Monitor
Nº 52
Ano V
Janeiro de 99
III série
24 páginas - p/b - A5 landscape, papel fino tipo jornal
Assinaturas - 12 números - 2000$00
Editores
Rui Eduardo Paes
Paulo Somsen
Colaboradores neste número
Pedro Ivo Arriegas
Vasco Durão
Gonçalo Falcão
Ivo Martins
Vítor Rua
Pedro Santos
Jorge Saraiva
As Profecias de Giovanni Freschi
por Vítor Rua
Em 17 de Janeiro de 1997, o musicólogo Robert Nestrovski é convidado a estudar e analisar certas partituras, pertença de Duke Vincenzo, chefe da corte de Gonzaga em Mantua, nobre renascentista, arrogante, déspota, imensamente rico e ostentador, mas com um interesse muito grande por Arte e Música (teve como figuras da sua corte o pintor Peter Paul Rubens e como maestro di cappella, o compositor Cláudio Monteverdi).
Este típico príncipe da Renascença tinha às suas ordens uma orquestra de 36 excelentes músicos, para os quais compositores como Benedetto Pallavicino, Lodovico Grossi da Viadana, Salamone Rossi e o próprio Monteverdi compunham. Foi na biblioteca deste príncipe de Mantua que Nestrovski fez uma descoberta que iria surpreender a comunidade musicológica do mundo inteiro, bem como compositores e estudiosos da História da Música: uma série de partituras de um compositor desconhecido até então, mas que cedo iria revelar-se uma espécie de Bosch da música renascentista, pela verdadeira originalidade e surpreendente revolução nas técnicas empregadas nas suas composições, bem como em extraordinários ensaios sobre notação (onde constam invenções de novos símbolos e técnicas que só muito recentemente viriam a ser utilizadas por compositores do pós-guerra).
Nestrovski estava a catalogar alguns Madrigais de Monteverdi, descobertos recentemente pelos descendentes do Vincenzo, quando deparou com algumas composições assinadas por um Giovanni Freschi 1653-1739 (Nestrovski viria mais tarde a saber por intermédio de cartas escritas por este à sua amante, que o seu mestre teria sido o compositor renascentista Mar Antonio Cesti - um dos primeiros compositores a compor uma ópera para o famoso Teatro Cassiano em Veneza, 1637.
A quase centena de composições assinadas por este compositor oscilava entre peças de grande envergadura instrumental e pequenos ensembles, duos e solos.
Nestrovski ficou surpreendido pelo exotismo instrumental de algumas das composições, tendo em conta a altura em que estas foram compostas (entre 1676 e 1737): «Le Nozze», 1696, foi escrito para 23 percussionistas (antecipando em quase 300 anos a famosa obra de Varése, «Ionization»); «Selva Spirituale», de 1683, foi composta para o instrumento de cordas turco zarib, oito violinos, 12 trompas e aplausi (seis músicos que usavam as mãos como instrumento de percussão); em «La Proserpina» contava com um coro de 10 crianças, 10 percussionistas e solo de rabab (instrumento de cordas persa). Mas a mais extraordinária descoberta foi uma série de composições escritas para um dos instrumentos criados por Bartolomeu Cristofori (o piano forte) e intitulada «Extravaganzas Sonnoras Per Gravicembalo Col Piano Forte», datada de 1730-1735, em que Freschi dispunha ao lado da partitura uma extensa lista de utensílios de cozinha (garfos, facas, colheres, pratos de cerâmica, copos, tachos de metal, etc.) disposta em esquemas gráficos, que mostrava a sua disposição ao longo do interior do piano, com indicações precisas quanto à sua utilização. O intérprete, segundo Freschi, utilizaria duas baquetas de timpani para percutir as cordas do instrumento, utilizando o pé direito para pressionar o pedal do sustém do gravicembalo, produzindo sons extravagantes e harmoniosos...
Estas partituras continham ainda ritmos irregulares e alternados (figuras de três, cinco e sete notas dispostas em compassos que alternavam de métrica com uma frequência espantosa), bem como escalas octatónicas e séries que viriam mais tarde a ser utilizadas por Messiaen ou Bartók, mas desconhecidas na altura.
Nestrovski imediatamente se deu conta da importância de tão bizarra descoberta (o prenúncio do piano preparado de Cage...) e imediatamente preparou um ensaio que viria a publicar no «Journal Perspectives of New Music», em Setembro de 1997 surpreendendo compositores e musicólogos pelo genial visionário que se lhes apresentava ser Giovanni Freschi.
As suas composições, além de revolucionárias, eram escritas meticulosamente, utilizando expedientes da notação tradicional mescladas com símbolos de sua invenção, sempre acompanhados de longas notas explicativas, bem como esquemas gráficos de uma imponente beleza e exactidão.
Esteticamente, as suas peças eram de uma beleza só comparável a obras de mestres como Orlando di Lasso, Gesualdo ou Gabrielli, tendo uma facilidade inusitada em criar belíssimas melodias aliadas a exóticos ritmos e extravagantes timbres alcançados pela utilização de invulgar instrumentação ou pelo uso anormal de novas técnicas por ele criadas.
Durante 1998, vários foram os intérpretes interessados em estudar e interpretar as suas obras. Entre eles contam-se Irvini Arditti, Pierre Ives Artaud, as Percussões de Estrasburgo e René Clemencic, dando origem a gravações agora publicadas em CD pela editora Col Legno.
A verdadeira importância deste compositor para a História da Música só o tempo o dirá, mas o seu lugar como revolucionário e visionário, esse parece já enraizado na memória de todos os que se deixaram contagiar por tão poderosa sensibilidade, beleza, lirismo, rigor científico, humor e, acima de tudo, uma antecipação verneana do que de melhor se viria a produzir no final do nosso século.
NOTA: este é o primeiro de uma série de dois artigos sobre a vida e obra de Giovanni Freschi. No segundo, vamos tentar dar um retrato do panorama sociocultural em que se desenrolou a obra deste compositor, bem como uma amostragem psicanalítica do seu carácter como homem.
Harmonia 76 - «Tracks & Traces» [CD Sony, 1997]
Os habituais seguidores de Brian Eno, entre os quais me incluo, aguardavam com particular expectativa a materialização sonora da notícia que falava de um misterioso disco gravado na Alemanha na segunda metade dos anos 70, com o grupo germânico Harmonia. Foi uma altura particularmente criativa e prolífera na sua carreira: a fase em que acompanhou Bowie em Berlim para gravar «Low» e «Heroes», o período em que gravou com os Cluster (que afinal são os Harmonia subtraídos de Michael Rother) e ainda o momento em que a sua carreira a solo vivia momentos excepcionais, dividido entre os restos da pop e a procura de um novo idioma musical que expressasse as suas ideias. Afinal, esta história de «discos perdidos», salvo raríssimas excepções tem mais a ver com um certo sentido de negócio que as editoras vão farejando, do que, propriamente, com a sua qualidade musical intrínseca. Quem estava à espera da continuação (ou melhor, da antecipação, já que estas gravações são cronologicamente anteriores) do magnífico «Cluster & Eno», ficará desiludido. Aliás, Michael Rother nunca me convenceu: sempre foi um elemento dissoante na estrutura compacta do duo musical Cluster, movendo-se em áreas mais afins da chamada «música para elevadores» e pouco contribuindo para criar novas alternativas no chamado rock alemão dos anos 70. E, o que é pior, é que parece ser a guitarra açucarada e delicodoce de Rother que comanda os temas, ou pelo menos parece contagiar negativamente os restantes membros, Eno incluído. As coisas até nem começam mal, Eno até compõe uma canção («Luneburg Heath») relativamente aceitável, mas vai-se caindo gradualmente na monotonia e no conformismo. Ou seja, «Tracks & Traces» não tem a dimensão da intemporalidade: provavelmente seria um disco interessante (não mais do que isso) em 1976; 23 anos depois, soa irremediavelmente a datado: veio muita gente nos anos seguintes fazer coisas bem mais interessantes do que esta. Claro que pode haver algum sentido de injustiça nestas comparações, mas a política de reedições sujeita-se a este tipo de confrontos e, como em quase tudo na vida, o tempo é um juíz infalível. E depois começam a notar-se os defeitos: pouca inspiração de ideias, temas excessivamente longos, indefinição melódica e processual e aquele irritante Rother com a sua «E-Guitar» enchendo todas as espiras para nosso desespero. Aliás, e em jeito de conclusão, não foi por acaso que «Tracks & Traces» ficou tantos anos na prateleira. Por mim poderia lá ter continuado indefinidamente.
[JS] - Jorge Saraiva
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