[com a devida vénia a Rui Miguel Abreu e ao seu blogue Rimas e Batidas: http://www.rimasebatidas.pt]
Fernando Magalhães: “Plux Quba de Nuno Canavarro é um álbum com escola”
[TEXTO] Fernando Magalhães [INTRO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados
Fernando Magalhães desapareceu há pouco mais de dez anos, mas o seu pensamento continua presente e influente. Através dos esforços de Luís Jerónimo, a sua obra tem vindo a ser organizada e republicada. Escritos de Fernando Magalhães, disponível já em dois volumes (primeiro e segundo) através da loja Lulu, é um importante depósito de pensamento de um crítico que sempre prestou atenção à mais avançada música electrónica, entre tantas outras coordenadas que não escapavam ao seu exigente radar.
O texto revelador que assinou sobre Plux Quba de Nuno Canavarro [criticado aqui no Rimas e Batidas], que beneficia de crucial informação obtida junto do hoje bastante reservado autor, fará parte de um terceiro volume antológico que se centrará na sua produção de 1995 e que deverá contar com prefácio de Rui Miguel Abreu.
Recupera-se aqui agora esse texto, em jeito de homenagem a Fernando Magalhães e acrescentando mais uma valorosa visão sobre um dos mais importantes discos da história electrónica nacional.
Exemplar único, Plux Quba – Música para Setenta Serpentes, de Nuno Canavarro. O disco surgiu logo após o músico ter regressado da Holanda, onde esteve a estudar composição. “Estive lá dois anos, no Instituto de Sonologia, na Universidade de Utrecht. Havia uma movimentação incrível, em termos de concertos, exposições, música electro-acústica. Não tinha a calma, aquela concentração para fazer lá qualquer coisa. Quando cheguei, quis logo trabalhar.” Antes disso, Nuno Canavarro estudou arquitectura no Porto e em Lisboa, e fez a produção de um disco dos Mler Ife Dada e, mais recentemente, dos Lobo Meigo. Tocou durante algum tempo, em 1988 e 89, com os Delfins, “porque precisava de fazer alguma coisa”.
O material para a gravação de Plux Quba não poderia ser mais simples: “Um Ensonic Mirage, um sampler de 8 bits, dos primeiros que houve, e um gravador de oito pistas, um Fostex. Hoje, quase nem acredito como é que consegui fazer o disco.” A esta precaridade de meios contrapôs Nuno Canavarro a imaginação na forma como tirou partido das próprias limitações técnicas: “Com o gravador de oito pistas, é aquele sistema de uma pessoa fazer um coisa qualquer num instrumento e partir para a criação de uma estrutura a partir disso. Grava-se numa pista e, depois, vai-se adicionando outras coisas. Pode, por exemplo, gravar-se uma pista e depois outras seis ou sete à volta dela e, por fim, apagar a primeira, aquele género de truques. Ou pôr coisas ao contrário ou gravar a velocidades diferentes. Na altura, era isso.” Nuno Canavarro utilizou no sampler sons pré-gravados, “embora seja difícil ouvir no disco sons que sejam reconhecidos como de um instrumento x ou y. Era tudo altamente modificado ou então gravava melódicas, sons de televisão ou fitas de música étnica.”
O disco foi gravado no estúdio caseiro, na própria casa do músico. Saiu posteriormente com o selo Ama Romanta. “Nessa altura, tinha aparecido um concurso de música, ligado ao Centro Nacional de Cultura. Dei um concerto no Instituto Franco-Português, juntamente com os outros cinco projectos que tinham ido à final, e estava lá o João Peste a ver. Gostou imenso e convidou-me para pôr aquilo em disco.” Não houve qualquer trabalho de pós-produção, apenas o corte a partir da fita original, gravada num gravador de bobines de duas pistas. Custos de produção ou assinatura de um contrato “não houve”. Nuno Canavarro não sabe o número de exemplares vendidos: “O João Peste fez quinhentos, acho que era o mínimo; depois, não faço ideia.”
Sobre a música de Plux Quba, Nuno Canavarro acha que esta resultou, “em parte por ter sido um trabalho totalmente isolado”. “O Tó Zé Ferreira tinha viajado para a Holanda, o Nuno Rebelo tinha ido viver para Lisboa. Fechei-me no estúdio a fazer aquilo”, diz. “Por outro lado, a própria limitação de meios técnicos, neste caso, acho que funcionou a favor, porque puxou pela criatividade. Chegava a utilizar os próprios defeitos, a nível de software do sampler. Era um aparelho muito instável, havia coisas bestiais que, obrigando-o a trabalhar muito, respondia de maneira um bocado imprevisível. Era bestial para o género de música que eu queria fazer.” O título, esse, permanece um enigma. “Foi para tornar a coisa ainda mais esquisita.”
Para já, Plux Quba – Música para Setenta Serpentes existe apenas em vinil, estando neste momento esgotado e fora do mercado. Nuno Canavarro não sabe do paradeiro das masters: “Já não me lembro se ficou o João Peste com elas ou se fiquei eu”. Enquanto não forem encontradas as fitas, fica afastada a possibilidade de passagem para compacto. Para Canavarro, a ideia “era fazer, dentro de dois ou três anos, um compacto com, além de Plux Quba, alguma música que tinha feito antes, ainda mais esquisita, uma terceira parte com alguns temas do disco feito com o Carlos Maria Trindade [Mr. Wollogallu] que acabaram por não sair”. O CD teria ainda uma quarta parte, com temas novos que Nuno Canavarro mostrou, para já, à Ananana. “Tudo junto, compilado num CD de para aí setenta minutos, é capaz de mostrar um processo engraçado.” Setenta, tantos como as serpentes.
[COMO É]
Um daqueles discos que passou despercebido na altura em que foi gravado mas que os anos obrigam a revisitar, como se crescesse com o tempo. Nuno Canavarro fez um álbum que tem escola. Com Jon Hassell e Brian Eno a leccionarem. Plux Quba – Música para Setenta Serpentes pode ser definido como uma obra de música electrónica acusmática (sons acústicos gravados e manipulados electronicamente), entre o ambiental e exotismo new age world que viria a ser assumido, anos mais tarde, na companhia de Carlos Maria Trindade em Mr. Wollogallu – um género que conta, entre os seus cultores, com o genial Steve Moore, numa obra como A Quiet Gathering, com a qual estas serpentes têm pontos de contacto. Ao contrário do que acontece num disco lançado em simultâneo com este, Música de Baixa Fidelidade, de Tó Zé Ferreira, companheiro de aventuras de Canavarro na aprendizagem dos métodos e técnicas de composição por computador, a música de Plux Quba evolui de forma mais intuitiva, tirando partido das próprias limitações do hardware e software então disponíveis, jogando com o erro e o acaso, um pouco à maneira do que fazia Eno com as suas “estratégias oblíquas”. Música orgânica, não sistemática, em constante movimento de auto-revelação/ocultação. Nuno Canavarro jogou aqui na indefinição e no segredo, na escritura de símbolos musicais e poéticos com forte poder de sugestão, deixando à imaginação do auditor a tarefa de organizar o enredo do filme, ao ponto de existirem temas sem título, quadros sónicos dispostos segundo lógicas de criação não nomeadas. Canavarro recomenda a audição “com a colunas/monitores o mais possível afastadas entre si” e, “a baixo nível” a partir do último tema do primeiro lado e até ao fim do disco. Recomendações idênticas às de Brian Eno, em Discreet Music. Plux Quba permanece até hoje um mistério. O tempo fez-lhe justiça, mas não lhe retirou o véu.
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