja mais ou menos grande, à imagem de um tipo menos pop. Não sei. Acho que nos adaptaríamos confortavelmente à retrete do seu espectáculo. Geralmente achamos imensa piada e não reflectimos muito acerca de convites surgidos a partir do plano superior.
- Parece-me que a Liga em que os Death From Above 1979 actuam é completamente diferente da vossa. Não estás saturado da comparação? Eles actuaram no Conan O'Brien, mas suspeito que nunca deixarias o Max Weinberg [baterista de serviço no famoso talk show da NBC] pegar na tua bateria, certo?
. Essa é outra. Não escutei mais que dez segundos de Death From Above 1979 há alguns anos, e não faço ideia de qual será o nível de sucesso que os persegue. Nunca recebemos convites do Conan O'Brien e nunca assisti ao seu talk show. Caso o talk show fosse apresentado por Conan, o Bárbaro, eu faria tudo ao meu alcance para actuar aí.
- Que tipo de inspiração obtêm do Japão?
. Eu adoro o Japão. Mais do que a Ooops Tour, o Japão é uma montra para verdadeiros extremos musicais. A proficiência é uma regra de ouro por lá. Até uma banda desajeitada é eficazmente desajeitada. Para nós, que nos dedicamos ao rock, o melhor é estarmos permanentemente em pico de forma para superar os Japoneses...
- És capaz de projectar mentalmente uma carreira tão longa e cimentada como a dos Sonic Youth e aplicá-lo ao vosso caso?
. Tão longa quanto a dos Sonic Youth, não sei! Estamos juntos há 11 anos e debruçados sobre "Hypermagic Mountain", que quase parece o nosso "Daydream Nation" (n.r.: o disco que projectou os SY para a ribalta da Geffen) por causa da sua duração. Será que um dia "cresceremos" até ao ponto que os Sonic Youth atingiram? Não faço ideia. Parece-me que ainda dispomos de algum tempo, mas não da eternidade que parece abençoá-los. Existem certos elementos directamente ligados à juventude, especialmente no caso de um baterista! Espero que continuemos por mais tempo. Ainda há mais a fazer. Só tempo dirá...
- Como é para ti recordar a sessão com John Peel? Ele teve um papel extremamente importante na divulgação e aceitação de géneros como o noise e todo um imenso underground. Que imagem guardas dele?
. Sinto-me extremamente grato pela oportunidade de conhecê-lo e actuar no seu programa de rádio. Foi, para mim, um dos momentos mais intensos dos últimos anos. Ele é uma pessoa insubstituível.
Lightning Bolt
Hypermagic Mountain
CD'05 . Load Records
Aproveito para o caso um ensaio de Michael Stern intitulado "Making Culture into Nature". Nesse, o autor aborda incisivamente a Cerimónia de Óscares de 1968 em que "2001 - Odisseia no Espaço" arrecadou naturalmente o galardaõ para Melhores Efeitos Especiais. Contudo e atendendo a que era perfeita a representação dos actores no lugar dos macacos na emblemática cena da descoberta da ciência, muitos ficaram surpresos que a obra de Kubrick não tivesse sequer sido nomeada para os prémios de Melhor Catracterização ou Melhor Guarda-Roupa. Ainda mais, quando estes foram atribuídos ao bem mais inferior "Planeta dos Macacos". Perante tal omissão, a explicação não oficializada por parte da Academia alegava que os seus memebros não tinham reparado que se tratava de humanos no lugar de símios. A sequência ganha com isso uma releitura que a torna ainda mais sublime.
Nas barbas de uma disputa capilar de proporções olímpicas, os Lightning Bolt mantêm-se fieis à noçao de que terão de garantir a sobrevivência num meio hostil com a camada de p~elo de que dispõem (e não com uma que a indústria teça para eles). No seguimento de um "Wonderful Rainbow" que provocou espanto e repúdio em doses iguais, o aprofundado "Hypermagic Mountain" aplica-se destemidamente à missão de "virtualizar" em disco a singularidade sanguínea do que se sucede ao vivo (e não em palco, que é palavra tabu para os LB). As armas dessa reprodução são as mesmas mas surgem imersas num mais intenso agror: a causticidade do dueto passa a agir de acordo com uma primordialidade ainda mais cega, a mecãnica do progredir frenético de "Mountain" não poupa a nada e parece não temer o absurdo (a certa altura, uma introdução quase AC/DC ganha um aspecto meaçadoramente extraterrestre). A sensação que sobra após a escuta é a de que fomos vitimados por um atropelamento sensorial.
Os discos dos Lightning Bolt continuarão a conhecer uma funcionalidade subversiva enquanto os sonhos de alguns representarem os pesadelos de outros, e vice-versa. Inverter a direcção ao bestialismo parece ser a motivação por detrás de "Hypermagic Mountain". Empenha-se em esclarecer uns tantos animais quanto ao seu lugar no meio e fazer com que os pontos de interrogação - resultantes de incómodo - se assemelhem às orelhas de um asno na cabeça de tantos outros. Para os Lightning Bolt, o mais apto é quele que melhor convive com o ruído. "Hypermagic Mountain" constitui o trajecto de fé que separa Maomé da montanha e a montanha de Maomé.
4,4 MA
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