Factory
Nº 11
JULIO-SEPTIEMBRE 1996
700 PTAS.
ESPANHA
68 páginas
formato A4 (um pouquinho maior)
interior - papel grosso e a p/b
Capa a cores
Diamanda Galás
O Grito PositivoGalás apareceu naquela manhã de 14 de Março - um dias antes da sua "gala" (?) -, e não é uma vampira de verdade, é estupenda e é humana, é-o muito, embora também uma possessa que nos apraz escutar sepulcralmente nas suas actuações, assim como nos seus trabalhos discográficos "The Litanies Of Satan" (82), "Saint Of The Pit" (86) ou "You Must Be Certain Of The Devil" (8). Estão muito longe esses tesouros
vocais? Parece que não, mas de todas as formas ela evolui e aparece enevoando - apenas em parte - aquela fixação 2atrás da máscara". Passaram-se muitos anos disso, e deram a vez a "The Singer" (92), "Vena
Cava" (93) e ao pouco gracioso "The Sporting Life" (94), junto de John Paul Jones. O seu projecto actual - com toques teatrais - é "Schrei", onde silêncio e vozes se misturam intimamente na obscuridade.
Gálas arde, também devido às suas incríveis e frutíferas abordagens sonoras (e "físicas") no cinema: "The Last Of England", de Derek Jarman; "Drácula", de Coppola; "A Serpente e o Arco-Íris", de Wes Craven; e
"Silence=Detah", de Rosa von Praunheim - mais a sua actuação no filme "Positive" do mesmo realizador -. Recentemente, trabalhou na banda sonora de "Lord Of Illusions", de Clive Barker.
O certo é que Diamanda prossegue retratando, na sua forma lúgrube, a realidade crua dos menos afortunados, pendendo por um fio sobre o abismo de asfalto, sobressaindo como equilibrista sobre as suas próprias cordas vocais. O seu portento não está na escuridão, mas sim no seu compromisso social e artístico, revelando velhas portas empoeiradas e glorificando brilhantemente o seu reportório diversificado e refulgente.
A meio da mostra de vídeo-perfomance feminina "Era uma vez... do minimal ao cabaret: 70's-90's" (14 a 16 de Março, Teatro Central de Sevilha), a actuação de Diamanda Galás resultou num acontecimento social de
envergadura e de uma oportunidade única.
. Explica-nos, se tiveres a amabilidade, em que consiste o teu espectáculo "Judgement Day".
.. É um concerto para voz-solo na primeira parte, e na segunda parte para voz-piano. O primeiro é uma compilação de gospel mas com com textos meus, e gira em torno da cruxificação, que não é bonita mas real; é como algo muito feio, embora creio que seja necessário. A segunda parte é composta sobre poemas de Baudelaire, Nerval, Corbière, que não são tão conhecidos como o "Insane Asylum", de Willie Dixon, um gospel muito popular nas igrejas... Ele fez uma aproximação a outros aspectos, que se pode representar por duas pessoas que têm SIDA agora, que têm de lutar para sobreviver; é como uma canção de caça. É como um início, a nostalgia de que, e não quero com isso estabelecer nenhuma categoria na música. É por isso que decidi usar estas canções. Também vou cantar um poema de Miguel Mixco, de El Salvador. Ele estava na FNL como guerrilheiro, e vou cantar a sua canção em espanhol, porque naturalmente penso que é importante cantar a canção na língua em que foi escrita, porque é a mesma coisa, a música e a língua. As
adaptações das letras a outros idiomas parecem-me uma estupidez... tipicamente americano.
. Parece que Baudelaire tem vem acompanhando desde há bastante tempo, não?
.. Baudelaire é para mim como um irmão de sangue. Sempre estive interessada na sua obra, não apenas ao princípio, mas sim ao longo de todos estes anos. Pelo menos dez peças das que componho em cada ano
são baseadas na leitura de Baudelaire. Também Corbière e Nerval são importantes para mim, assim como Henri Michaux, de que gosto muito.
. Gostas particularmente de te impregnar desse malditismo poético francês do século XIX?
.. Apenas penso que são bons poetas, o que me interessa é o que escreveram. Creio que este tipo de literatura é muito apropriado para o tipo de música que faço, e vice-versa.
. A tua voz é o teu principal instrumento. Como a cuidas?
.. Há muitos anos que utilizo a voz, e tenho praticado muito para me tornar uma cantora. Recebi lições de vocalização de três ou quatro cantores que era de uma grande precisão técnica. Cheguei a cantar não só a
minha música e a de outros compositores, mas também outras cosias. Para mim, isso é o mais importante, poder cantar o que ouves e não estar limitada pela voz, porque se não, a única coisa que fazes realmente
é repetir-te a ti própria e mentir no palco. Naturalmente não posso fazer coisas que sejam prejudiciais à voz, não posso fumar, apenas uma ou outra vez, não posso fazer muitas coisas de que gostaria, mas penso
que agora estou numa boa forma e espero continuar assim.
. Gostaria que me falasses das pessoas que escrevem coisas estranhas sobre ti.
.. Muitas vezes, as pesoas escrevem coisas estranhas porque não têm a mais pequena ideia sobre o que é a música, então começam a falar de cor de mim, da minha pintura, dos meus olhos, etc. Sempre trabalhei
em obras que versam o isolamento psicológico. Em 1990, escrevi uma peça sobre as pessoas torturadas pela junta militar da Grécia, pelo que isso representava para mim, que sou de ascendência grega. Também
escrevei sobre esse mesmo tempo mas no que se refere ao Brasil. O que sempre me interessou é como uma pessoa pode sobreviver nesse estado de isolamento... Penso na posição psicológica de uma bruxa no
momento antes de cair no fogo. Concretamente as pessoas que padecem de sida sabem que têm de criar a sua própria comunidade fora dos meios estabelecidos, as suas próprias obras, o seu próprio ambiente,
criar a sua própria vida quotidiana, as suas medicinas. Se alguém me pergunta porque trato estes temas, eu também poderia perguntar às outras pessoas porque compõem canções de amor sentimentais - risos -.
Porque gosto de canções de amor mas não das do tipo sentimental, como faz muita gente do rock, que estão sempre a falar dos seus filhos a cada canção. Para mim é muito difícil poder suportar isso.
. Trabalhaste com a tua voz em bandas sonoras de filmes de terror. Como o fazes?
.. Para mim são comédias, logo façoõ como se fosse uma representação circense. Essas cenas que às vezes parecem terríficas, como uma de "assassinos japoneses", do filme de Wes Craven, para mim é
realmente cómica, diverte-me muito. Além disso pagam-me muito bem e gosto muito daquela rapaziada.
. Que há em comum entre os teus efeitos sonoros para cinema e a tua experiência como cantora e compositora?
.. Diferencio muito entre o meu trabalho quando componho e canto como Diamanda Galás e quando trabalho para outras pessoas, como nessas colaborações com Clive Barker; o que faço são efeitos vocais, trabalho de uma forma técnica e profissional, ainda que não ponha a minha vida nisso; é um tema técnico. Creio que é muito bom para mim; não há qualquer espécie de menosprezo, porque creio que me força a trabalhar muitíssimo a voz com esses exercícios técnicos e vocais, mas acima de tudo diferencio totalmente um trabalho profissional de efeitos vocais do meu trabalho como compositora.
. Colocaram-te como o eixo principal da mostra ""Era uma vez...", mas qual é a tua relação com o mundo da perfomance?
... Normalmente não gosto muito de definir-me como "performer".. Componho e há todo um processo, desde o princípio, desde a ideia inicial até ao que é o desenho das luzes e som, até ao tratamento da voz, que mesmo quando estou a compor uma obra não sei exatamente como vai ficar, e que o resultado final deste processo é o que dá a obra final.; nesse aspecto tenho uma relação com a "perfomance", que é um meio muito aberto, flexível e versátil, assim como foram os meios de produção; de facto poderão classificar-se como "perfomances" uma série de acções que podem ter lugar num estúdio de artistas, numa garagem. Ou na rua; e que incorporam elementos distintos, tecnologia, etc. Eram artistas que partiam de uma ideia e a escreviam, dirigiam, interpretavam... O que me interessa a mim é a ideia de projecto global. Creio que é uma boa forma de compor música, numa aproximação às artes visuais. Não creio que seja nova a incorporação da mulher na música e na "perfomance", porque temos feito muitos trabalhos que afinal acabam por ser capitalizados por nomes masculinos. Por exemplo, Cathy Berberian, uma grande cantora que trabalhava com o seu marido, o compositor italiano Luciano Berio. Ela foi uma artista que experimentou muito e era uma belíssima improvisadora, mas Berio era, no final, quem ficava com todos os créditos e direitos. É por isso que não trabalho para nenhum homem. Se tenho que matar-me a trabalhar e pela minha voz, fá-lo-ei em meu próprio nome.
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